Abri os olhos com a luz a inundar-me o quarto. A manhã já ia alta. Ela obviamente não tinha aparecido. Curiosamente, não me surpreendeu, nem me aborreceu. Fiquei ainda um bocado na cama a preguiçar e a habituar-me à ideia de ter acordado.
Depois de um bocado, levantei-me, comi qualquer
coisa e sentei‑me ao computador a escrever. Tinha que despejar estas ideias que
já estavam mais ou menos organizadas, torná-las coerentes, e com alguma
urgência. Estava a menos de uma semana do prazo de entrega do livro. Passei o
dia a escrever, ao ponto de me esquecer de almoçar. As ideias jorravam, eram
fluidas e progredi bastante.
As luzes da rua começavam a acender-se quando
Lilith apareceu. Abri-lhe a porta e ela entrou com um ar de menina marota.
– Olá – cumprimentou ela – Tiveste saudades?
– Não, nem por isso. Tenho estado absorvido pela
escrita e não me tenho distraído muito.
Ela ficou a olhar para mim, algo surpresa.
– Mesmo?
– Mesmo – disse-lhe com um sorriso.
Voltei a sentar-me ao computador e continuei. Quer
dizer, tentei continuar. Mas ela sentou-se perto de mim, a olhar com um ar
interrogativo que me interrompia o raciocínio quando dava por ela, pelo canto
do olho. Até seria divertido, se ela não estivesse a desconcentrar-me. Acabei
por lhe dar atenção.
– Sim? – Perguntei.
– Não estás curioso?
– Em relação a…?
– A onde passei a noite…
– Não. Presumo que tenha sido num sítio mais
confortável que o sofá do escritório do Henrique, portanto, não estou curioso.
– O sofá do escritório? Explica lá essa.
Contei-lhe a conversa a que tinha assistido quando
nos cruzámos à entrada do restaurante.
– A sério? – Perguntou ela, meio divertida.
– A sério. Só tenho pena do coitado do Fernando –
concluí com uma gargalhada.
– Enfim… – suspirou. – Mas passei a noite em casa
da Laura.
– Sim, já calculava.
E com isto dei o assunto por concluído, e
dediquei-me outra vez aos meus textos. Mas o olhar dela continuou, dizendo-me
que a coisa não tinha ficado por ali. Desta vez esperei que ela falasse. Se ela
tinha algo a dizer, que dissesse.
Ao fim de uns dez minutos, ela falou finalmente.
– Miguel…
– Sim, diz. – Dei-lhe finalmente atenção.
– Tu ontem não te portaste muito bem.
– Não? E então?
– Deixaste a Laura triste.
– Bem, sabes, tinha duas hipóteses, ou saía naquela
altura ou tornar-me-ia insuportável. Não tenho paciência para gajos como ele,
armado em galito de uma capoeira que nem sequer existe, a tentar exibir algo
que nem sei bem o que é…
– Mas podias ter sido mais paciente.
– Podia, mas não quis ser. Reservo-me o direito de
não ser. Porque é que havia de ser?
– Pela Laura.
– Diz-me uma coisa, o que é que passou pela cabeça
da Laura em pôr-me a mim e a ele no mesmo espaço?
Ela pensou um pouco antes de responder.
– Acho que ela queria a tua opinião acerca do Henrique.
– Para quê? Queria a minha aprovação?
– Não, mas queria a tua compreensão.
– E tem-na. Não sou ninguém para julgar com quem é
que ela deve estar ou não. Se ela gosta dele, então tem, logicamente, a minha
bênção. Mas fico realmente com pena. Acho que ela merece muito mais do que um
gajo casado que diz que vai passar a noite no sofá do escritório por causa do
Fernando da contabilidade. Mas se na realidade queria a minha opinião, teve-a.
Não lhe vou fazer favores, nem ser hipócrita com ela. Ele está muitos furos
abaixo dela.
– Fazes bem.
– Eu sei. Ou se, por acaso, não faço, pelo menos
fico bem com a minha consciência.
E, mais uma vez, dei por encerrada a questão e
voltei ao que estava a fazer.
Decorreram mais uns longos minutos. Ela
levantou-se, foi à cozinha buscar uma água, voltou, sentou-se e continuou a
fitar-me. Cansei-me do jogo.
– Olha lá, se tens alguma coisa para dizer, diz de
uma vez.
– Não queres saber o que se passou ontem, depois
de te ires embora?
– Não.
– Não estás nem um bocadinho curioso?
– Não, já disse.
– Nem queres saber porque é que eu só cheguei
agora?
– Não.
– Porquê?
– Porque tu fizeste-me prometer que eu confiaria
em ti e nas opções que tomasses, por mais estranhas que elas me parecessem. E
tu ontem escolheste ficar, tomaste uma opção. Eu sinceramente não gostei da
opção que tomaste, mas não tenho de gostar, foi a tua opção, por isso estou a
fazer o que pediste. Estou a confiar em ti.
Ela ficou a olhar para mim perplexa, sem saber o
que me dizer. Aliás, era a primeira vez que a via assim, fitou-me com um olhar
de admiração, que eu não compreendi. Depois sorriu.
– Há algo que devias saber.
– O quê?
– Convidei-os para jantar cá.
Olhei para ela, perplexo.
– Agora diz-me, estás a gozar comigo, não?
– Não, convidei-os mesmo.
Sorri. Olhei para ela, com a calma com que tinha
falado com ela até agora, e disse-lhe, com toda essa calma:
– Sabes, fizeste bem. Tens comida no frigorífico,
tens vinho na dispensa, e estás à vontade. Fica como se estivesses em tua casa.
Encerrei o computador, vesti-me sem lhe dizer mais
uma palavra e saí porta fora.
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