Acordei antes dela, ainda abraçado a ela, os nossos corpos ainda colados e a sensação de que nem dormira, estivera sempre ali. Vi a sua paz ao dormir, as linhas suaves do seu rosto, a maneira suave como o seu peito oscilava com a respiração. Devagar, muito devagar, para não a acordar, consegui afastar-me dela e sair da cama. Tomei um duche rápido para tirar o sal que tinha ainda agarrado ao corpo, e dirigi-me à cozinha, onde fui fazendo o pequeno‑almoço.
Sumo de laranja, torradas com manteiga, um
tabuleiro e estava de volta ao quarto. Pousei o tabuleiro, sentei-me ao seu
lado e com festas suaves pelo dorso fui-lhe dizendo:
– Acorda, dorminhoca…
Lentamente ela foi despertando, espreguiçando-se,
com um sorriso nos lábios, até abrir finalmente os olhos, deixando-os semicerrados
por causa da claridade.
– Tens aqui o pequeno-almoço – disse-lhe.
Ela olhou para travessão tabuleiro e riu.
– Quanta mordomia! Pequeno-almoço na cama… e até
espremeste as laranjas e tudo… Estás a ficar prendado.
Foi a minha vez de rir.
– Sem dúvida. Imaginas o esforço de espremer as
laranjas? Consegues sequer ter ideia?
– Não. Deve ter sido algo de sobre-humano.
– Quase, acredita. Mas é nestas alturas que se separam
os homens dos rapazes.
Rimos os dois à gargalhada.
Fiz-lhe companhia enquanto ela comia. Quando
terminou, levei travessão tabuleiro e foi a vez de ela ir tomar um duche.
Quando saiu eu estava em frente ao portátil a escrever.
– Então? Adiantaste muita coisa?
– Muito. Acho que a história está escrita. Falta
muito pouco para acabar. Queres ler?
– Claro.
– Eu tenho de ir à vila fazer umas compras, comida
e assim para termos aí. Não sei se queres vir ou ficar a ler.
– Fico. Vou lendo, que eu leio rápido, e quando
voltares digo-te qualquer coisa.
– Tudo bem. Já agora, para eu saber o que hei-de
comprar, diz-me, ficou alguma coisa combinada para o meio da semana, então?
– Ficou. Quando voltares conto-te o que se passou
ontem, mas ficas já a saber que a Laura vem amanhã, logo pela manhã e que ele
virá cá ter ao fim da tarde de quarta.
– Tudo bem. Óptimo. Assim já sei que tenho de
comprar coisas a contar com isso.
Despedi-me dela com um beijo e deixei-a sentada em
frente ao portátil a ler o que estava já escrito. Demorei algum tempo na vila,
e quando voltei, já perto da hora do almoço, entrei em casa carregado de sacos
de compras e senti o ar invadido pelo cheiro de cozinhados. Encontrei-a na
cozinha já com o almoço quase pronto.
– Cheira bem! – Disse-lhe.
– E vais ver que vai saber melhor ainda.
Comecei a arrumar as compras.
– Então? Leste?
– Sim. Está óptimo. Falta apenas um final para a
história.
Eu sorri.
– Pois falta. Mas sabes, há duas coisas que eu
gostava que houvesse naquela história.
– Que são?
– Em primeiro lugar, gostava de saber mais acerca
da personagem principal.
– Como, por exemplo?
– Se há mais histórias de deusas, pedaços
marcantes de vidas comuns, pequenas coisas que a definissem ainda melhor,
sabes?
– Sei. Tem alguma lógica. E a segunda coisa?
– Bem, a segunda coisa é saber o porquê de a
personagem se ter revelado desta maneira, nesta altura, qual a sua intenção ao
abrir assim o jogo e explicar tanta coisa, ao falar da sua história e das suas
vivências, qual o objectivo. Afinal é a própria personagem que afirma que nada
é desprovido de interesse, por mais altruísta que o interesse seja.
Ela olhou para mim de uma forma matreira.
– Bem, sabes, acho que se te dispuseres a isso, e
uma vez que até és um tipo que consegue de forma quase miraculosa fazer sumo de
laranja, portanto, um bom tipo, no fundo, pode ser que obtenhas as tuas
respostas a seguir ao almoço. Que é que dizes?
– Parece-me bem, de facto. Afinal, nada como ter o
estômago reconfortado para que uma história seja melhor absorvida, não é?
– Claro. Mas já agora, aproveita enquanto não tens
as respostas e abre uma garrafa de vinho, abres?
– Tudo bem. Queres o quê?
– Qualquer coisa leve. Não tinhas para aí uma
garrafa de rosé?
– Acho que sim. Vou procurar.
Encontrei a garrafa, abri-a e almoçámos num tom de
plena boa disposição. Mais do que nunca, sentia-me bem comigo, e isso fazia com
que tudo parecesse fácil.
Depois do almoço fomos até à vila beber o café.
Embora fizesse frio, estava sol e como tal ficámos sentados no exterior. Não
ficámos muito tempo.
No caminho de volta ela, de repente, perguntou:
– Então que gostavas tu de saber das vidas comuns?
– Directa ao assunto, como quase sempre.
– Sim, além disso acho que não te devo esconder
mais do que o estritamente necessário…
– Mas isso quer dizer que há algo a esconder.
– Claro que há.
– Isso deixa-me um bocado desconsolado, para te
ser franco.
– Meu querido, a única coisa que te posso afirmar
é que a devido tempo vai deixar de haver segredos entre nós. Mas saber esperar
é a maior das virtudes. Consegues ser virtuoso?
– Consigo tentar ser.
– Então isso vai ter de chegar – disse com um
sorriso franco. – Mas sempre queres saber?
– Claro que sim.
– O quê, afinal?
– Momentos, coisas relevantes, histórias…
Ela ficou algum tempo a olhar para mim, enquanto a
observava pelo canto do olho, atento à condução.
– Sabes, quando deixei de ser Ísis estava mesmo
cansada de ser considerada e venerada como uma deusa. Resolvi viver vidas
comuns, normais, como a que levo hoje. Fui tudo o que podes imaginar.
– Tudo?
– Tudo. Desde prostituta na Babilónia a cortesã em
Roma, desde freira a bruxa, fui sacerdotisa de mim própria, imagina, fui tudo o
que podes imaginar que uma mulher pode ser.
– Mas não houve momentos marcantes?
– Todos o foram, de uma maneira ou de outra. Todos
eles foram importantes para eu chegar aqui, agora. Foi tão importante ser nobre
como pedinte, acredita. É-me difícil escolher momentos para te contar.
– Mas se tivesses que escolher um?
– Só um?
– Só um.
Entretanto chegámos. Desliguei o carro e fiquei a
olhar para ela à espera de uma resposta. Ela, ao fim de um bocado, perguntou:
– E dás-me um bocadinho para escolher esse momento?
«O» momento?
– Sim, claro. Os bocadinhos que quiseres.
Abriu a porta e saiu do carro. Eu fiz o mesmo, dei
a volta ao carro e segui-a para casa. Ela foi à cozinha e eu fui directo para o
terraço, sentei-me e acendi um cigarro.
– Queres alguma coisa daqui?
– Trazes-me uma água?
Ela juntou-se a mim em seguida, trazendo duas
garrafas de água na mão e sentou-se ao meu lado, pensativa.
– Sabes – acabou por dizer –, há um momento que
talvez seja «o» momento.
– Conta.
– Aconteceu quando eu era uma Pitonisa do templo
de Apolo, em Delfos.
– Tu foste uma das videntes do oráculo.
– Sim… – disse ela com naturalidade.
– E consegues prever o futuro?
Riu com vontade.
– Achas que alguém consegue?
– Não sei… Mas para estares ali alguma coisa
adivinhavas.
– Sabes, a verdade é que se estiveres atento ao
que se passa à tua volta não é assim tão difícil chegares a algumas conclusões
acerca do futuro mais próximo. Basta que tenhas informação suficiente. E
depois, para contares com os imponderáveis basta seres o suficientemente vago e
eis que surge um vidente.
– Mas há pessoas que têm a fama de o fazer com
exactidão e fazem vida disso.
– Há pessoas que se chamam a elas próprias de
magos, mas que na verdade são prestidigitadores, criadores de ilusões, que de
magia não têm nada…
– É verdade.
– Pois… Mas voltando à história, um dia é pedida
uma consulta ao oráculo por um rei. Sentei-me no meu banco de três pés e aguardei
que ele entrasse. Ele entrou na câmara e era, sem dúvida, um homem
impressionante, apesar da juventude. Havia algo nele de diferente…
– Diferente como?
– Uma força de vontade incomum, um carisma
arrebatador.
– E então?
– Ele dirigiu-se a mim com a atitude arrogante de
alguém que nunca tinha encontrado alguém capaz de lhe fazer frente. Ainda
assim, numa atitude de respeito perante mim, e uma vez que eu ali, naquele
momento, representava o deus Apolo, aguardou que eu o interpelasse. Eu perguntei
o que demandava ele do oráculo.
– E ele?
– Ele perguntou «Será rápida a minha conquista do
mundo?». Fiquei estática a olhar para ele. Não fazia ideia de quem era, não
tinha qualquer base para lhe dizer fosse o que fosse, e disse-lhe que nada lhe
poderia dizer naquela altura e que ele teria que voltar.
– Fizeste isso para ganhar tempo.
– Claro. Tinha de saber pelo menos quem tinha à
minha frente.
– E o que aconteceu a seguir?
– A seguir? Olha, para minha surpresa ele veio
direito a mim, nem me deu tempo para pensar, agarrou-me pelos cabelos, arrastou‑me
para fora da câmara. Estava furioso. Dizia que jamais alguém o tinha afrontado
e que nunca admitiria desrespeito quer de deuses, quer de mortal algum.
– E tu?
– Eu? Ia arrastada por ele, cheia de dores enquanto
ele me puxava pelos cabelos. Comecei a gritar «Larga-me, larga-me, tu és invencível…»
– E ele?
– Ele, ao ouvir isto, parou, largou-me e disse que
se dava por satisfeito com a previsão do oráculo. Saiu sem mais uma palavra.
– Bem, que coisa… Vieste a saber quem era?
– Claro que sim – disse ela com um sorriso. –
Chamava-se Alexandre e ficou conhecido como «O Grande».
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