A minha mascara de normalidade requeria que eu
tivesse um trabalho. Como tal arranjei um que me permitia manter-me perdido nos
meus pensamentos. Arquivava fichas. Não era tarefa onde eu tivesse que me
esforçar muito, bastava colocá-las metodicamente no lugar, letra após letra.
Também tinha a vantagem de não ter que falar com muita gente. Chegavam com as
fichas, depositavam-nas e eu agarrava nelas e arquivava. Simples e sem
complicações.
Quando chegava à minha hora saia e tinha o
martírio dos transportes, por norma apinhados de pessoas, de cheiros, de
conversas inconsequentes e ridículas. Por muitas coisas que ouvia perguntava-me
se não conseguiria ter conversas mais inteligentes com um papagaio bem
ensinado.
Após uma hora deste martírio chegava a casa,
tirava qualquer coisa do frigorífico para aquecer no microondas, sentava-me e
enterrava-me nos livros e revistas que comprava de forma quase compulsiva. Era
esta a minha vida e sabia-me bem estar assim. A minha casa era a minha ilha
onde a mascara podia cair e eu era eu próprio. E foi assim durante anos. Até há
um ano atrás.
Sabes, era uma noite de inverno como qualquer
outra. Eu estava deitado mas sem sono. Chovia copiosamente e ouvia as gotas que
caiam dos beirados, mais grossas que as outras, a embater no chão de uma forma
ritmada.
Sempre me reconfortara este ruído. Era
calmante. O suficiente até para me fazer deslizar para o sono, coisa que
raramente acontecia. Nesse dia foi diferente. Estava deitado no escuro, perdido
nas poliritmias que vinham do som da chuva que caia. Chamou-me mesmo à atenção
o ritmo, as diferentes cadências, a aparente desconexão…
…mas que sentia como apenas aparente. De
alguma forma havia sentido. Havia padrões. Cadências. Percebi que podia
perfeitamente escrever as gotas numa pauta musical e faria sentido.
Levantei-me, fui buscar um gravador e fiquei
no maior silêncio possível a gravar a chuva.
Quando a chuva parou, ao fim de uns minutos,
rebobinei a cassete e ouvi. Estavam lá os padrões. As cadências. Os ritmos.
Liguei o computador, carreguei um software de música e comecei a editar uma
pauta com todos aqueles ritmos. Era já perto da hora de sair de casa quando
acabei de escrever a pauta. Olhei. Fruto do acaso ou não, a minha frente estava
um padrão reconhecível, cíclico, que quase parecia…
…intencional. Sim, parecia intencional.
Fiz o software tocar o que estava escrito e o
computador devolveu-me uma interpretação da própria chuva. Ouvir o padrão ao
mesmo tempo que o visualizava apenas reforçou a sensação. Imprimi as pautas e
sai de casa. Levei-as comigo. Estava fascinado pelos padrões escritos.
Durante o caminho para o trabalho não tirei os
olhos delas. Tinha de haver relações. Tentava imaginar uma formula resolvente,
qualquer coisa que desse sentido.
Cheguei ao trabalho e liguei o computador.
Tentei calcular formulas que pudessem resumir a poliritmia escrita para
encontrar algo mais que lá estivesse. Passei o dia em tentativas,
negligenciando mesmo o trabalho. Já ia a meio da tarde quando qualquer coisa
assim apareceu no monitor:
ldfgliaggaejeufemoidujruaswnhx8cheias9sjhwaisndyhqueksndhchora93jhrestáoskdnsógshdnporhsvdbentreesdaba6jsgdmultidãoqáhsja2mndcprocura0wiendayshgdluzenshdahsjduremissão3oafsdarensjdse9oskfáabxcgdiz2ksndlhegsbdmclkjdfhzdljhrstbvljahgsehfçSEBF
Mais uma vez procurei sentido e só então
comecei a descortinar palavras no meio da confusão.
“Em ruas cheias a que chora está só por entre
a multidão a procura de luz a remissão dar se a diz-lhe”
Mas embora houvesse palavras, o significado
continuava omisso.
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