Uma festa suave no rosto, quase sem tocar. Entreabro um olho a custo.
Nove e vinte da manhã, diz
o relógio na mesa-de-cabeceira. Ao lado, ela.
– Bom dia, dorminhoco.
Vamos dar um passeio?
– Mas tu não dormes?
– Nem sempre. Só quando me
apetece.
– E não te apetece agora?
Mais dez minutos ou assim?
– Não, apetece-me ir
passear. Deixa de ser rezingão e acorda. O pequeno-almoço está feito. Eu vou-me
vestir enquanto tu te vestes, comemos e saímos a seguir.
Sendo perfeitamente
sincero não me apetecia nem um bocadinho, por mais pequeno que o bocadinho
fosse. Mas lá me levantei, fui à casa de banho, vesti qualquer coisa meio ao
calhas e fui para a cozinha.
– Vai comendo que eu já aí
vou ter… – ouvi-a a gritar do quarto.
Fui comendo. Não me
apetecia responder. Aliás, normalmente até tomar o café nem me apetece estar
acordado, quanto mais falar. Liguei a televisão e fiquei a ver os noticiários
da manhã, com o cérebro semi-adormecido a passar pelas catástrofes do costume
como se estivesse a ver um filme série B, daqueles bem reles. Ocorreu-me que na
maior parte das vezes a realidade não passa disso mesmo. Um filme reles, e quem
escreveu o argumento não tinha a mínima ideia de como fazer uma história como
deve ser. Teriam de ser os historiadores a posteriori a tentar fazer com
que o argumento fosse interessante, quais montadores numa sala escura qualquer
procurar sentido numa carradas de bobines de filme sem jeito nenhum.
O que diria a história no
futuro acerca desta época? Haveria heróis? E seriam eles os que glorificamos
agora, ou a justiça seria reposta dando o papel de destaque a figuras de quem
nunca ouvimos falar, como os médicos que andam em África no meio de guerras
raciais e de etnias a tentar desesperadamente salvar as vidas que o próprio
povo de lá não tem a mínima hesitação em ceifar? Ou iríamos idolatrar idiotas
completos que tiveram na sua mão fazer tudo e não fizeram absolutamente nada?
O mal de ainda não ter
tomado café era este. Ficava um bocado ácido em relação ao mundo que me
rodeava, mas sabia perfeitamente que a cafeína ia tratar de repor as minhas
ideias na ordem normal. Um golinho de café quente e a ordem foi reposta.
Ela entrou na cozinha
quando eu estava já a acabar o café.
– Vais com essa roupa?
– Vou…
– Não, não vais, vais
vestir qualquer coisa mais decente.
– Mas nós casamo-nos e eu
não dei por isso?
Ela olhou para mim e
levantou o sobrolho.
– Olha lá, achas que eu
quero andar na rua com um gajo que quer rivalizar com os arrumadores, ou é essa
a tua estratégia para arranjarmos dinheiro para o almoço?
Desta vez fui eu quem
franziu o sobrolho. Respirei fundo, levantei-me preguiçosamente e dirigi-me ao
quarto.
– Não queres escolher tu a
minha roupa, não? – Perguntei-lhe.
– Não, tu já és grandinho.
Mas despacha-te, senão a manhã já era.
Lá escolhi outra coisa
mais apresentável, vesti-me num
ápice, e quando me dei conta estávamos já no carro.
– E vamos para onde? Já
agora, presumo que tenhas um destino qualquer…
– Vamos para Cascais. Mas
olha, vamos em passeio, vai indo pela marginal, tá bem?
– Mas claro – disse eu com
um tom algo irónico. – Os teus desejos são ordens.
Seguimos pela marginal,
comigo em silêncio e ela apenas a observar o mar e a cantarolar as músicas que
iam passando na rádio. Fizemos a viagem de forma lenta, sem pressas. À entrada
de Cascais ela disse-me:
– Continua em direcção ao
Guincho, se não te importas…
Eu continuei. Deixámos
Cascais para trás, fomos seguindo pela estrada sempre a ver os rochedos a serem
fustigados com violência por um mar forte, naquilo que era um espectáculo
sempre belo. Gostava de ver o mar assim, a mostrar a sua força, a diminuir-nos
perante a sua majestade e imensidão.
Chegámos à zona da praia.
– Queres que estacione?
– Não, segue. Continua
como se fosses para Sintra.
Assim que fizemos uma
curva, ela chamou-me à atenção.
– Vês aquela entrada?
Segue por ali.
Virei para o caminho que
me indicou. Embora a entrada fosse em alcatrão depressa a estrada se tornou um
pesadelo de terra batida cravada de pedras quase digna de um rali Dakar e onde
era praticamente impossível dois carros passarem um pelo outro.
– Sabes escolher bem os
caminhos.
– Sem esforço não há
recompensa, meu querido – disse ela, rindo‑se com vontade em seguida.
Ao fim daquilo que me
pareceu uma eternidade com o carro em primeira velocidade ao ralenti, a estrada lá abriu num espaço
amplo sobre uma falésia onde o mundo parecia acabar abruptamente. Onde a
estrada acabava e se abria esse espaço enorme estava uma casa, aparentemente um
restaurante, mas fechado. Mesmo à beira da falésia havia um muro de pedra com
um aspecto antigo e um casebre de pedra também, aparentemente abandonado.
Parei o carro perto do
casebre. A zona estava completamente deserta. Saímos e veio o vento típico
daquela zona a enregelar-me a ponta do nariz. Fiquei a contemplar a imensidão e
a ouvir o mar a esmagar-se nas rochas ao fundo da falésia. Para a esquerda
tinha toda a vista através do Guincho até à baía de cascais. Atrás de mim
começava a serra de Sintra e à minha direita, ali tão perto, distinguia o cabo
da Roca.
À minha frente nada mais
do que mar.
– Anda… – disse-me ela
dando-me a mão para que eu a acompanhasse.
As roupas dela, leves como
sempre, esvoaçavam livres ao sabor do vento algo intenso que se sentia, mas
como sempre ela não parecia importar-se com isso, nem estava incomodada.
Levou-me pela mão através
de um carreiro que descia em direcção a um pequeníssimo vale ao longo das
paredes inclinadas do mesmo. O vento deixou de nos fustigar, protegidos como
estávamos.
De repente, para alguma
surpresa minha, aparece uma baía onde o mar não está tão violento porque as
próprias rochas à entrada da mesma quebram a sua impetuosidade, e onde havia
uma pequena praia de areia fina salpicada de rochas. Um sítio absolutamente
idílico e protegido do vento que, Verão ou Inverno, havia naquela zona. O sol
estava alto, pelo que até a temperatura ali estava amena.
Ela tirou as roupas por
completo, ficando nua ao meu lado, como já a tinha visto fazer antes à
beira-mar. Depois olhou para mim, e com um sorriso matreiro e o sobrolho
levantado aproximou-se, agarrando-me pelo cinto das calças.
Uma a uma foi removendo a
minha roupa, até me deixar nu à sua frente.
– Sentes frio? –
Perguntou.
– Não, a temperatura aqui
até está amena, mesmo.
– Então anda.
Agarrou-me novamente pela
mão e levou-me até à água. A ideia de entrar na água em Novembro estava-me a
fazer sofrer por antecipação, mas ao chegar lá descobri que afinal não havia um
choque térmico assim tão grande. Pelo contrário, a água parecia até mais quente
que a temperatura exterior.
Levou-me pela água adentro
até esta nos dar um pouco acima da cintura.
– Mergulha – instigou-me.
– Experimenta.
Mergulhei.
A água não estava tão
forte que puxasse, mas também não estava calma e obrigava-me a dar alguma luta,
mas ao mesmo tempo sabia-me bem a envolvência. E de repente percebi o porquê.
Senti‑me vivo, livre, ali ao lado dela, longe dos olhares do mundo, da moral e
dos bons costumes, apenas eu e ela, ali, de mãos dadas.
Voltei à tona com uma
sensação de liberdade para encontrar os olhos dela com uma expressão de
felicidade enorme.
– Queres sentir? –
Perguntou-me. Não sabia o quê, nem porquê, mas limitei-me a confiar, olhá-la
nos olhos e dizer:
– Sim!
E com isto uma onda de
sensações varreu-me por completo e experimentei um turbilhão de sentimentos que
me pareciam ter sido negados, e olhei-a com paixão e as suas formas nuas e lindas
inspiraram-me desejo. O meu corpo reagiu de imediato, fazendo‑me sentir uma
excitação quase incontrolável que subiu ainda mais de tom quando ela colou o
seu corpo ao meu.
Eu estava ali, como que
inerte, num estado de felicidade pura que nunca ousara viver, enquanto sentia
os seus lábios a colarem-se aos meus, ela a envolver-me e eu a envolvê-la
também. Todo o meu corpo se abandonou à vontade de a amar.
Deitámo-nos na areia
molhada onde éramos lambidos pela água que ainda nos chegava, colámos a boca e
os corpos, e apesar da urgência que sentia dela, o tempo parecia mover-se devagar
à nossa volta, instigando uma calma que me fazia, nos fazia lânguidos.
Os meus sentidos
encheram-se dela, o toque suave da sua pele quase eléctrico, os beijos
carregados de sensações únicas. Então, ela empurrou-me para ficar de costas no
chão, e de uma única vez deslizou em mim, e a sensação de a ter foi algo tão
único que me limitei a fechar os olhos e a senti-la, a sentir-me dentro dela,
numa comunhão de sentidos. Ela ficou assim, parada, a fazer que eu a sentisse,
apenas com um leve ondular de ancas.
As minhas mãos percorriam
o seu corpo até ao peito e desciam depois pelo seu lado, pelas suas ancas,
pelas suas pernas e voltavam a subir. Nunca tinha sentido uma mulher assim, sem
que houvesse o mínimo sentimento de urgência, sem que houvesse procura. Não
havia tempo, por isso tínhamos todo o tempo. Não procurávamos nada, por isso
não sentíamos a urgência de ir ao encontro de algo. Estávamos apenas ali, nós
completos, fazendo com que a palavra «nós» se tornasse absurda. Apenas havia
eu.
E quando cheguei a esse
ponto, alguma coisa em mim pareceu querer desprender-se dela. Era algo que
sempre sentira mas que só com ela, agora, se tornava evidente. Ela inclinou-se
para a frente, pondo as mãos acima dos meus ombros e quando abri os olhos vi-a
a olhar directamente para os meus.
– Fica comigo, Miguel.
Olhei-a nos olhos, bem
fundo. Queria desvanecer aquela sensação de separação. Os olhos dela
deixaram-me entrar na sua alma. Sem tirar os olhos dos meus, senti o seu corpo
balouçar devagar fazendo-me entrar e sair dela, com uma calma absoluta.
– Fica comigo…
Sem eu tirar os olhos dela
senti-me preso nela, deixando desvanecer a sensação da separação e soube pela
primeira vez na vida o que é estar unido de corpo e alma a outro ser.
Com os olhos nos olhos um
do outro chegámos a um orgasmo que me mostrou a verdade da união entre dois
seres e fez o universo fazer sentido por uma vez.
Senti o seu corpo
desfalecer sobre o meu enquanto regressava a mim e abracei-a. E qualquer dúvida
sobre quem ela era se dissipou em mim. Tinha sido tocado por uma deusa e não
podia voltar a ser o mesmo.
Não queria nunca mais
perdê-la.
Queria que o tempo
parasse.
Não queria sair dali…
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