segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Lilith - XXII - Redenção

 

O almoço acabou por ser passado num clima de boa disposição, apesar do meu óbvio cansaço. O cheiro do refogado que tinha invadido a casa abriu-me o apetite, tanto quanto a presença delas e as palavras de Lilith me tinham aberto o espírito.

Senti-me verdadeiramente reconfortado, verdadeiramente próximo delas. O meu fascínio por Lilith crescia ainda mais, se é que isso era possível. E lia também algo de parecido nos olhos de Laura, se bem que me apercebia de que isso a confundia.

Depois do almoço obrigaram-me a ir descansar e foram dar um passeio pela praia. Adormeci em cima da cama sem sequer me aperceber disso e fui acordado por Laura já era noite escura.

– Acorda, dorminhoco. Anda jantar…

Levantei-me ainda ensonado, olhei para o espelho por cima da cómoda ao fundo da cama e vi que havia lá alguém com um aspecto mesmo vagabundo. Só depois me apercebi de que era eu. Resolvi ir tomar um duche rápido e aprumar-me um bocadinho.

Depois de o fazer senti-me novo, diferente e revigorado. É incrível o que uma pinga de água por cima de um corpo cansado pode fazer pelo espírito. Quando cheguei à cozinha, elas aguardavam‑me para servir o jantar.

Fomos falando de trivialidades. Elogiamos a cozinheira, Laura, que corou por completo. Brincámos. No meio de tudo fui-me apercebendo de que Laura continuava confusa. Olhei para Lilith, que parecia estar a ler os meus pensamentos, e com um sorriso estampado no rosto fez-me apenas um quase imperceptível gesto afirmativo com a cabeça. Fui directo. Os rodeios não nos levariam, com certeza a lado nenhum.

– Laura, como é que te sentes?

– Sinto-me bem – limitou-se a dizer, com um sorriso, e desviou os olhos.

Olhei novamente para Lilith, que sorriu também.

– Laura – continuei –, a verdade é que sei que estás bem, pelo menos bem melhor que ontem, mas sinto-te confusa, algo envergonhada até, pouco à vontade…

– Sabes que podes dizer tudo, mesmo tudo, Laura – disse Lilith, com um tom carregado de sinceridade.

Laura bebeu um gole de vinho. Olhou para ela durante algum tempo e depois para mim. Era evidente que queria falar, mas não sabia o que dizer. Por fim, respirou fundo.

– Bem… – começou. – Olho para vocês os dois e penso como é que vim parar aqui! Sabes, Miguel, ontem não pensei que estivesses com alguém, sentia-me carente e aconteceu. Não foi pensado nem programado. Aconteceu…

– Eu sei – respondi-lhe.

– E Lilith, eu nunca tinha estado com uma mulher antes. Aliás, pensar nisso dava-me alguma repulsa, e no entanto estivemos as duas! É tudo muito súbito, percebem?

Acenámos afirmativamente.

– Estou divorciada e sozinha há quatro anos, depois de um casamento não muito bom. Casámos por todos os motivos errados e chegou a um ponto em que não dava mais, precisava de espaço e de respirar. E depois vi-me sozinha e descobri que ter espaço sem ninguém para o partilhar é uma treta. Com o passar do tempo fui ficando cada vez mais só, mais fechada e carente. Quase que me sentia a mendigar atenção. E foi então que apareceu alguém que me deu atenção. Era por ele que esperava ontem. Não é uma paixão, acho que nem da minha parte nem da dele, mas é algo. Os momentos que passo com ele são calmos e sinto-me melhor comigo. Mas continuo carente. Ontem, quando a mensagem chegou a dizer que já não viria, àquela hora, foi mau, muito mau. Estava a precisar de companhia, de sentir alguém. E tu estavas ali, Miguel… – disse virando-se para mim. – E ainda por cima reconheci-te e admiro-te e nunca pensei conhecer-te e parecias deslocado e sozinho… – Parou um bocadinho, como se a querer organizar as suas ideias. – Percebes?

Como eu percebia! Na verdade, não parecia deslocado e sozinho. Estava deslocado e sozinho, e com raiva de uma qualquer estupidez que já nem consigo perceber. Ela continuou.

– Fomos para a cama e foi bom sentir-te, mas sabes, não por ti. Foi bom sentir alguém. E foi bom adormecer ao lado de alguém – disse com um sorriso e com os olhos a começarem a ficar carregados de água.

– E depois apareceste tu – disse virando-se para Lilith. – Acordei e vi o Miguel, mas senti-te ao meu lado e assustei-me. Não sabia o que pensar. Para ser franca, a primeira coisa que pensei foi «Onde é que me vim meter?». E até agora não consigo perceber o resto do que se passou, a sério. Só sei que tu és… fascinante!

Sorri. É realmente difícil não achar isso de Lilith, mesmo numa primeira impressão. E sei também que, se Laura sentiu algo de parecido com o que eu senti quando Lilith me perguntou se eu queria sentir, então tenho a certeza de que o universo dela foi abalado, de uma maneira boa, mas foi abalado.

Percebi perfeitamente aquilo por que ela devia estar a passar. Afinal eu andava confuso desde que conhecera Lilith e só agora começava a ver algo através do véu opaco que era a minha percepção. Ela revelara-se-me e eu não a conseguia ver. Quer eu, quer Laura éramos demasiado pequenos para conseguir apreendê-la, e no entanto estava cada vez mais disposto a tentar. Laura continuou.

– E agora olho para os dois e não sei o que sentir. Mas sei que me sinto bem convosco… – disse com um sorriso.

Não sabia o que lhe dizer. Resolvi tomar a atitude inteligente e não dizer nada. Limitei-me a olhar para Lilith.

Lilith pousou o copo que quase flutuava na sua mão e levantou-se. Laura ficou estática a olhar para ela. Flutuou os dois passos que a separavam de Laura e sentou-se na mesa ao seu lado. Levantou a mão e fez-lhe uma festa ao de leve na face. Depois puxou-lhe o queixo para cima com leveza, para que os olhos dela fossem de encontro aos seus. Ficaram as duas perdidas nos olhos uma da outra, num contraste estranhíssimo, parecendo mãe e filha, sendo a mãe mais nova que a filha, parecendo amigas desde sempre, parecendo amantes. Nem me atrevo a tentar perceber o que lhes passava na cabeça.

– Sabes, criança – acabou por dizer Lilith –, aquilo que faz de nós, mulheres, criaturas à parte é o facto de termos esta capacidade quase infinita de amar – baixou-se e deu-lhe um beijo na testa, ao de leve – e a irredutibilidade de nunca desistirmos de procurar o amor.

Laura cedeu. Sem nunca tirar os olhos dos de Lilith agarrou-lhe na mão, com os olhos rasos de água. Olhava para Lilith com o ar de quem se tinha reencontrado. As lágrimas começavam a fazer linhas ao longo do seu rosto. Mas não eram lágrimas de dor. Eram de redenção. De alguma maneira, ela percebera muito mais depressa que eu a natureza de quem tinha à sua frente. Abraçou‑se a ela e chorou.

Ao fim de algum tempo Lilith fê-la levantar e abraçaram-se. Estiveram assim muito tempo, uma eternidade. Senti-me um privilegiado por poder ver tudo o que se desenrolava à minha frente com esta clareza. Por fim, as suas bocas procuraram-se com calma, com doçura, sem urgência, sem pressa, com todo o tempo do mundo. E a própria presença de Laura parecia crescer.

Quando finalmente se afastaram, Laura pareceu lembrar-se de repente de que eu estava ali, olhou para mim, sorriu algo envergonhada e tentou limpar as lágrimas dos olhos. Eu olhei-a e sorri para ela também. Sentia em mim uma felicidade genuína por ela e alguma pontinha de inveja, para ser franco. A sua condição de mulher deixava-a tão mais próxima daquele ser que eu tanto admirava…

Levantei-me, resoluto, e aproximei-me delas. Lilith continuava encostada à mesa, meio sentada, meio de pé, com o olhar mais terno que eu já tinha visto em alguém. Olhei-a bem nos olhos. «Quando quiseres uma certeza pergunta», tinha-me dito.

– Tu não consegues deixar de amar, pois não? – Perguntei-lhe.

Um sorriso dorido foi a minha resposta afirmativa. Puxei-a para mim e dei-lhe um beijo, curto, doce, cheio. Depois olhámos para Laura, abraçados lado a lado. Esticámos os nossos braços livres para ela e ela caiu no nosso abraço.

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