O empregado deixou o vinho e afastou-se. Ela continuou.
«Na sua grande sabedoria, Rá sabia que se Nut
tivesse filhos um deles havia de reinar entre os homens. Cioso do seu poder,
fez cair uma maldição sobre Nut. Ela não poderia ter filhos em qualquer dia do
ano.
Com o coração pesado, Nut foi ter com Toth, o
grande deus da magia, sabedoria e aprendizagem, filho de Rá que a amava. Toth
sabia que a maldição de Rá, uma vez pronunciada, jamais poderia ser desfeita,
mas na sua sabedoria encontrou uma maneira de a contornar. Foi ter com Khonsu,
deus da Lua, e desafiou-o para uma competição. Jogo após jogo, Toth ia ganhando
sempre. As apostas foram crescendo, mas foi Khonsu quem mais apostou, pois
apostou alguma da sua própria luz e perdeu.
Por fim, Khonsu recusou-se a continuar a jogar.
Toth pegou então na luz que tinha ganho e criou cinco dias extra, que ficaram
para sempre entre o fim do ano e o princípio do próximo. O ano até ai tinha
trezentos e sessenta dias e a partir daí passou a ter trezentos e sessenta e
cinco, sendo que esses cinco não eram dias de qualquer ano. Desde esse tempo
que Khonsu não consegue brilhar com toda a sua força durante todo o tempo,
definhando até perder o brilho para ganhar força em seguida outra vez.
No primeiro dos dias criados, Nut deu à luz
Osíris, o seu filho mais velho. O segundo dia foi reservado para ser o
aniversário de Hórus. No terceiro dia nasceu o segundo filho, o negro Seth,
senhor do mal. No quarto Ísis viu a luz pela primeira vez, e no quinto
Nephthis, a segunda filha, nasceu. E foi assim que a maldição de Rá foi
cumprida e ao mesmo tempo derrotada, pois os filhos nasceram em dias que não
pertenciam a nenhum ano.
Quando Osíris, nasceu muitos sinais prodigiosos
aconteceram. O mais extraordinário foi talvez a voz que foi ouvida no santuário
sagrado de Thebas, no Nilo, hoje chamado de Karnak, e que falou a um homem chamado
Pamyles instando-o a proclamar a todos os homens que Osíris, o grande e piedoso
rei, tinha nascido para trazer prosperidade e alegria a toda a Terra.
Quando Osíris cresceu, desposou a sua irmã, Ísis,
costume que todos os faraós acolheram desde então.
Ora, de todos os filhos de Nut, Ísis era
considerada a mais sábia. Era mais inteligente que um milhão de homens e o seu
conhecimento incomparável. Ela conhecia tudo o que se encontrava ao cimo da
Terra e debaixo do Céu, à excepção do nome secreto de Rá. Queria conhecê-lo,
mas viu que só o poderia conseguir pela malícia.»
O empregado interrompeu-nos novamente, fazendo-me
despertar quase que de um encantamento enquanto escutava esta história. Trazia
com ele a comida que pousou na mesa. Servimo-nos em silêncio. Enchi o copo dela
com vinho e em seguida o meu.
– Tens noção de que essa história é fascinante?
– Tenho. Sei que é. Como é qualquer outra que
descreve a origem do mundo à luz de uma determinada cultura. Mas já reparaste
que há pontos de contacto entre todas elas?
– Pontos de contacto? Como, por exemplo?
– Por exemplo «No princípio tudo era escuridão e
nada mais existia senão uma vasta superfície de água…» e «E a Terra era sem
forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Deus se
movia sobre a face das águas», que encontras em «Génesis» 1:2.
– Sim, agora que falas nisso, o mito da criação
tem sempre pontos de contacto…
– Pois tem, mas a melhor parte da história vem
agora. Queres que continue?
– Pergunta-se a um cego se quer ver?
Ela riu com vontade. Começámos a comer e ela
continuou.
«Rá envelhecia a cada dia que passava. Quando
caminhava pelas terras do Egipto a sua cabeça abanava, a sua queixada tremia e
babava-se profusamente como os mais velhos fazem. Quando a sua baba caía ao chão
fazia lama. Foi esta lama que Ísis foi recolhendo e que amassou de maneira a
fazer barro. Deu a esse barro a forma de uma serpente, fazendo assim a primeira
Naja. A imagem do uraeus que adornou a partir daí as máscaras dos faraós é a
representação dessa Naja.
Ísis escondeu a Naja no pó da estrada por onde Rá
passava todos os dias, enquanto percorria os seus reinos do Alto e Baixo Egipto.
Quando Rá passava, a Naja mordeu-o e desapareceu em seguida na relva. O veneno
dela correu pelas veias de Rá e deixou-o mudo por algum tempo, à excepção do
grito de dor que ele deu e que se ouviu por toda a Terra, de oriente a
ocidente. Os deuses que o seguiam juntaram-se à volta dele e perguntavam «Que
se passou? Que tendes?», mas ele não conseguia encontrar palavras para responder.
Os seus lábios tremiam e ele sentia convulsões enquanto o veneno se espalhava
pelo seu corpo, como o Nilo se espalha pelo Egipto nas inundações. Quando
finalmente conseguiu falar, disse:
– Ajudai-me, vós a quem eu fiz. Algo me fez mal e
eu não sei o que foi. Criei todas as coisas e, no entanto, esta não criei. É
uma dor tal que nunca antes tive algo assim, e esta dor é igual a nenhuma
outra. E, no entanto, quem poderia magoar-me? Ninguém sabe o meu nome secreto
que me torna todo-poderoso e me guarda contra a magia de magos e bruxas. Apesar
disso, enquanto passava pelas terras que criei e tanto acarinho, algo me
mordeu. E é como fogo, mas não é fogo, é como água, mas não é água. Eu queimo e
tremo enquanto os meus membros se agitam. Trazei pois diante de mim todos os
deuses que tenham conhecimentos de magia e de cura e sabedoria que chegue até
aos céus.
Vieram todos os deuses, e todos choravam e
lamentavam o que tinha acontecido a Rá. Com eles veio Ísis, a que cura, a
rainha da magia, a que respira o sopro da vida e sabe as palavras para dar vida
aos que estão moribundos. E ela disse:
– Que se passou, pai divino? Uma cobra mordeu-te?
Uma criatura da tua própria criação levantou a sua cabeça contra ti? Farei com
que ela apareça com a minha magia, farei com que trema e caia perante a tua
glória.
– Fazia a minha caminhada pelas duas terras do
Egipto como sempre fiz – respondeu-lhe Rá –, pois queria contemplar toda a
minha criação. E foi na caminhada que fui mordido por uma cobra que não vi, uma
cobra que não foi criação minha. Agora queimo como se estivesse a arder e tremo
como se água gélida passasse nas minhas veias, e o suor escorre na minha face
como escorre nas faces dos homens nos dias mais quentes do Verão.
– Diz-me o teu nome secreto – disse-lhe Ísis, na
sua mais doce e calmante voz. – Diz-me, pai divino, pois apenas dizendo o teu
nome nos meus encantamentos poderei achar cura para ti.
Rá disse-lhe então os seus muitos nomes.
– Eu sou o criador do céu e da terra – disse. –
Sou o construtor de montanhas. Sou a fonte de todas as águas. Sou a luz e a escuridão.
Sou o criador do grande rio Egipto. Sou irmão do grande fogo no céu; sim, sou
Khepera ao amanhecer, Rá ao meio-dia e Atum ao cair da noite.
Mas Ísis não pronunciou uma palavra e o veneno
continuava a espalhar-se no corpo de Rá. Ela sabia que ele apenas lhe tinha
dito nomes que os homens sabiam e que o seu nome secreto, o nome do poder,
continuava escondido no seu coração. Por fim, acabou por dizer:
– Sabes bem que o nome de que preciso não é nenhum
dos que pronunciaste. Tens de me dizer o nome que procuro para poder fazer o
veneno sair e a dor acabar.
O veneno ardia nas veias de Rá com mais força que
qualquer chama, e Rá gritou por fim:
– Que o meu nome secreto passe do meu coração para
o coração de Ísis. Mas antes de passar jura-me que não o dirás a ninguém a não
ser o teu filho primogénito e único que terás e que se chamará de Hórus. E
farás com que ele jure primeiro que não o passará a mais ninguém de entre os
deuses ou homens.
Ísis tomou o juramento e o nome do poder passou do
coração de Rá para o seu. Então ela disse:
– Pelo nome que agora sei, que o veneno saia de Rá
para sempre.
E o veneno saiu e Rá teve paz. Mas não podia
voltar a reinar na Terra e, assim, retirou-se para o Céu onde continua a fazer
a sua viagem durante o dia e continua à noite no submundo.
Foi nessa altura que Osíris se tornou governante
do Egipto e reinou sobre a Terra como Rá tinha feito. Foi então que ele viu que
o Homem continuava selvagem e bruto, lutando, matando e comendo a carne do seu
semelhante. Mas Ísis descobriu o grão da cevada e do trigo que crescia selvagem
entre as outras plantas, e que era ainda desconhecido do Homem, e Osíris
ensinou o homem a plantá-la depois de o Nilo subir e descer deixando as terras
férteis. Ensinou-os a colher e a guardar o grão e a transformá-lo em pão.
Mostrou-lhes também como plantar vinhas e fazer vinho.
E quando o povo do Egipto aprendeu a fazer o pão e
aprendeu a cortar a carne dos animas que ele lhes indicou como apropriados, Osíris
deu-lhes leis para que pudessem viver em harmonia, deliciando-se com poesia e
música. E logo que o Egipto se encheu de fartura e paz, Osíris partiu para
fazer cair as suas bênçãos sobre outros povos. E quando se ausentava deixava o
governo da Terra a Ísis, tarefa que ela desempenhava bem e com sabedoria.»
Fez-se silêncio. Os talheres estavam já postos de
lado nos pratos que aguardavam ser levantados da mesa. Olhei para ela. Ela
beberricou um gole de vinho. Pousou o copo e perguntou-me:
– Gostaste da história?
– Adorei. – Fiz uma pausa enquanto reflectia no
que me tinha contado. Depois continuei: – O nome secreto de Deus? O nome que dá
o poder ao todo-poderoso? O nome que ao ser proclamado te fez criar asas e sair
do paraíso? O nome que te tornou mulher do faraó, aquela que descobre o grão no
meio das plantas selvagens? Tu és Ísis, não és?
– Perspicaz. Sim, a lenda de Ísis tem a ver com a
fundação do Egipto, o início da era em que os deuses começaram a governar
depois de Rá ter voltado para o céu.
O empregado chegou e disse, já a levantar a mesa:
– Os senhores desejam mais alguma coisa?
Sobremesas, cafés…?
– Por mim pode ser um café. Queres alguma coisa? –
Perguntei a Lilith.
– Um café, também.
– Muito bem, com licença – disse o empregado,
saindo em seguida.
– É uma lenda lindíssima, mas o que está por
detrás dela?
– Bem, isso é algo que tenciono dizer-te a seguir
ao café – afirmou com um sorriso.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!