– E onde é que queres ir almoçar? – Perguntei, enquanto começávamos a marcha lenta pela estrada pedregosa – Queres ir a Cascais?
– Não, sinto-me romântica.
Vamos a Sintra.
– Seja. É tão longe para
um lado como para o outro…
Três e dez da tarde. Tinha
sérias dúvidas de que encontrássemos um restaurante com a cozinha aberta, mas
também qualquer coisa seria um repasto memorável. A minha verdadeira fome era
outra. Era cada vez mais uma fome de a desvendar, de saber quem ela é na
realidade, de saber a sua história.
Olhei-a. Ela olhou para
mim e sorriu. Pôs a sua mão por cima da minha, que descansava na alavanca das
mudanças.
– Conta-me mais sobre ti.
– Pedi-lhe.
– Estás curioso?
– Muito. Gostava de saber
mais.
Ela olhou um pouco para o
lado, em direcção ao mar, e só depois se virou para mim.
– Vou contar-te uma
história. Queres?
– Claro.
– Então escuta.
«No princípio tudo era
escuridão e nada mais existia senão uma vasta planície de água chamada Nun. O
poder de Nun era tal que de lá surgiu uma esfera resplandecente que foi chamada
de Rá.
Rá era todo-poderoso. O
segredo do poder de Rá era o seu nome secreto. Mas se ele dissesse outros
nomes, tudo o que nomeasse ganharia forma e existência.
E Rá disse “Eu sou Khepera
ao amanhecer, Rá ao meio-dia e Atum ao cair da noite.” E o Sol subiu e
atravessou o céu pela primeira vez, e foi o primeiro dia.
Foi então que ele disse o
nome de Shu e os primeiros ventos sopraram. Disse o nome de Tefnut, o que
cospe, e a primeira chuva caiu. Disse o nome de Geb e a terra apareceu. Disse o
nome de Nut e ela apareceu como cúpula celeste, com os pés apoiados num
horizonte e as mãos no outro. Disse o nome de Hapi e o grande Nilo fluiu e
tornou o Egipto frutífero.
Rá foi nomeando todas as
coisas e elas ganhavam existência. Por fim ele nomeou o Homem, e houve homem e
mulheres na terra do Egipto.
Foi então que Rá assumiu a
forma de homem tornando-se o primeiro faraó do Egipto. Regeu o país por
milhares de anos e as colheitas foram sempre de tal forma generosas que daí em
diante nunca foram esquecidas as coisas maravilhosas que se passaram no tempo
de Rá.
Mas, estando na forma de
um homem, Rá envelheceu, de tal ordem que chegou uma altura em que os homens já
não o temiam ou obedeciam à sua lei. Riam-se dele e diziam – Olhem para Rá! Os
seus ossos são como a prata, a carne como o ouro e os seus cabelos da cor da
Lápis-lazúli!
Rá enfurecia-se ao ouvir
isto, mas sentia-se ainda mais furioso ao saber o que os homens andavam a
fazer, desobedecendo à sua lei. Convocou os deuses que tinha criado – Shu, Tefnut,
Geb e Nut – e também Nun. Os deuses reuniram-se num local secreto, levando as
deusas também, mas os homens desconheciam isto e continuavam a escarnecer de Rá
e a desobedecer às suas ordens.
Rá dirigiu-se a Nun antes
de qualquer outro dos Deuses:
– Nun, deus primordial, tu
que me fizeste, e vós deuses que eu criei, olhem para o Homem que eu criei com
um mero relance do meu olho. Vejam o que planeiam contra mim, ouçam o que dizem
de mim e digam-me o que deveria fazer-lhes, pois eu não os destruirei até vos
ouvir.
Então Nun disse:
– Meu filho Rá, o deus
maior e mais poderoso, põe o teu olho neles e envia-lhes a destruição na forma
da tua filha, a deusa Sekhmet.
Rá respondeu:
– Neste mesmo momento o
medo cai sobre eles e eles correm pelo deserto e escondem-se nas montanhas
aterrorizados com o som da minha voz.
– Envie sobre eles o seu
Olho na forma de Sekhmet! – Imploraram todos os deuses e deusas enquanto se
curvavam à sua frente até as suas testas tocarem o chão.
Então, ao relance do olho
de Rá a sua filha ganhou substância, a mais feroz de todas as deusas. Caiu como
um leão sobre a presa, deleitou-se na matança e o seu prazer estava no sangue.
A um pedido de Rá ela foi pelo alto e baixo Egipto para matar os que tinham
zombado e desobedecido. Matou-os nas montanhas, nos vales e no deserto. Tudo o
que via matava deleitando-se na matança e no gosto de sangue.
Então Rá viu o que Sekhmet
tinha feito. Chamou-a enquanto lhe dizia:
– Vem, minha filha. Diz-me
como obedeceste às minhas ordens.
E Sekhmet respondeu com a
voz terrível de uma leoa que rasga a presa:
– Pela vida que me deste,
fiz cair a tua vingança no homem e o meu coração rejubila.
Durante muitas noites o
Nilo correu vermelho com o sangue, e ela prosseguiu matando por toda a Terra.
Rá via o que Sekhmet
fazia, mas o seu coração encheu-se de piedade para com o Homem, embora este se
tivesse virado contra ele. Mas ninguém poderia parar Sekhmet, nem mesmo Rá. Ela
teria que parar por vontade própria. E Rá viu que isto só poderia ocorrer com
astúcia.
Então ele deu a ordem:
– Tragam-me mensageiros
rápidos que corram tão silenciosamente quanto sombras na terra e com a
velocidade dos ventos das tempestades.
Quando lhos trouxeram disse-lhes:
– Vão, tão rápido quanto
possam, subam o Nilo até onde este corre ferozmente acima das pedras e entre as
ilhas da primeira catarata encontrem uma ilha chamada Elefantina. Tragam-me a
grande porção de ocre vermelho que aí armazenei.
Os mensageiros foram e
trouxeram o ocre vermelho sangue para Heliópolis, a cidade de Rá, onde estavam
erigidos obeliscos com pontas de ouro, que eram como dedos apontados ao Sol.
Era de noite quando chegaram à cidade, mas durante todo o dia as mulheres
tinham estado a fermentar cerveja, tal como Rá lhes tinha pedido.
Rá foi até onde a cerveja o esperava em sete
mil jarros, e os deuses foram com ele para ver como a sabedoria de Rá salvaria
a humanidade.
– Misturem o ocre vermelho
de Elefantina com a cerveja – disse Rá.
Assim foi feito e a
cerveja brilhava como o sangue do Homem ao luar.
– Agora levem tudo para o
sítio onde Sekhmet se propõe matar quando o sol nascer.
E, enquanto era ainda
noite, os sete mil jarros foram levados e despejados pelos campos, fazendo com
que o chão ficasse coberto até uma altura de três palmos de homem com esta cerveja
forte a que chamavam «a fazedora de sono».
Quando o dia chegou, veio
também Sekhmet a lamber os lábios com o pensamento nos homens que iria matar.
Encontrou o sítio alagado e sem vivalma à vista. Mas viu a cerveja, que era da
cor do sangue, e pensou ser sangue de facto, sangue daqueles a quem tinha
tirado a vida.
Riu-se com alegria, e o
seu riso foi como o rugido de uma leoa com fome de matança. Pensando tratar-se
de sangue, ela parou e bebeu. Ria-se com alegria e bebia. A força da cerveja
subiu-lhe à cabeça e ela não conseguiu prosseguir com a matança.
Voltou cambaleante para
junto de Rá. Nesse dia não tinha tomado a vida de um único homem.
E Rá disse-lhe.
– Vens em paz hoje, minha
doce filha.
E o seu nome mudou para
Hator e a sua natureza também, para a doçura do amor e a força do desejo. E
doravante Hator apenas fazia cair o Homem com o grande poder do amor.»
– Desculpa interromper-te,
mas chegámos.
Ela olhou-me e sorriu.
Saímos do carro
estacionado tão perto quanto possível do centro de Sintra e caminhámos um
pouco, em busca de um restaurante.
– Essa história é
absolutamente fascinante.
– Conhecias?
– Não, não conhecia. Tinha
visto uma ou outra menção a esses deuses enquanto procurava coisas acerca de
ti, e já tinha ouvido falar na maior parte deles, mas não conhecia a história.
Mas diz-me, afinal, quem és tu no meio disso tudo?
Ela riu com uma gargalhada
sonora.
– Meu querido, eu ainda cá
não estou. Conto-te isto tudo para te pôr dentro do contexto. Contar-te a minha
história sem o resto deixava-te em suspenso.
– Compreendo. Podes
continuar…
– E vou continuar, depois
de entrarmos num restaurante e pedirmos o almoço.
Entrámos no primeiro que
apareceu, sentámo-nos a uma mesa. O empregado veio solícito.
– Podia trazer-nos a
ementa, por favor?
O empregado olhou com
algum embaraço.
– Queiram desculpar, mas a
cozinha já está fechada…
Olhei para ela e ela
piscou-me o olho. Depois olhou para o empregado, com aqueles olhos azuis, de
forma carregada, sorriu e disse‑lhe num tom de voz capaz de derreter aço:
– É pena. Tem a certeza de
que não consegue mesmo arranjar nada?
O empregado ruborizou e
quase que podia jurar que os seus joelhos fraquejaram.
– Vou ver, Senhora. Tenho
a certeza de que se arranjará algo do vosso agrado.
E com isto saiu em
direcção à cozinha. Olhei-a com o sobrolho levantado e com um sorriso
malicioso.
– Porque é que fizeste
isso ao pobre homem?
– Porque estou com fome, e
apetece-me estar aqui.
– E não achas errado fazer
isso?
– Sinceramente, acharia,
se não lhe fosse pagar a refeição no fim, mas como tenciono pagar não vejo nada
de mal. Ele pura e simplesmente vai fazer aquilo que devia fazer com todos os
clientes. Esforçar-se.
Ela tinha razão. De facto,
dizer «Já não servimos almoços a esta hora», sem mais nada, é apenas uma
maneira de descartar trabalho. Quanto muito deveria haver um «neste momento a
cozinha já está fechada, mas vou ver o que se pode arranjar» e voltar com
opções. Se elas depois seriam aceites pelo cliente ou não já seria outra coisa.
O empregado voltou.
– Os senhores desculpem –
disse –, mas a cozinha já fechou mesmo. No entanto consigo-vos um prego no
prato, ou um bitoque, se o desejarem.
Olhei para ela, que acenou
em acordo. Dirigi-me ao empregado.
– Então para mim pode ser
um prego no prato. E tu, querida?
– Pode ser a mesma coisa.
– E o que vão desejar para
beber?
Ela olhou para mim.
– Fazes-me companhia num
vinho tinto? – Perguntou.
– Até faço, mas só um
copito, que ainda vamos andar por ai a conduzir. Uma garrafa pequena?
– Sim, é isso – concordou
ela. – Traga uma garrafa de vinho pequena.
– Com certeza – disse o
empregado, retirando-se de imediato.
– Vês – disse ela –, com
boa vontade tudo se resolve.
– É verdade – respondi eu.
Só tinha pena de que, na
verdade, a boa vontade não viesse do facto de querer agradar a um cliente
qualquer, fosse quem fosse que entrasse, mas sim a ela, por motivos que me eram
óbvios neste momento. Mas isso era, realmente, problema do próprio estabelecimento.
– Mas olha, queres
continuar a história? – Perguntei.
– Estás mesmo assim tão
curioso?
– Mesmo…
– Estou a ver. Onde é que
eu ia?
– Contavas como Rá tinha
salvado a humanidade de Sekhmet e que esta se transformou em Hator, a deusa do
amor.
– Ah! Sim. Estavas atento…
– Claro!
– Bem, foi então assim que
Rá salvou a humanidade, e continuou a governar, embora fosse já bastante velho.
Mas aproximava-se o tempo em que ele teria de se retirar para reinar nos céus
para sempre, deixando deuses mais jovens no seu lugar. Enquanto se debatia na
sua forma humana, na forma de faraó do Egipto, a idade começava a fazê-lo
perder a sabedoria. Mas ninguém conseguia disputar o seu poder, visto que este
vinha do seu nome secreto, que mais ninguém sabia a não ser ele próprio. Se
alguém o descobrisse, ele não poderia governar mais na Terra. Claro que isto
seria apenas possível por artes mágicas…
O empregado chegou com o
vinho, interrompendo-nos.
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