sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Lilith - Epílogo

 

Desde os meus catorze anos que vivi obcecado por este livro, mais ainda desde que soube que havia algo de real por detrás desta história. Li-o pela primeira vez de forma algo desinteressada, pelo menos até que houve alguém que me disse que pelo menos parte dele era verídica.

Depois veio a paixão, primeiro pela história, depois pelas notícias da época que deram conta das duas mortes e dois dias depois do suicídio de Miguel Lages. Por fim, pela própria vida dele.

E hoje, no dia em que faço vinte e cinco anos, cumpro um sonho. Comprei esta casa há um ano. Estava quase em ruínas e foi uma pechincha. Ninguém a queria e corria o rumor de que estava assombrada. Um ano e muitas obras depois, eis-me a meter a chave à porta. Pela primeira vez não me limito a vir de passagem ver como as coisas estão, venho para passar uns dias.

Entrei e fui directamente às coisas mundanas, com por exemplo, arrumar a comida que trouxe no frigorífico, retirar os panos que tapam os móveis.

Depois de tudo isto, sentei-me no terraço a observar o mar onde os três mergulharam, onde estiveram. Experimento a sensação de familiaridade que tive da primeira vez que pisei este terraço, como se já aqui tivesse estado antes, deixei-me invadir pelas sensações.

Resolvi fazer o que o Miguel fizera, despi-me e, completamente nu, caminhei em direcção à praia. Entrei convicto nas ondas e deixei‑me levar. Percebi como ele se sentiu naquele dia. Assoberbado.

Voltei para casa, tomei um duche e desfrutei da solidão.

A noite foi povoada de sonhos vividos, como que de recordações, sonhei com o primeiro encontro dos dois, com a primeira vez que se beijaram, com a primeira vez que fizeram amor, com Laura, com Henrique, com o assassinato. Acordei a meio da noite no meio de um desespero incrível. Era com se tivesse vivido tudo nestes instantes, na primeira pessoa, na pele do próprio Miguel.

Vi-me assaltado por sensações que nunca tivera, senti-me estranho. Ainda que sendo eu sentia-me outro alguém, aliás, cada vez mais, mesmo acordado, era assaltado por imagens que nada tinham a ver com as minhas vivências.

«Devo estar a ficar maluco», pensei. Olhei para o relógio. Quatro e meia da manhã. Servi-me um whisky. Nem era bebida que apreciasse, mas precisava algo forte.

Tinha acabado de me sentar novamente e de acender um cigarro quando me bateram à porta. Fiquei sobressaltado, amedrontado, mesmo. Fui à porta. Lá fora duas mulheres, abri uma nesga da porta.

– Sim? – Perguntei.

– Olá, Diogo – disse uma delas, a morena com uma voz que fez com que parecesse que me tinham dado a provar o mel mais doce e delicado.

– Desculpe, conhecemo-nos?

– Não da forma como perguntas, mas de uma certa maneira, sim.

Continuei estático, apenas com a porta entreaberta e com estes diálogos a ressoar na minha mente.

– Não nos convidas para entrar?

A minha hesitação era como o meu silêncio. Notória. Elas riram. A loura falou finalmente.

– Diogo, podes estar descansado. Não estamos aqui para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de alguma maneira, e estamos completamente sozinhas. Então? Deixas-nos entrar?

Estas frases deixavam-me perplexo, não só por as conhecer de cor, mas porque pareciam um estranho dejà vu. Franqueei-lhes a porta, sem dizer uma única palavra. Elas entraram, tiraram as capas que as cobriam e penduraram-nas no cabide que ali estava sem sequer olharem para ele, como se fosse um gesto absolutamente familiar, como se conhecessem a casa.

Fechei a porta e ficamos os três na sala. Sem uma palavra a loura veio ter comigo, colou o seu corpo ao meu, abraçou-me e o abraço teve a sensação de um reencontro há muito esperado. Depois beijou-me com uma paixão e uma saudade de uma vida inteira. Um beijo como me lembrava ter sentido há muito. Mas não neste tempo, não nesta vida.

Ela afastou-se e as emoções que senti eram tão fortes que as lágrimas não se contiveram nos meus olhos. Ela sorriu e perguntou:

– Lembras-te?

Olhei para a morena que olhava enternecida para mim.

– Lilith? – Perguntei-lhe.

Ela acenou afirmativamente com a cabeça, aproximou-se e beijou‑me também. Finalmente percebia tudo. Ela nunca faltara às suas promessas. «Um dia vais ser capaz de compreender», «Tudo ficará bem». Compreendia. Tudo estava bem.

– Os tempos que te ausentavas? – Perguntei a Lilith.

– Sim.

– Os sinais da tua origem?

– Sim.

– A imortalidade?

– Sim.

– Meus amores – disse a ambas –, é bom rever-vos.

Foi Laura quem respondeu.

– É bom estar contigo, Miguel.

Passámos imenso tempo a rever recordações, momentos, situações. Eu e Laura rimo-nos dos nossos medos da altura. Das nossas frustrações, da nossa luta contra o tempo.

Depois de muito conversarmos, os corpos falaram mais alto e a saudade também. Acabámos envolvidos os três numa demonstração do amor que sentíamos. Por fim, cedemos, caímos num sono pesado.

Mais uma vez o meu sono foi assaltado por cenas de paraísos distantes, recordações de passados que não conhecia.

Acordei já ao princípio da tarde, com uma felicidade enorme, vi-as ao meu lado e tive a certeza de que não se tratava de um sonho. Levantei-me deixando-as a dormir, tomei um duche e comi qualquer coisa e fui para o terraço desfrutar do sol e do mar. O mundo afinal era mais simples do que parecia. Estava era coberto por um véu de complexidade que não nos deixava ver mais além.

Foi então que ouvi um carro a chegar. Atravessei a casa e fui até à entrada. À minha porta estava parado um táxi. Um senhor, aparentando cinquenta e poucos anos, saiu e o táxi arrancou. Ele viu-me à porta e aproximou-se.

– O Senhor chama-se Diogo, não é?

– Sim.

– Tem consigo duas jovens…

Fiquei a olhar para ele sem saber se havia de responder. Mas também ele não fizera uma pergunta. Ele continuou.

– Gostava de dar umas palavrinhas a uma delas, a morena, se não se importa…

Havia algo de familiar neste homem, mas não sabia dizer o quê. No entanto, senti-me seguro. Algo no sorriso franco dele era extremamente reconfortante.

– Entre – convidei.

– Obrigado.

Ele entrou e eu fechei a porta atrás dele.

– Não se quer sentar? – Perguntei-lhe. – Eu vou chamá-la.

– Já agora, aproveito a sua hospitalidade – disse ele, sentando-se com leveza.

Entrei no quarto que estava na penumbra, deixando uma nesga da porta aberta e aproximei-me de Lilith.

-Amor –, sussurrei-lhe ao ouvido –, amor, acorda.

Ela começou a despertar devagar, a espreguiçar-se.

– Acorda, amor, está ali alguém para falar contigo.

Quando ouviu isto abriu os olhos.

– Quem?

– Não sei, não conheço. Chegou agora mesmo e pediu para falar contigo. Diz que gostava de te dar umas palavrinhas.

Ela levantou-se um pouco, de forma a poder olhar para a sala e ver quem era através da nesga da porta que eu tinha deixado aberta.

Assim que viu quem era o homem, levantou-se num repente, acordando Laura e saiu disparada, nua como estava, em direcção ao homem. O homem não estranhou minimamente vê-la naqueles preparos.

– Pai! – Gritou enquanto se atirava aos seus braços. – Pai!

Cobria-lhe a cara de beijos, chorava de felicidade pura e não o largava.

Estava perplexo. Pai?

– Calma, minha filha – ria-se o homem –, olha que assim ainda me estrafegas, ou qualquer coisa assim.

Laura, que acordara entretanto, ficou parada à porta, estática, igualmente nua. O seu rosto estava sério e as lágrimas corriam também. O homem continuou a falar com Lilith.

– Então, filha, a espera valeu a pena?

– Sim, pai, valeu a pena.

– Achas que ele aprendeu?

– Tenho a certeza.

As lágrimas continuavam a correr pelo rosto de Laura. O homem desviou finalmente o olhar de Lilith e olhou para ela. Sorriu-lhe. Ela correu para ele e abraçou-o, aninhou-se nele também. Ele cobriu-lhe a testa de beijos.

– Eva – dizia ele –, minha doce Eva, estavas assim com tanto receio de vir ter comigo?

Eva. Subitamente tudo se encaixou no sítio, de repente soube quem sempre fui, soube o meu propósito. Prostrei-me à frente do homem.

– Yahvé, meu senhor… – comecei a dizer. Ele interrompeu-me.

– Adão, meu filho, não te quero ver prostrado diante de mim, quero o teu abraço.

Olhei para ele com os olhos rasos de lágrimas.

– Pai!

– Vem, criança.

Ficámos os quatro durante um longo tempo envolvidos num abraço. Por fim Yahvé disse:

– Finalmente, podemos recomeçar…

 

 

FIM

2 comentários:

  1. E esta...eu heim?
    Um Adão na terra e a volta ao Paraíso?
    Nos contos de ficção a imaginação é tudo com que o escritor pode contar.
    Ainda não consegui formar uma opinião coerente com o que li.
    Quando a formar, dir-te-ei.
    Beijo e bom fim de semana, Gil

    ResponderEliminar

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!