Sentado no meu terraço, a sentir o sol da tarde, a
sentir o vento frio mas a desfrutar o sol, indolentemente, preguiçosamente…
Preguiçosamente, não! Em paz. Uma paz harmoniosa, como se estivesse a ouvir uma
sinfonia, rodeado como estava com o barulho do vento, o ruído das ondas.
Na distância Lilith dançava nas ondas num bailado
que parecia coreografado desde sempre. Lembrava-me da primeira vez que a vira,
neste bailado mas sem me aperceber da música, de tão absorto que estava em mim
próprio e no meu mundo privado. Três semanas depois, as paredes do meu mundo haviam
ruído, duvidava de tanta coisa, o mundo era menos certo, mas as cores eram mais
vibrantes e podia dar-me ao luxo de ouvir esta melodia.
Ela subiu a praia, entrou no terraço, deitou-se ao
meu lado ainda molhada e deixou o seu corpo desfrutar os elementos enquanto eu
tentava proteger do frio a pele que estava à vista.
Ficámos os dois em silêncio, durante um longo
tempo. Foi ela quem o quebrou.
– Ainda queres saber?
Tentei localizar-me. Fui parar à nossa conversa no
restaurante em Sintra.
– Mais ainda que antes.
Ela sorriu.
– Vou ter de recuar um bocado. – Virou-se meio de
lado, na cadeira, para olhar melhor para mim e continuou: – Na Suméria comecei
a ser vista como uma deusa. Primeiro como rainha, mas à medida que o tempo foi
passando começaram a dar-me outra dimensão. É verdade que reinava, mas nas
minhas, digamos, ausências, alguém tinha de comandar. Sabes, numa era em que
não havia tecnologia e que a força comandava, as mulheres retiravam-se para as
tarefas que exigiam menos esforço ou agressividade. Isto levou os homens,
sobretudo os ligados aos exércitos, a ascenderem a posições de poder. E nessas
minhas ausências eles acabaram por ficar no comando.
– Mas ausentavas-te com frequência?
– Alguma… – disse com o ar de quem não me queria
dar mais explicações.
Não insisti. Se aprendera alguma coisa era a
respeitar os tempos dela. Ela continuou.
– Sabes aquela sensação que se tem na adolescência
de que o tempo custa a passar?
Acenei afirmativamente.
– Pois eu, ao fim de quinhentos anos, sentia-me
assim. Inquieta, como se algo cá dentro quisesse mais. Precisava de algo novo.
Tinham-me transformado em pouco mais que uma figura decorativa. Achei que ali
estava tudo feito. Não havia nada de novo, havia até resistência à novidade. As
pessoas tinham-se tornado prósperas, acomodadas. Mas também percebi que seria
difícil impor-me, enquanto mulher, noutro sítio. Com os Sumérios aconteceu porque
foram eles que se juntaram à minha volta. Eu não me queria afastar de novo,
sabes? Antes pelo contrário, queria sair do pedestal onde me puseram.
Compreendi-a tão bem… Gostava de ser admirada, mas
não de ser idolatrada.
– Não te achas realmente acima de ninguém, pois
não? – Perguntei.
– Não, não acho.
– Mas tens a noção do quanto és extraordinária?
– Sou fruto de circunstâncias extraordinárias. Mas
isso não me faz diferente de ti. Sinto como tu, sofro como tu, anseio como tu.
Extraordinária por circunstância, mas não
especial. Única mas igual. No fundo não o somos todos? Únicos mas iguais? Ela
continuou.
– Parti para ocidente com um general meu, ainda
bastante jovem. Mas partimos sem rumo. Queria vir sozinha, mas não me deixaram,
queriam que alguém me acompanhasse e protegesse, e ele acabou por se oferecer
para vir comigo. Algum tempo depois, chegámos a um local não muito distante de
onde é hoje o Cairo, um pouco mais a sul. Vi que as terras eram excelentes,
férteis como poucas, embora à altura da chegada não soubesse porquê. Dediquei-me
a tentar construir algo, mas veio a inundação e destruiu tudo. Recomecei e no
ano seguinte aconteceu de novo. Percebi que toda aquela destruição resultava
também numa deposição de sedimentos que levava a que as terras ficassem
extraordinariamente ricas.
– Nem tudo era mau na destruição…
– Antes pelo contrário. Graças a ela é que havia
potencial. Se não fosse ela as terras seriam perfeitamente imprestáveis e o
deserto iria até à margem do rio. Mas adiante. Os povos nativos estavam ainda
organizados em pequenos clãs que guerreavam uns com os outros, viviam na mais
perfeita animalidade. O antropofagismo era comum. Enquanto eu tentava perceber
os ritmos da Natureza, a melhor altura para semear, para colher, o meu general
ia agregando, através do respeito que conseguia impor pela pura força bruta,
alguns dos clãs. Em algum tempo fundámos uma povoação, Ineb Hedj, que aos poucos e a custo começou a crescer.
– Não
sobreviveu muito tempo essa povoação, pois não?
– Sobreviveu
milénios – disse ela, rindo-se.
– Milénios?
Nunca ouvi falar…
– Sabes,
os gregos chamaram-lhe Men-nefer que era o nome egípcio do faraó Pepi I. mais
tarde, em copta o nome passou a Menfe. Tu provavelmente conhece-la como Mênfis.
– Claro
que conheço. Então o nome original era…?
– Ineb
Hedj, que significa «As paredes brancas». Mas já agora, como curiosidade, podes
ficar a saber que um historiador egípcio, Manetho, se referiu a Mênfis
como Hi-Ku-P'tah, o que quer dizer casa
de Ká e P’tha, por causa dos seus templos, que o escreveu em grego de uma forma
que lida daria algo como Ai-gu-ptos. Esta forma passou para o Latim como
Ægyptvs…
– …o que
dá o nome moderno do Egipto.
– Certo.
Mas voltando atrás, depois de resolvermos como armazenar o grão que fomos
plantando, a população começou mesmo a crescer sob o aparente domínio do meu
general. Digo aparente, porque afinal ele era a minha fachada. Ensinámos a
semear os cereais, a colhê-los, a armazená-los, a fermentar a cevada e a fazer
cerveja, ensinámos a plantar a vinha e a fazer o vinho. Começámos a absorver os
clãs vizinhos. À medida que tínhamos mais pessoas as construções aumentavam, a
complexidade aumentava…
– … e
quando deste por ti havia uma nova civilização que florescia.
– Completamente.
Mas o interessante é que as pessoas viam como o meu general me tratava com
deferência, que embora não o soubessem era veneração, e que eu não me submetia
a ele e o tratava de igual para igual. Ora a única relação em que podiam
conceber tal, se bem que ainda assim não fosse usual, era entre irmãos. E foi
isso que fomos considerados. Irmãos.
– E isso
não foi considerado estranho? – Perguntei eu. – Afinal de contas, estamos de
alguma forma programados para procurar a diversidade genética…
– Se
olhares isto à luz do tempo, não. Afinal, uma vez que as populações eram muito
pequenas, os laços de consanguinidade eram altíssimos e não era invulgar a
união de parentes tão próximos. O importante era assegurar o futuro do clã.
– Compreendo.
– Entretanto,
por uma questão de organização, era imperativo acabar com os cultos que cada
clã tinha aos seus deuses privados. As divergências de culto levariam a coisas,
sem dúvida, mais graves.
– Sim,
ainda hoje os crentes das religiões que afirmam que Deus é amor e que o maior
valor é a paz andam em guerra umas contra as outras…
– O que
não deixa de ser um contra-senso no mínimo estúpido, não achas?
– Perfeitamente.
– Mas, por
isso mesmo, teve de se organizar uma religião com os retalhos dos cultos dos
clãs mais importantes, misturado com aquilo que eu conhecia. A melhor
representação possível para a intocável fonte da vida era sem dúvida o Sol. Com
o tempo, a mitologia cresceu por si só. Havia que dar nomes, características,
personalidades aos deuses. Era preciso torná-los próximos, humanos, que eles
tivessem dramas, rivalidades, que fossem sábios, mas que errassem. E ao juntar
todos sob um mesmo culto, criou-se a união. Percebes isto?
– Completamente.
Ela respirou fundo antes
de continuar.
– Como
calculas o meu general…
– Osíris?
Ela riu.
– Sim,
Osíris. Acabou por falecer, e o reino passou para o seu filho.
– Não era
também teu filho? Hórus?
– Não, era
filho de uma das concubinas de Osíris. No entanto, uma vez que nos consideravam
unidos em tudo, ele foi considerado também meu filho. E acredita, tratei-o como
tal.
– E porque
te chamaste de Ísis e não Lilith, ou Lilitu?
– Porque
queria seguir em frente, não queria que me relacionassem com a Lilith que
estava na origem dos tempos, não queria a divindade.
– Mas
acabaste por tê-la na mesma, não foi?
– Foi.
Acabei por ser considerada sábia, depois a que sabia quase tudo. Conforme a
mitologia evoluiu, assim apareceu a história do nome de Rá, o nome secreto que
dava todos os poderes a quem o pronunciasse, que seria a única coisa que não
saberia. Esta história veio a mesclar-se com as histórias que os descendentes
de Adão passavam via oral de uns para os outros quando estes foram subjugados
pelo Egipto. E de uma estranha forma, acaso, destino, chama-lhe o que quiseres,
eu comecei a ser identificada como a mesma personagem. Talvez porque fosse a imagem
da mulher insubmissa e insubmersível.
– Mas
diz-me, não estiveste no Egipto como estiveste na Suméria, pois não?
– Como
assim?
– Tanto
tempo a estabelecer as coisas, a liderar…
– Não.
Achei que seria melhor não o fazer. Aborrecia-me que me prestassem culto. Que
me tomassem como algo de diferente, que eu não achava ser. E assim deixei-me
deslizar para todos os outros papéis possíveis, para vidas comuns.
– E
entretanto Ísis começa a ser considerada deusa, neta do Sol e filha da Terra e
do Céu.
– Sim. E
ao mesmo tempo vivia junto com o povo que a venerava.
– Porque é
que escolheste isso?
– Precisava
de viver, de aprender, de absorver tudo. Tinha fome de conhecimento e sabia que
não chegaria a ele empiricamente, sentada numa torre de marfim. Tinha de sentir
as coisas na pele, mas mais ainda, tinha de sentir a minha condição de mulher
para me afirmar ainda mais.
– Mas isso
não significa que tiveste de acabar por ser submissa?
– Meu
querido, a submissão, muitas vezes, está nos olhos daquele que quer submeter. E
nunca te esqueças de que a astúcia é a maior arma das mulheres – disse com um
sorriso malicioso.
Ri-me. Era verdade o que
me dizia. O ser e a aparência do ser são duas coisas completamente diferentes,
e nós, aqueles que não têm estas histórias grandiosas, vivemos num mundo de
aparências, de tal forma que muitas vezes não conhecemos a nossa própria realidade,
apenas a ilusão dela.
O sol desaparecia no
horizonte e deixava os farrapos de nuvens com tons alaranjados e ao mesmo tempo
começava a cair uma humidade forte que parecia querer entranhar-se em mim. Foi
por isso que sugeri:
– E se
fôssemos para dentro?
Olá, Gil!
ResponderEliminarSinceramente, já me perdi um pouco na história desta Lilith, pois por um motivo ou por outro, houve capítulos que não li.
Atraída pelo nome do País da Cleópatra, vim ler este e gostei muito. Essa indolência do personagem ficar sentado a desfrutar do benefício dos raios solares sem nada ter e querer fazer, deu-me logo ânimo para continuar...
Fico feliz por ti, Gil, pela imensa garra com que agarras as palavras e as conduzes para onde te apraz. :)
Um beijo e força — porque dos fracos e indolentes não rezam as histórias. ;)
Alô, Janita.
EliminarA vantagem é que podes sempre ir atrás e ler. Acho que tens coisas interessantes por ali. Eu pelo menos, na altura que escrevi, achei que eram interessantes... :)
Obrigado e Bjs grandes