terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Lilith- XXXI - Magno

Acordei antes dela, ainda abraçado a ela, os nossos corpos ainda colados e a sensação de que nem dormira, estivera sempre ali. Vi a sua paz ao dormir, as linhas suaves do seu rosto, a maneira suave como o seu peito oscilava com a respiração. Devagar, muito devagar, para não a acordar, consegui afastar-me dela e sair da cama. Tomei um duche rápido para tirar o sal que tinha ainda agarrado ao corpo, e dirigi-me à cozinha, onde fui fazendo o pequeno‑almoço.

Sumo de laranja, torradas com manteiga, um tabuleiro e estava de volta ao quarto. Pousei o tabuleiro, sentei-me ao seu lado e com festas suaves pelo dorso fui-lhe dizendo:

– Acorda, dorminhoca…

Lentamente ela foi despertando, espreguiçando-se, com um sorriso nos lábios, até abrir finalmente os olhos, deixando-os semicerrados por causa da claridade.

– Tens aqui o pequeno-almoço – disse-lhe.

Ela olhou para travessão tabuleiro e riu.

– Quanta mordomia! Pequeno-almoço na cama… e até espremeste as laranjas e tudo… Estás a ficar prendado.

Foi a minha vez de rir.

– Sem dúvida. Imaginas o esforço de espremer as laranjas? Consegues sequer ter ideia?

– Não. Deve ter sido algo de sobre-humano.

– Quase, acredita. Mas é nestas alturas que se separam os homens dos rapazes.

Rimos os dois à gargalhada.

Fiz-lhe companhia enquanto ela comia. Quando terminou, levei travessão tabuleiro e foi a vez de ela ir tomar um duche. Quando saiu eu estava em frente ao portátil a escrever.

– Então? Adiantaste muita coisa?

– Muito. Acho que a história está escrita. Falta muito pouco para acabar. Queres ler?

– Claro.

– Eu tenho de ir à vila fazer umas compras, comida e assim para termos aí. Não sei se queres vir ou ficar a ler.

– Fico. Vou lendo, que eu leio rápido, e quando voltares digo-te qualquer coisa.

– Tudo bem. Já agora, para eu saber o que hei-de comprar, diz-me, ficou alguma coisa combinada para o meio da semana, então?

– Ficou. Quando voltares conto-te o que se passou ontem, mas ficas já a saber que a Laura vem amanhã, logo pela manhã e que ele virá cá ter ao fim da tarde de quarta.

– Tudo bem. Óptimo. Assim já sei que tenho de comprar coisas a contar com isso.

Despedi-me dela com um beijo e deixei-a sentada em frente ao portátil a ler o que estava já escrito. Demorei algum tempo na vila, e quando voltei, já perto da hora do almoço, entrei em casa carregado de sacos de compras e senti o ar invadido pelo cheiro de cozinhados. Encontrei-a na cozinha já com o almoço quase pronto.

– Cheira bem! – Disse-lhe.

– E vais ver que vai saber melhor ainda.

Comecei a arrumar as compras.

– Então? Leste?

– Sim. Está óptimo. Falta apenas um final para a história.

Eu sorri.

– Pois falta. Mas sabes, há duas coisas que eu gostava que houvesse naquela história.

– Que são?

– Em primeiro lugar, gostava de saber mais acerca da personagem principal.

– Como, por exemplo?

– Se há mais histórias de deusas, pedaços marcantes de vidas comuns, pequenas coisas que a definissem ainda melhor, sabes?

– Sei. Tem alguma lógica. E a segunda coisa?

– Bem, a segunda coisa é saber o porquê de a personagem se ter revelado desta maneira, nesta altura, qual a sua intenção ao abrir assim o jogo e explicar tanta coisa, ao falar da sua história e das suas vivências, qual o objectivo. Afinal é a própria personagem que afirma que nada é desprovido de interesse, por mais altruísta que o interesse seja.

Ela olhou para mim de uma forma matreira.

– Bem, sabes, acho que se te dispuseres a isso, e uma vez que até és um tipo que consegue de forma quase miraculosa fazer sumo de laranja, portanto, um bom tipo, no fundo, pode ser que obtenhas as tuas respostas a seguir ao almoço. Que é que dizes?

– Parece-me bem, de facto. Afinal, nada como ter o estômago reconfortado para que uma história seja melhor absorvida, não é?

– Claro. Mas já agora, aproveita enquanto não tens as respostas e abre uma garrafa de vinho, abres?

– Tudo bem. Queres o quê?

– Qualquer coisa leve. Não tinhas para aí uma garrafa de rosé?

– Acho que sim. Vou procurar.

Encontrei a garrafa, abri-a e almoçámos num tom de plena boa disposição. Mais do que nunca, sentia-me bem comigo, e isso fazia com que tudo parecesse fácil.

Depois do almoço fomos até à vila beber o café. Embora fizesse frio, estava sol e como tal ficámos sentados no exterior. Não ficámos muito tempo.

No caminho de volta ela, de repente, perguntou:

– Então que gostavas tu de saber das vidas comuns?

– Directa ao assunto, como quase sempre.

– Sim, além disso acho que não te devo esconder mais do que o estritamente necessário…

– Mas isso quer dizer que há algo a esconder.

– Claro que há.

– Isso deixa-me um bocado desconsolado, para te ser franco.

– Meu querido, a única coisa que te posso afirmar é que a devido tempo vai deixar de haver segredos entre nós. Mas saber esperar é a maior das virtudes. Consegues ser virtuoso?

– Consigo tentar ser.

– Então isso vai ter de chegar – disse com um sorriso franco. – Mas sempre queres saber?

– Claro que sim.

– O quê, afinal?

– Momentos, coisas relevantes, histórias…

Ela ficou algum tempo a olhar para mim, enquanto a observava pelo canto do olho, atento à condução.

– Sabes, quando deixei de ser Ísis estava mesmo cansada de ser considerada e venerada como uma deusa. Resolvi viver vidas comuns, normais, como a que levo hoje. Fui tudo o que podes imaginar.

– Tudo?

– Tudo. Desde prostituta na Babilónia a cortesã em Roma, desde freira a bruxa, fui sacerdotisa de mim própria, imagina, fui tudo o que podes imaginar que uma mulher pode ser.

– Mas não houve momentos marcantes?

– Todos o foram, de uma maneira ou de outra. Todos eles foram importantes para eu chegar aqui, agora. Foi tão importante ser nobre como pedinte, acredita. É-me difícil escolher momentos para te contar.

– Mas se tivesses que escolher um?

– Só um?

– Só um.

Entretanto chegámos. Desliguei o carro e fiquei a olhar para ela à espera de uma resposta. Ela, ao fim de um bocado, perguntou:

– E dás-me um bocadinho para escolher esse momento? «O» momento?

– Sim, claro. Os bocadinhos que quiseres.

Abriu a porta e saiu do carro. Eu fiz o mesmo, dei a volta ao carro e segui-a para casa. Ela foi à cozinha e eu fui directo para o terraço, sentei-me e acendi um cigarro.

– Queres alguma coisa daqui?

– Trazes-me uma água?

Ela juntou-se a mim em seguida, trazendo duas garrafas de água na mão e sentou-se ao meu lado, pensativa.

– Sabes – acabou por dizer –, há um momento que talvez seja «o» momento.

– Conta.

– Aconteceu quando eu era uma Pitonisa do templo de Apolo, em Delfos.

– Tu foste uma das videntes do oráculo.

– Sim… – disse ela com naturalidade.

– E consegues prever o futuro?

Riu com vontade.

– Achas que alguém consegue?

– Não sei… Mas para estares ali alguma coisa adivinhavas.

– Sabes, a verdade é que se estiveres atento ao que se passa à tua volta não é assim tão difícil chegares a algumas conclusões acerca do futuro mais próximo. Basta que tenhas informação suficiente. E depois, para contares com os imponderáveis basta seres o suficientemente vago e eis que surge um vidente.

– Mas há pessoas que têm a fama de o fazer com exactidão e fazem vida disso.

– Há pessoas que se chamam a elas próprias de magos, mas que na verdade são prestidigitadores, criadores de ilusões, que de magia não têm nada…

– É verdade.

– Pois… Mas voltando à história, um dia é pedida uma consulta ao oráculo por um rei. Sentei-me no meu banco de três pés e aguardei que ele entrasse. Ele entrou na câmara e era, sem dúvida, um homem impressionante, apesar da juventude. Havia algo nele de diferente…

– Diferente como?

– Uma força de vontade incomum, um carisma arrebatador.

– E então?

– Ele dirigiu-se a mim com a atitude arrogante de alguém que nunca tinha encontrado alguém capaz de lhe fazer frente. Ainda assim, numa atitude de respeito perante mim, e uma vez que eu ali, naquele momento, representava o deus Apolo, aguardou que eu o interpelasse. Eu perguntei o que demandava ele do oráculo.

– E ele?

– Ele perguntou «Será rápida a minha conquista do mundo?». Fiquei estática a olhar para ele. Não fazia ideia de quem era, não tinha qualquer base para lhe dizer fosse o que fosse, e disse-lhe que nada lhe poderia dizer naquela altura e que ele teria que voltar.

– Fizeste isso para ganhar tempo.

– Claro. Tinha de saber pelo menos quem tinha à minha frente.

– E o que aconteceu a seguir?

– A seguir? Olha, para minha surpresa ele veio direito a mim, nem me deu tempo para pensar, agarrou-me pelos cabelos, arrastou‑me para fora da câmara. Estava furioso. Dizia que jamais alguém o tinha afrontado e que nunca admitiria desrespeito quer de deuses, quer de mortal algum.

– E tu?

– Eu? Ia arrastada por ele, cheia de dores enquanto ele me puxava pelos cabelos. Comecei a gritar «Larga-me, larga-me, tu és invencível…»

– E ele?

– Ele, ao ouvir isto, parou, largou-me e disse que se dava por satisfeito com a previsão do oráculo. Saiu sem mais uma palavra.

– Bem, que coisa… Vieste a saber quem era?

– Claro que sim – disse ela com um sorriso. – Chamava-se Alexandre e ficou conhecido como «O Grande».



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