segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Chuva - II

 

Lembro-me claramente daquele dia, um dia em que a chuva miudinha caia de um céu pintado em tons de cinzento-escuro. Lembro-me porque foi o último dia em que realmente senti algo. À medida que o caixão que continha os restos mortais da minha mãe descia à terra e era colocado ao lado de um outro que continha os do meu pai, lembrava-me dele e de como ele dizia “Um homem não chora…”, e apesar do que sentia por dentro, uma vontade enorme de me mandar para cima daqueles caixões e ficar ali, do pânico e do medo do que viria a seguir, da solidão que me invadia, aquelas palavras ressoaram em mim, como um ultimo recado, e as lágrimas secaram nos meus olhos e quis, com toda a força do meu ser, deixar de lado todos aqueles sentimentos. E consegui. Tinha sete anos e foi a última vez que chorei.

Não olhes assim para mim, estou apenas a relatar um facto como qualquer outro. Não espero simpatia ou qualquer outro sentimento da tua parte.

Fui viver com uma tia que tinha já três filhos e eu acabei por ser mais um encargo para ela. Percebi, mesmo antes de entrar à porta de casa que nunca teria nada de meu, verdadeiramente meu, a não ser os meus pensamentos. E resolvi não falar, não dizer nada, também porque não sentia e não havia nada para dizer. Na minha cabeça limitava-me a existir.

Claro que isto levou a uma serie de situações. Os meus primos, cujo mais novo era pouco mais velho do que eu, implicavam comigo e descobriram que podiam fazer fosse o que fosse que eu não diria nada, uma vez que não falava. Claro que abusaram da situação. Maltratavam-me, gozavam-me, na rua nem queriam ser vistos ao pé de mim e fizeram coisas com um requinte de crueldade que apenas uma criança é capaz. Ainda assim não liguei nem quebrei o meu silêncio.

Havia conforto no meu silêncio, como se por não falar houvesse algo exclusivamente meu, os meus pensamentos. O facto de não os partilhar dava-lhes uma força enorme em mim.

Foi também por esta altura que descobri os livros que lia avidamente. A minha tia ia todas as semanas à biblioteca municipal buscar livros para mim. Acho que chegou a uma altura em que nem os escolhia, já só se esforçava por trazer algo que eu não tivesse lido. Ganhou este hábito quando um psiquiatra, um dos muitos que me viu e consultou, notou esse meu interesse e disse que deveria ser encorajado.

À custa de tanto ler, as minhas notas escolares eram altíssimas, mas tinha problemas com os professores, isto já para não falar dos colegas. Mas a verdade é que tudo isto me permitiu criar o meu espaço onde eu era intocável. Era um espaço que não era físico e como tal releguei todos os espaços físicos para segundo plano.

Claro que aos poucos comecei a aperceber-me de que esta “não integração” da minha parte se poderia tornar ainda mais grave no futuro, e na minha cabeça começou a surgir a ideia de criar a minha mascara, a minha fachada, e aos poucos construi-o como uma personagem de um dos livros que lia. Demorei o meu tempo, fui metódico, vi todos os anglos da personalidade que deveria ter, e, quando me senti pronto quebrei o meu silêncio, para surpresa de toda a gente.

Na verdade não o quebrei. Eu continuava em silêncio e hoje, agora enquanto falo contigo, é a primeira vez que o quebro. Mas o facto de a minha fachada falar permitiu-me começar a ter menos problemas e não ter palermas e tentar dar nomes técnicos a coisas que não conseguiam e não conseguem entender. Só por isso valeu a pena criar a minha fachada.

A minha fachada não era brilhante, apenas se pautava pela mediania. As notas escolares desceram para níveis aceitáveis, procurando não desapontar mas não deslumbrar. As relações e as conversas que eram tidas eram as que se esperava ter. Não havia uma única demonstração de brilhantismo ou de estupidez absoluta.

E assim, aos poucos, acabei por me diluir na maré, deixar de ser uma preocupação, deixar de ser notado. Apenas tinha de me certificar que teria sempre a reacção certa no momento certo. Tinha de me rir quando contavam uma piada, mostrar choque num evento ou notícia traumática, mostrar fúria e revolta quando havia algo contra mim…

…mas a verdade é que nada disto foi alguma vez sentido. Na verdade acho que o único verdadeiro sentimento que tive alguma vez foi desprezo por tudo o que me rodeava, mas se calhar nem isso. No fundo acho que não passava de indiferença…

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