Cheguei ao meu refúgio por volta das sete da tarde. Entrei com o portátil e um saco com comida rápida comprada numa estação de serviço do caminho. Por esta hora, Laura e Henrique deviam estar a chegar à minha casa de Lisboa. Estava curioso e um tudo-nada preocupado, se bem que ciente de que Lilith sabia o que fazia e que dificilmente aconteceria algo lá em casa.
Ainda assim, havia qualquer coisa em tudo isto que
me deixava apreensivo. O facto de eu não estar talvez fosse até benéfico. A
minha presença poderia, de alguma forma, antagonizar Henrique, o confronto de
machos, e o pior, eu estar no meu território e por isso mesmo ser o macho
dominante. Ele não estaria bem logo à partida e estaria inquieto. A minha
ausência tornava toda a situação mais fácil.
Pousei o saco com a comida, duas sandes e uma lata
de cerveja, junto com o portátil em cima da mesa da sala, abri o portátil e uma
das caixas de plástico de uma das sandes, de atum, acho eu, e continuei a
escrever. Perdi-me na escrita de uma história que fazia todo o sentido, por ser
a minha, porque era vivida, mas mais ainda agora. Não é todos os dias que uma
deusa toca um mortal, e muito menos afirma amá-lo. Lilith, Lilitu, Ísis – e sei
lá mais quem – fê-lo. Sentia em mim o toque da imortalidade, mas também a
tristeza de saber que ela teria de seguir e eu ficar para trás. Não é privilégio
dos mortais acompanhar os deuses.
No entanto, queria ainda saber mais sobre ela, se
havia mais deusas, que vidas comuns tinha ela escolhido. E faltava-me também o
pormenor. Qual a razão ou as razões de ter vindo ter comigo, de se revelar a
mim.
E faltava ainda um fim para a minha história, e
este era o ponto que me assustava. Na mitologia nunca os mortais que se viram
envolvidos com deuses se deram bem. Eu não acreditava ser a excepção à regra.
Por volta das três da manhã tinha escrito tudo o
que tinha de escrever. Fechei o portátil e servi-me de um whisky. Fui para o meu terraço fumar. A noite estava fria, muito
fria, mas ainda assim, estranhamente, o frio não me incomodou, antes pelo contrário,
foi uma sensação agradável, contrastante com o fumo quente que me envolvia os
pulmões a cada baforada ou o calor do álcool a cada trago.
Fechei os olhos. Senti-me envolvido pelo mundo em
vez de à parte dele. O vento frio na minha face, o barulho das ondas do mar. Percebi
o porquê de ela mergulhar no mar a cada oportunidade. Sentia-se parte do que a
envolvia, parte integrante do mundo.
Eu estava ali naquele momento, mas a minha vida
não era nada. As ondas do mar e o vento estavam ali há um tempo incomensurável,
tinham visto a vida aparecer, evoluir, sair do seu âmago, espalhar‑se e chegar
a este momento, e ainda cá estarão quando já não houver ninguém ou nada para as
ouvir ou sentir.
Apaguei o cigarro, pousei o copo, despi-me de
roupa e de conceitos, preconceitos, ideias, noções, desejos, vontades,
vaidades, amores, ódios. Despi-me do meu ego e desci as escadas para a praia,
caminhei pela areia até à água e mergulhei na vastidão, deleitei-me com as
sensações e abri-me à noção de que todas elas eram boas. E fui livre.
Não sei quanto tempo estive na água, a saborear a
força com que as ondas me atiravam e a deixar-me seguir segundo a sua vontade,
sem oposição. Mas sei que a dada altura olhei para o lado e ali estava Lilith,
junto à linha de água, nua, magnífica, linda, desejada, com um sorriso nos
lábios. Um sorriso de compreensão, de quem não precisa de palavras. Juntou-se a
mim e abandonámo-nos à imensidão.
Por fim subimos juntos pela praia, entrámos em
casa, fomos para o quarto, deitámo-nos, lado a lado, ficámos a contemplar-nos.
Nos olhos, o espelho da alma, compreensão. Mais do que a compreensão de
palavras, a compreensão de espíritos. As palavras eram supérfluas, vazias de
significado ao pé do que dizíamos um ao outro.
E de uma forma fluida, líquida como a água em que
estivéramos mergulhados, os nossos corpos procuraram-se, trocaram-se, fundiram-se.
Sentia-a em mim, o gosto da sua pele salgada, de cada pedaço do seu corpo, do
seu sexo. Todo o seu corpo era meu. Todo o seu corpo era eu e apenas queria a
sua elevação, o seu prazer. E sentia-a em mim a querer o mesmo que eu, a
fazer-me abandonar tudo.
Finalmente, quando nada restava de mim nem dela,
penetrei-a. Apenas restava esta sensação de ser ela. Esta sensação inexplicável.
E neste momento fui um dos deuses, neste momento fui um dos imortais, invadi
domínios que me estavam vedados.
Abandonei-me ao prazer, senti-a a acompanhar-me.
Mergulhei na eternidade deste momento que foi verdadeiramente eterno, pois
nunca mais se desvaneceria.
Foi então, estando nós ainda unidos, que os nossos
corpos cederam e que adormecemos nos braços um do outro. Nem uma palavra foi
pronunciada. Tudo o que poderia ser dito tinha sido dito.
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