quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Lilith - XVIII - Rá

– E onde é que queres ir almoçar? – Perguntei, enquanto começávamos a marcha lenta pela estrada pedregosa – Queres ir a Cascais?

– Não, sinto-me romântica. Vamos a Sintra.

– Seja. É tão longe para um lado como para o outro…

Três e dez da tarde. Tinha sérias dúvidas de que encontrássemos um restaurante com a cozinha aberta, mas também qualquer coisa seria um repasto memorável. A minha verdadeira fome era outra. Era cada vez mais uma fome de a desvendar, de saber quem ela é na realidade, de saber a sua história.

Olhei-a. Ela olhou para mim e sorriu. Pôs a sua mão por cima da minha, que descansava na alavanca das mudanças.

– Conta-me mais sobre ti. – Pedi-lhe.

– Estás curioso?

– Muito. Gostava de saber mais.

Ela olhou um pouco para o lado, em direcção ao mar, e só depois se virou para mim.

– Vou contar-te uma história. Queres?

– Claro.

– Então escuta.

 

«No princípio tudo era escuridão e nada mais existia senão uma vasta planície de água chamada Nun. O poder de Nun era tal que de lá surgiu uma esfera resplandecente que foi chamada de Rá.

Rá era todo-poderoso. O segredo do poder de Rá era o seu nome secreto. Mas se ele dissesse outros nomes, tudo o que nomeasse ganharia forma e existência.

E Rá disse “Eu sou Khepera ao amanhecer, Rá ao meio-dia e Atum ao cair da noite.” E o Sol subiu e atravessou o céu pela primeira vez, e foi o primeiro dia.

Foi então que ele disse o nome de Shu e os primeiros ventos sopraram. Disse o nome de Tefnut, o que cospe, e a primeira chuva caiu. Disse o nome de Geb e a terra apareceu. Disse o nome de Nut e ela apareceu como cúpula celeste, com os pés apoiados num horizonte e as mãos no outro. Disse o nome de Hapi e o grande Nilo fluiu e tornou o Egipto frutífero.

Rá foi nomeando todas as coisas e elas ganhavam existência. Por fim ele nomeou o Homem, e houve homem e mulheres na terra do Egipto.

Foi então que Rá assumiu a forma de homem tornando-se o primeiro faraó do Egipto. Regeu o país por milhares de anos e as colheitas foram sempre de tal forma generosas que daí em diante nunca foram esquecidas as coisas maravilhosas que se passaram no tempo de Rá.

Mas, estando na forma de um homem, Rá envelheceu, de tal ordem que chegou uma altura em que os homens já não o temiam ou obedeciam à sua lei. Riam-se dele e diziam – Olhem para Rá! Os seus ossos são como a prata, a carne como o ouro e os seus cabelos da cor da Lápis-lazúli!

Rá enfurecia-se ao ouvir isto, mas sentia-se ainda mais furioso ao saber o que os homens andavam a fazer, desobedecendo à sua lei. Convocou os deuses que tinha criado – Shu, Tefnut, Geb e Nut – e também Nun. Os deuses reuniram-se num local secreto, levando as deusas também, mas os homens desconheciam isto e continuavam a escarnecer de Rá e a desobedecer às suas ordens.

Rá dirigiu-se a Nun antes de qualquer outro dos Deuses:

– Nun, deus primordial, tu que me fizeste, e vós deuses que eu criei, olhem para o Homem que eu criei com um mero relance do meu olho. Vejam o que planeiam contra mim, ouçam o que dizem de mim e digam-me o que deveria fazer-lhes, pois eu não os destruirei até vos ouvir.

Então Nun disse:

– Meu filho Rá, o deus maior e mais poderoso, põe o teu olho neles e envia-lhes a destruição na forma da tua filha, a deusa Sekhmet.

Rá respondeu:

– Neste mesmo momento o medo cai sobre eles e eles correm pelo deserto e escondem-se nas montanhas aterrorizados com o som da minha voz.

– Envie sobre eles o seu Olho na forma de Sekhmet! – Imploraram todos os deuses e deusas enquanto se curvavam à sua frente até as suas testas tocarem o chão.

Então, ao relance do olho de Rá a sua filha ganhou substância, a mais feroz de todas as deusas. Caiu como um leão sobre a presa, deleitou-se na matança e o seu prazer estava no sangue. A um pedido de Rá ela foi pelo alto e baixo Egipto para matar os que tinham zombado e desobedecido. Matou-os nas montanhas, nos vales e no deserto. Tudo o que via matava deleitando-se na matança e no gosto de sangue.

Então Rá viu o que Sekhmet tinha feito. Chamou-a enquanto lhe dizia:

– Vem, minha filha. Diz-me como obedeceste às minhas ordens.

E Sekhmet respondeu com a voz terrível de uma leoa que rasga a presa:

– Pela vida que me deste, fiz cair a tua vingança no homem e o meu coração rejubila.

Durante muitas noites o Nilo correu vermelho com o sangue, e ela prosseguiu matando por toda a Terra.

Rá via o que Sekhmet fazia, mas o seu coração encheu-se de piedade para com o Homem, embora este se tivesse virado contra ele. Mas ninguém poderia parar Sekhmet, nem mesmo Rá. Ela teria que parar por vontade própria. E Rá viu que isto só poderia ocorrer com astúcia.

Então ele deu a ordem:

– Tragam-me mensageiros rápidos que corram tão silenciosamente quanto sombras na terra e com a velocidade dos ventos das tempestades.

Quando lhos trouxeram disse-lhes:

– Vão, tão rápido quanto possam, subam o Nilo até onde este corre ferozmente acima das pedras e entre as ilhas da primeira catarata encontrem uma ilha chamada Elefantina. Tragam-me a grande porção de ocre vermelho que aí armazenei.

Os mensageiros foram e trouxeram o ocre vermelho sangue para Heliópolis, a cidade de Rá, onde estavam erigidos obeliscos com pontas de ouro, que eram como dedos apontados ao Sol. Era de noite quando chegaram à cidade, mas durante todo o dia as mulheres tinham estado a fermentar cerveja, tal como Rá lhes tinha pedido.

 Rá foi até onde a cerveja o esperava em sete mil jarros, e os deuses foram com ele para ver como a sabedoria de Rá salvaria a humanidade.

– Misturem o ocre vermelho de Elefantina com a cerveja – disse Rá.

Assim foi feito e a cerveja brilhava como o sangue do Homem ao luar.

– Agora levem tudo para o sítio onde Sekhmet se propõe matar quando o sol nascer.

E, enquanto era ainda noite, os sete mil jarros foram levados e despejados pelos campos, fazendo com que o chão ficasse coberto até uma altura de três palmos de homem com esta cerveja forte a que chamavam «a fazedora de sono».

Quando o dia chegou, veio também Sekhmet a lamber os lábios com o pensamento nos homens que iria matar. Encontrou o sítio alagado e sem vivalma à vista. Mas viu a cerveja, que era da cor do sangue, e pensou ser sangue de facto, sangue daqueles a quem tinha tirado a vida.

Riu-se com alegria, e o seu riso foi como o rugido de uma leoa com fome de matança. Pensando tratar-se de sangue, ela parou e bebeu. Ria-se com alegria e bebia. A força da cerveja subiu-lhe à cabeça e ela não conseguiu prosseguir com a matança.

Voltou cambaleante para junto de Rá. Nesse dia não tinha tomado a vida de um único homem.

E Rá disse-lhe.

– Vens em paz hoje, minha doce filha.

E o seu nome mudou para Hator e a sua natureza também, para a doçura do amor e a força do desejo. E doravante Hator apenas fazia cair o Homem com o grande poder do amor.»

 

– Desculpa interromper-te, mas chegámos.

Ela olhou-me e sorriu.

Saímos do carro estacionado tão perto quanto possível do centro de Sintra e caminhámos um pouco, em busca de um restaurante.

– Essa história é absolutamente fascinante.

– Conhecias?

– Não, não conhecia. Tinha visto uma ou outra menção a esses deuses enquanto procurava coisas acerca de ti, e já tinha ouvido falar na maior parte deles, mas não conhecia a história. Mas diz-me, afinal, quem és tu no meio disso tudo?

Ela riu com uma gargalhada sonora.

– Meu querido, eu ainda cá não estou. Conto-te isto tudo para te pôr dentro do contexto. Contar-te a minha história sem o resto deixava-te em suspenso.

– Compreendo. Podes continuar…

– E vou continuar, depois de entrarmos num restaurante e pedirmos o almoço.

Entrámos no primeiro que apareceu, sentámo-nos a uma mesa. O empregado veio solícito.

– Podia trazer-nos a ementa, por favor?

O empregado olhou com algum embaraço.

– Queiram desculpar, mas a cozinha já está fechada…

Olhei para ela e ela piscou-me o olho. Depois olhou para o empregado, com aqueles olhos azuis, de forma carregada, sorriu e disse‑lhe num tom de voz capaz de derreter aço:

– É pena. Tem a certeza de que não consegue mesmo arranjar nada?

O empregado ruborizou e quase que podia jurar que os seus joelhos fraquejaram.

– Vou ver, Senhora. Tenho a certeza de que se arranjará algo do vosso agrado.

E com isto saiu em direcção à cozinha. Olhei-a com o sobrolho levantado e com um sorriso malicioso.

– Porque é que fizeste isso ao pobre homem?

– Porque estou com fome, e apetece-me estar aqui.

– E não achas errado fazer isso?

– Sinceramente, acharia, se não lhe fosse pagar a refeição no fim, mas como tenciono pagar não vejo nada de mal. Ele pura e simplesmente vai fazer aquilo que devia fazer com todos os clientes. Esforçar-se.

Ela tinha razão. De facto, dizer «Já não servimos almoços a esta hora», sem mais nada, é apenas uma maneira de descartar trabalho. Quanto muito deveria haver um «neste momento a cozinha já está fechada, mas vou ver o que se pode arranjar» e voltar com opções. Se elas depois seriam aceites pelo cliente ou não já seria outra coisa.

O empregado voltou.

– Os senhores desculpem – disse –, mas a cozinha já fechou mesmo. No entanto consigo-vos um prego no prato, ou um bitoque, se o desejarem.

Olhei para ela, que acenou em acordo. Dirigi-me ao empregado.

– Então para mim pode ser um prego no prato. E tu, querida?

– Pode ser a mesma coisa.

– E o que vão desejar para beber?

Ela olhou para mim.

– Fazes-me companhia num vinho tinto? – Perguntou.

– Até faço, mas só um copito, que ainda vamos andar por ai a conduzir. Uma garrafa pequena?

– Sim, é isso – concordou ela. – Traga uma garrafa de vinho pequena.

– Com certeza – disse o empregado, retirando-se de imediato.

– Vês – disse ela –, com boa vontade tudo se resolve.

– É verdade – respondi eu.

Só tinha pena de que, na verdade, a boa vontade não viesse do facto de querer agradar a um cliente qualquer, fosse quem fosse que entrasse, mas sim a ela, por motivos que me eram óbvios neste momento. Mas isso era, realmente, problema do próprio estabelecimento.

– Mas olha, queres continuar a história? – Perguntei.

– Estás mesmo assim tão curioso?

– Mesmo…

– Estou a ver. Onde é que eu ia?

– Contavas como Rá tinha salvado a humanidade de Sekhmet e que esta se transformou em Hator, a deusa do amor.

– Ah! Sim. Estavas atento…

– Claro!

– Bem, foi então assim que Rá salvou a humanidade, e continuou a governar, embora fosse já bastante velho. Mas aproximava-se o tempo em que ele teria de se retirar para reinar nos céus para sempre, deixando deuses mais jovens no seu lugar. Enquanto se debatia na sua forma humana, na forma de faraó do Egipto, a idade começava a fazê-lo perder a sabedoria. Mas ninguém conseguia disputar o seu poder, visto que este vinha do seu nome secreto, que mais ninguém sabia a não ser ele próprio. Se alguém o descobrisse, ele não poderia governar mais na Terra. Claro que isto seria apenas possível por artes mágicas…

O empregado chegou com o vinho, interrompendo-nos.

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