sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Lilith - XXVII - Henrique

 

Laura olhou para o telemóvel que tinha acabado de dar um aviso de mensagem recebida.

– Parece que ele vai chegar um bocadinho atrasado – disse ao ler a mensagem.

Ainda não o conhecia e já não gostava dele. Claro que, a partir deste momento, esperava a qualquer momento uma outra que anunciasse que já não viria. Mas como uma mensagem dessas até me agradaria, tinha a certeza de que não chegaria.

O empregado chegou para recolher os nossos pedidos, mas nós limitámo-nos a dizer-lhe que ainda estávamos à espera de alguém, ficámos com uma das ementas na mesa e devolvemos as restantes. Elas continuavam a tagarelar alegremente e eu pedi-lhes desculpa e levantei-me da mesa. Saí do restaurante e fiquei perto da porta, estrategicamente colocado perto do cinzeiro que ali havia para que pessoas como eu não tivessem de ir muito longe.

Gostava sinceramente do ambiente destes restaurantes do Parque das Nações. Era uma fiada de bares, cafés e restaurantes todos completamente iguais por fora, padronizados, que faziam aproveitamento das estruturas que cá tinham ficado. Eram tão descaracterizados por fora que era quase impossível escolher um apenas pelo seu aspecto. Tinha de se parar um pouquinho e olhar e tentar perceber o que é que estávamos a ver na realidade, se um restaurante, um bar, um café. Veio-me à ideia de repente que aquelas linhas de edifícios junto ao rio eram como as pessoas, tentavam ser todas iguais à superfície para encaixar num espaço, mas depois, por dentro, as diferenças chegavam a ser enormes, e se, por um mero acaso, deixássemos a sorte decidir, nem sempre o que está por dentro nos agradaria.

Estava eu perdido nestes pensamentos profundos quando um tipo chegou à porta do restaurante, telemóvel na mão, a falar quase aos gritos, como se o facto de falar mais alto ajudasse a pessoa que está do outro lado a compreender o que se está a dizer. Acho que, por vezes, valia mais a pena desligar o aparelho e gritar mesmo. Sempre se poupava o custo da comunicação.

«Não querida, não vale a pena esperares por mim. Vim só comer qualquer coisa rapidinho e vou ficar a fazer serão até sei lá que horas… Sabes lá, pá. Sabes o Fernando? Sim, o da contabilidade. Lixou p’ra lá uma série de coisas e vamos ter que estar que nem uns doidos a tentar corrigir aquilo tudo. Na segunda às oito tenho de estar nas finanças para resolver isto tudo, senão…»

Olhei com mais atenção para o tipo. Estatura mediana, um pouco forte, mas não demais, cabelo não muito curto, grisalho, cuidadosamente penteado para trás. Um sobretudo preto, longo, por cima de um fato azul-escuro com um corte impecável, camisa cor‑de‑rosa claro e gravata de seda azul forte. No rosto estava aquela expressão de tipo malandro, habituado a conseguir o que quer, e uns olhos vivos, de um azul forte. Enquanto continuava a conversa ao telemóvel olhou para mim de relance.

«Não, querida, não te preocupes… Olha, só não esperes por mim, que eu não sei a que horas vou chegar e se vir que quando acabarmos estou muito cansado fico a dormir no sofá do escritório, tá bem? Vá querida, beijos… eu também… Vá, ciao.» E desligou.

Olhou para mim enquanto metia o telemóvel no bolso e eu dava mais uma passa longa. Encolheu os ombros como quem diz «O que é que se há-de fazer?» e sorriu para mim. Acho que olhou para mim como outro gajo-gajo e deve ter pensado para com ele, «Não estivemos já todos aqui?». Senti-me completamente indiferente a ele. Ainda assim, esbocei um sorriso. Afinal o que é que me custava um sorriso? Ele seguiu e entrou no restaurante. Eu fiquei a acabar o cigarro.

Enquanto dava as últimas passas, pensei nos Fernandos do mundo que, coitados, lixavam sempre qualquer coisa. Mas este era ainda mais grave. Lixou tudo num sábado. O Fernando devia ter vergonha. E com este pensamento esmaguei o cigarro contra a chapa metálica fazendo voar uma ou duas fagulhas do borrão e entrei no restaurante novamente.

E se até ai estava desagradado mas relativamente bem-disposto, assim que vi a figura sentada à minha mesa deixei de estar. Afinal o coitado do «Fernando» chama-se Laura, e não é contabilista. Estranha curiosidade.

Assim que cheguei à mesa, Laura apressou-se:

– Miguel, ainda bem que chegaste, olha, este é o Henrique. Henrique, este é o Miguel.

Apertámos as mãos num cumprimento sólido, mais da parte dele que da minha. Apertou-me as mãos e olhou-me como se tivesse que marcar posição, como um macho que demarca território. E eu, embora tenha permanecido sério, quase soltei uma risada por causa desta atitude. Percebi Henrique naquele momento, e por mais que custasse a Laura, resolvi que a atitude sadia que devia ter para com ele era ignorá-lo o mais possível. O que não quereria dizer que seria de alguma forma deselegante para com ele, apenas lhe daria a atenção indispensável.

Ele escolheu o que queria jantar e ficámos na conversa, aliás, ficaram, que eu remeti-me mais ao papel de observador, enquanto a comida não chegava. E enquanto os três falavam do sexo dos anjos, ausentei-me dali. Aliás, por esta altura já nem sabia o que estava ali a fazer. E eis que, vinda do nada, chegou a minha deixa para entrar forçosamente na conversa.

– Então – disse-me o Henrique –, a Laura disse-me que és um escritor famoso.

Olhei para ele ainda semi-ausente e forcei-me a uma resposta.

– Bem, sou um escritor. A parte do famoso já não sei.

– Ora, ora. Deixa de ser modesto, pá. Sei bem que os teus livros venderam umas coisas.

Ora aqui estava a fama quantificada pelo volume de vendas. Se já o tinha percebido antes, neste momento ele ficou transparente. O sucesso media-se pela capacidade de fazer dinheiro. Tudo o resto era para ele inconsequente.

– Venderam umas coisas, sim. Se calhar tinham algo de interessante lá dentro…

Lilith olhou para mim num tom reprovador. Foi apenas um milésimo de segundo, um cruzamento de olhares, mas ela disse tudo naquele instante. Ainda assim, eu não retirava uma vírgula ao que disse.

– Pois, para venderem assim deviam ter – respondeu Henrique ao meu comentário, não se apercebendo ou não ligando ao tom irónico com que eu tinha dito aquela frase. Isto chateou-me ainda mais e deixou-me com mais vontade de ser incisivo.

Durante o resto do jantar as conversas foram sendo superficiais e eu fui-me mantendo à parte o mais possível. Respondia apenas a uma ou outra coisa quando solicitado, e mesmo assim esforçando‑me para que as minhas respostas não induzissem a novas perguntas ou que não dessem azo ao prolongamento da minha participação. Basicamente, este jantar estava a ser uma obrigação daquelas difíceis de cumprir.

No fim do jantar, Henrique sugeriu irmos até ao bar onde eu tinha conhecido Laura, ideia que foi acolhida com entusiasmo quer por ela, quer por Lilith. Eu limitei-me a respirar fundo. Não me apetecia ir, queria enfiar-me no meu canto, mas sabia que isso deixaria Laura triste. Acabei por ir com eles. Laura seguiu com Henrique e Lilith veio comigo.

Entrámos no carro e Lilith, embora sem dizer uma palavra, olhou para mim com um sorriso malandro.

– Ciúmes? – Acabou por me perguntar.

– Não. Nada. Só não gosto dele.

– Porquê?

– Olha, porque ele representa lindamente as pessoas de quem tentei isolar-me nos últimos anos. É falso. À entrada do restaurante vinha ao telemóvel a dar uma desculpa esfarrapada a alguém, presumo que à mulher. Mas isso nem é o que me desagrada, é todo o conjunto, há qualquer coisa nele que nem te sei explicar e que não bate certo.

– E isso não terá a ver com o facto de tu teres dormido com a Laura?

– Não, acho que não.

– Mas tem a ver com o facto de ele querer dizer algo para ela…

– Como assim?

– Bem, a verdade é que se ele não fosse o namorado da Laura tu até lhe darias um desconto. Achas que ela está mal com ele e por isso não há descontos. Queres protegê-la.

Isto era absolutamente óbvio. O meu mau estar em relação a ele tinha a ver com isto, de certeza.

– Bem, posto assim, és capaz de ter razão…

– Sei que tenho. Tu gostas da Laura, não é?

– Gosto. Não como gosto de ti, mas sinto uma afinidade grande com ela e nem sei explicar o porquê.

Lilith soltou uma gargalhada.

– Eu sei, meu querido. Eu também sinto essa afinidade. Mas faz-me um favor, não entristeças a Laura, O.K.?

Sorri.

– Não prometo, mas vou tentar.

– Tenta…

A vantagem de ir para aquele bar é que o movimento e o barulho tornariam difíceis as conversas, pelo que a presença de Henrique se tornaria mais tolerável, como seria mais fácil para mim ignorá‑lo.

À hora a que chegámos o bar estava ainda praticamente vazio. Sentámo-nos numa mesa para quatro, ficando Henrique à minha frente, Lilith à minha direita e Laura à minha esquerda. Pedimos as bebidas. Eu mantive-me fiel ao meu whisky e mandei vir uma água com gás para ir misturando a gosto. Henrique imitou-me. Elas pediram bebidas mais elaboradas.

As duas falavam de tudo e mais alguma coisa e Henrique metia-se na conversa das duas. Eu ia prestando atenção à música e ao ambiente. À medida que o tempo passava, o bar ia enchendo, tornando-se mais vivo e mais barulhento e eu tinha cada vez mais desculpa para me tornar progressivamente ausente.

Eis que, de repente, elas se levantaram da mesa.

– Vocês desculpem mas temos de ir… retocar a maquilhagem.

E foram, deixando-nos sozinhos.

Tentei manter a minha ausência, mas tive noção de que seria quase impossível estando os dois sozinhos na mesa, frente a frente. Reparei imediatamente que a postura dele mudou assim que elas se afastaram. Tentou observar rapidamente o que nos rodeava, e a seguir ficou à espera de uma oportunidade de meter conversa comigo. Percebi que não havia volta a dar e dei-lhe finalmente alguma atenção, que ele aproveitou de imediato.

– Sempre gostava de saber porque é que as gajas tem de ir à casa de banho aos pares… – disse ele.

– Para dizerem mal de alguém entretanto – respondi eu, desinteressadamente. Ele riu estrondosamente.

– Achas mesmo?

– Só pode – respondi, tomando um gole de seguida.

Fez-se mais um bocadinho de silêncio.

– Bem, isto hoje está… – disse ele.

– Está o quê?

– Pá, está bom, muito bom. Já viste? Está aqui muito material de primeira categoria…

Não gostei do comentário. Mesmo. Este tipo era absolutamente linear, básico. Enfadava-me estar à mesma mesa com ele.

– Pois, não tenho prestado muita atenção a isso… – respondi-lhe.

– Também, percebo-te, com uma gaja como a tua… – não respondi, mas ele nem se tocou. – Essa coisa de ser escritor famoso tem que se lhe diga, não?

– Como assim?

– Então, vais-me dizer que é fácil «sacar» uma gaja como a tua. Jovenzinha, um monumento, tipo capa de revista. Aposto que anda toda babadinha pelo «escritor», não? Deves ter gajas assim aos montes…

E se até aqui eu o ia tolerando, de repente deixei de ter vontade de o fazer.

– Volto já – anunciei-lhe, à medida que me levantava e me dirigia à casa de banho. Pelo caminho cruzei-me com elas. Laura seguiu. Lilith parou.

– Deixaste o Henrique sozinho na mesa?

Vi que Laura já se tinha afastado.

– O tipo é intragável – respondi-lhe.

– Estás a ser deselegante.

– Pode ser que sim, mas já não tenho idade nem paciência para aturar gajos assim.

Lilith mostrou um olhar reprovador, mas eu nem liguei. Segui para a casa de banho.

Enquanto lá estava percebi que, decididamente, não queria estar ali. Voltei para a mesa onde tinham voltado a estar todos na conversa. Sentei-me, bebi o resto do whisky de um trago e anunciei:

– Vocês desculpem, mas eu estou com uma dor de cabeça fortíssima e estar aqui neste barulho não me está a fazer muito bem. Acho que vou andando.

– Mas estás bem? – Perguntou de imediato Laura, preocupada.

– Estou, não te preocupes. Isto dá-me às vezes, mas um bocadinho de descanso faz milagres.

Lilith fuzilou-me com o olhar.

– Que pena – disse ela –, eu até estava a gostar de aqui estar…

– Mas se quiseres, ficas. Nós depois levamos-te. Não te importas, pois não, querido? – Perguntou a Henrique.

– Claro que não – respondeu ele prontamente.

«Claro que não», pensei eu. Lilith fez um sorriso malicioso.

– Então, fiquem bem – disse eu, despedindo-me. – Espero-te mais logo? – Perguntei a Lilith.

– Claro! – Disse ela.

– Então, até logo.

Dei-lhe um beijo, saí, enfiei-me no carro e rumei à casa de Lisboa.

Adorei a paz que senti no caminho.

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