Desde os meus catorze anos que vivi obcecado por
este livro, mais ainda desde que soube que havia algo de real por detrás desta
história. Li-o pela primeira vez de forma algo desinteressada, pelo menos até
que houve alguém que me disse que pelo menos parte dele era verídica.
Depois veio a paixão, primeiro pela história,
depois pelas notícias da época que deram conta das duas mortes e dois dias
depois do suicídio de Miguel Lages. Por fim, pela própria vida dele.
E hoje, no dia em que faço vinte e cinco anos,
cumpro um sonho. Comprei esta casa há um ano. Estava quase em ruínas e foi uma
pechincha. Ninguém a queria e corria o rumor de que estava assombrada. Um ano e
muitas obras depois, eis-me a meter a chave à porta. Pela primeira vez não me
limito a vir de passagem ver como as coisas estão, venho para passar uns dias.
Entrei e fui directamente às coisas mundanas, com
por exemplo, arrumar a comida que trouxe no frigorífico, retirar os panos que
tapam os móveis.
Depois de tudo isto, sentei-me no terraço a
observar o mar onde os três mergulharam, onde estiveram. Experimento a sensação
de familiaridade que tive da primeira vez que pisei este terraço, como se já
aqui tivesse estado antes, deixei-me invadir pelas sensações.
Resolvi fazer o que o Miguel fizera, despi-me e,
completamente nu, caminhei em direcção à praia. Entrei convicto nas ondas e deixei‑me
levar. Percebi como ele se sentiu naquele dia. Assoberbado.
Voltei para casa, tomei um duche e desfrutei da
solidão.
A noite foi povoada de sonhos vividos, como que de
recordações, sonhei com o primeiro encontro dos dois, com a primeira vez que se
beijaram, com a primeira vez que fizeram amor, com Laura, com Henrique, com o
assassinato. Acordei a meio da noite no meio de um desespero incrível. Era com
se tivesse vivido tudo nestes instantes, na primeira pessoa, na pele do próprio
Miguel.
Vi-me assaltado por sensações que nunca tivera,
senti-me estranho. Ainda que sendo eu sentia-me outro alguém, aliás, cada vez
mais, mesmo acordado, era assaltado por imagens que nada tinham a ver com as
minhas vivências.
«Devo estar a ficar maluco», pensei. Olhei para o
relógio. Quatro e meia da manhã. Servi-me um whisky. Nem era bebida que apreciasse, mas precisava algo forte.
Tinha acabado de me sentar novamente e de acender
um cigarro quando me bateram à porta. Fiquei sobressaltado, amedrontado, mesmo.
Fui à porta. Lá fora duas mulheres, abri uma nesga da porta.
– Sim? – Perguntei.
– Olá, Diogo – disse uma delas, a morena com uma
voz que fez com que parecesse que me tinham dado a provar o mel mais doce e
delicado.
– Desculpe, conhecemo-nos?
– Não da forma como perguntas, mas de uma certa
maneira, sim.
Continuei estático, apenas com a porta entreaberta
e com estes diálogos a ressoar na minha mente.
– Não nos convidas para entrar?
A minha hesitação era como o meu silêncio.
Notória. Elas riram. A loura falou finalmente.
– Diogo, podes estar descansado. Não estamos aqui
para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de
alguma maneira, e estamos completamente sozinhas. Então? Deixas-nos entrar?
Estas frases deixavam-me perplexo, não só por as
conhecer de cor, mas porque pareciam um estranho dejà vu. Franqueei-lhes a porta, sem dizer uma única palavra. Elas
entraram, tiraram as capas que as cobriam e penduraram-nas no cabide que ali
estava sem sequer olharem para ele, como se fosse um gesto absolutamente
familiar, como se conhecessem a casa.
Fechei a porta e ficamos os três na sala. Sem uma
palavra a loura veio ter comigo, colou o seu corpo ao meu, abraçou-me e o
abraço teve a sensação de um reencontro há muito esperado. Depois beijou-me com
uma paixão e uma saudade de uma vida inteira. Um beijo como me lembrava ter
sentido há muito. Mas não neste tempo, não nesta vida.
Ela afastou-se e as emoções que senti eram tão
fortes que as lágrimas não se contiveram nos meus olhos. Ela sorriu e perguntou:
– Lembras-te?
Olhei para a morena que olhava enternecida para mim.
– Lilith? – Perguntei-lhe.
Ela acenou afirmativamente com a cabeça,
aproximou-se e beijou‑me também. Finalmente percebia tudo. Ela nunca faltara às
suas promessas. «Um dia vais ser capaz de compreender», «Tudo ficará bem».
Compreendia. Tudo estava bem.
– Os tempos que te ausentavas? – Perguntei a
Lilith.
– Sim.
– Os sinais da tua origem?
– Sim.
– A imortalidade?
– Sim.
– Meus amores – disse a ambas –, é bom rever-vos.
Foi Laura quem respondeu.
– É bom estar contigo, Miguel.
Passámos imenso tempo a rever recordações,
momentos, situações. Eu e Laura rimo-nos dos nossos medos da altura. Das nossas
frustrações, da nossa luta contra o tempo.
Depois de muito conversarmos, os corpos falaram
mais alto e a saudade também. Acabámos envolvidos os três numa demonstração do
amor que sentíamos. Por fim, cedemos, caímos num sono pesado.
Mais uma vez o meu sono foi assaltado por cenas de
paraísos distantes, recordações de passados que não conhecia.
Acordei já ao princípio da tarde, com uma
felicidade enorme, vi-as ao meu lado e tive a certeza de que não se tratava de
um sonho. Levantei-me deixando-as a dormir, tomei um duche e comi qualquer
coisa e fui para o terraço desfrutar do sol e do mar. O mundo afinal era mais
simples do que parecia. Estava era coberto por um véu de complexidade que não
nos deixava ver mais além.
Foi então que ouvi um carro a chegar. Atravessei a
casa e fui até à entrada. À minha porta estava parado um táxi. Um senhor, aparentando
cinquenta e poucos anos, saiu e o táxi arrancou. Ele viu-me à porta e
aproximou-se.
– O Senhor chama-se Diogo, não é?
– Sim.
– Tem consigo duas jovens…
Fiquei a olhar para ele sem saber se havia de
responder. Mas também ele não fizera uma pergunta. Ele continuou.
– Gostava de dar umas palavrinhas a uma delas, a
morena, se não se importa…
Havia algo de familiar neste homem, mas não sabia
dizer o quê. No entanto, senti-me seguro. Algo no sorriso franco dele era extremamente
reconfortante.
– Entre – convidei.
– Obrigado.
Ele entrou e eu fechei a porta atrás dele.
– Não se quer sentar? – Perguntei-lhe. – Eu vou
chamá-la.
– Já agora, aproveito a sua hospitalidade – disse
ele, sentando-se com leveza.
Entrei no quarto que estava na penumbra, deixando
uma nesga da porta aberta e aproximei-me de Lilith.
-Amor –, sussurrei-lhe ao ouvido –, amor, acorda.
Ela começou a despertar devagar, a espreguiçar-se.
– Acorda, amor, está ali alguém para falar
contigo.
Quando ouviu isto abriu os olhos.
– Quem?
– Não sei, não conheço. Chegou agora mesmo e pediu
para falar contigo. Diz que gostava de te dar umas palavrinhas.
Ela levantou-se um pouco, de forma a poder olhar
para a sala e ver quem era através da nesga da porta que eu tinha deixado
aberta.
Assim que viu quem era o homem, levantou-se num
repente, acordando Laura e saiu disparada, nua como estava, em direcção ao
homem. O homem não estranhou minimamente vê-la naqueles preparos.
– Pai! – Gritou enquanto se atirava aos seus
braços. – Pai!
Cobria-lhe a cara de beijos, chorava de felicidade
pura e não o largava.
Estava perplexo. Pai?
– Calma, minha filha – ria-se o homem –, olha que
assim ainda me estrafegas, ou qualquer coisa assim.
Laura, que acordara entretanto, ficou parada à
porta, estática, igualmente nua. O seu rosto estava sério e as lágrimas corriam
também. O homem continuou a falar com Lilith.
– Então, filha, a espera valeu a pena?
– Sim, pai, valeu a pena.
– Achas que ele aprendeu?
– Tenho a certeza.
As lágrimas continuavam a correr pelo rosto de
Laura. O homem desviou finalmente o olhar de Lilith e olhou para ela.
Sorriu-lhe. Ela correu para ele e abraçou-o, aninhou-se nele também. Ele
cobriu-lhe a testa de beijos.
– Eva – dizia ele –, minha doce Eva, estavas assim
com tanto receio de vir ter comigo?
Eva. Subitamente tudo se encaixou no sítio, de
repente soube quem sempre fui, soube o meu propósito. Prostrei-me à frente do
homem.
– Yahvé, meu senhor… – comecei a dizer. Ele
interrompeu-me.
– Adão, meu filho, não te quero ver prostrado
diante de mim, quero o teu abraço.
Olhei para ele com os olhos rasos de lágrimas.
– Pai!
– Vem, criança.
Ficámos os quatro durante um longo tempo
envolvidos num abraço. Por fim Yahvé disse:
– Finalmente, podemos recomeçar…
FIM
E esta...eu heim?
ResponderEliminarUm Adão na terra e a volta ao Paraíso?
Nos contos de ficção a imaginação é tudo com que o escritor pode contar.
Ainda não consegui formar uma opinião coerente com o que li.
Quando a formar, dir-te-ei.
Beijo e bom fim de semana, Gil
Lol
EliminarCompreendo-te! Eu tb não tenho uma... ;)
Bjs