O almoço acabou por ser passado num clima de boa
disposição, apesar do meu óbvio cansaço. O cheiro do refogado que tinha
invadido a casa abriu-me o apetite, tanto quanto a presença delas e as palavras
de Lilith me tinham aberto o espírito.
Senti-me verdadeiramente reconfortado,
verdadeiramente próximo delas. O meu fascínio por Lilith crescia ainda mais, se
é que isso era possível. E lia também algo de parecido nos olhos de Laura, se
bem que me apercebia de que isso a confundia.
Depois do almoço obrigaram-me a ir descansar e
foram dar um passeio pela praia. Adormeci em cima da cama sem sequer me
aperceber disso e fui acordado por Laura já era noite escura.
– Acorda, dorminhoco. Anda jantar…
Levantei-me ainda ensonado, olhei para o espelho
por cima da cómoda ao fundo da cama e vi que havia lá alguém com um aspecto
mesmo vagabundo. Só depois me apercebi de que era eu. Resolvi ir tomar um duche
rápido e aprumar-me um bocadinho.
Depois de o fazer senti-me novo, diferente e
revigorado. É incrível o que uma pinga de água por cima de um corpo cansado
pode fazer pelo espírito. Quando cheguei à cozinha, elas aguardavam‑me para
servir o jantar.
Fomos falando de trivialidades. Elogiamos a
cozinheira, Laura, que corou por completo. Brincámos. No meio de tudo fui-me
apercebendo de que Laura continuava confusa. Olhei para Lilith, que parecia
estar a ler os meus pensamentos, e com um sorriso estampado no rosto fez-me
apenas um quase imperceptível gesto afirmativo com a cabeça. Fui directo. Os
rodeios não nos levariam, com certeza a lado nenhum.
– Laura, como é que te sentes?
– Sinto-me bem – limitou-se a dizer, com um
sorriso, e desviou os olhos.
Olhei novamente para Lilith, que sorriu também.
– Laura – continuei –, a verdade é que sei que
estás bem, pelo menos bem melhor que ontem, mas sinto-te confusa, algo envergonhada
até, pouco à vontade…
– Sabes que podes dizer tudo, mesmo tudo, Laura –
disse Lilith, com um tom carregado de sinceridade.
Laura bebeu um gole de vinho. Olhou para ela
durante algum tempo e depois para mim. Era evidente que queria falar, mas não
sabia o que dizer. Por fim, respirou fundo.
– Bem… – começou. – Olho para vocês os dois e
penso como é que vim parar aqui! Sabes, Miguel, ontem não pensei que estivesses
com alguém, sentia-me carente e aconteceu. Não foi pensado nem programado.
Aconteceu…
– Eu sei – respondi-lhe.
– E Lilith, eu nunca tinha estado com uma mulher
antes. Aliás, pensar nisso dava-me alguma repulsa, e no entanto estivemos as
duas! É tudo muito súbito, percebem?
Acenámos afirmativamente.
– Estou divorciada e sozinha há quatro anos,
depois de um casamento não muito bom. Casámos por todos os motivos errados e
chegou a um ponto em que não dava mais, precisava de espaço e de respirar. E
depois vi-me sozinha e descobri que ter espaço sem ninguém para o partilhar é
uma treta. Com o passar do tempo fui ficando cada vez mais só, mais fechada e
carente. Quase que me sentia a mendigar atenção. E foi então que apareceu
alguém que me deu atenção. Era por ele que esperava ontem. Não é uma paixão,
acho que nem da minha parte nem da dele, mas é algo. Os momentos que passo com
ele são calmos e sinto-me melhor comigo. Mas continuo carente. Ontem, quando a
mensagem chegou a dizer que já não viria, àquela hora, foi mau, muito mau.
Estava a precisar de companhia, de sentir alguém. E tu estavas ali, Miguel… –
disse virando-se para mim. – E ainda por cima reconheci-te e admiro-te e nunca
pensei conhecer-te e parecias deslocado e sozinho… – Parou um bocadinho, como
se a querer organizar as suas ideias. – Percebes?
Como eu percebia! Na verdade, não parecia
deslocado e sozinho. Estava deslocado e sozinho, e com raiva de uma qualquer
estupidez que já nem consigo perceber. Ela continuou.
– Fomos para a cama e foi bom sentir-te, mas
sabes, não por ti. Foi bom sentir alguém. E foi bom adormecer ao lado de alguém
– disse com um sorriso e com os olhos a começarem a ficar carregados de água.
– E depois apareceste tu – disse virando-se para
Lilith. – Acordei e vi o Miguel, mas senti-te ao meu lado e assustei-me. Não
sabia o que pensar. Para ser franca, a primeira coisa que pensei foi «Onde é
que me vim meter?». E até agora não consigo perceber o resto do que se passou,
a sério. Só sei que tu és… fascinante!
Sorri. É realmente difícil não achar isso de
Lilith, mesmo numa primeira impressão. E sei também que, se Laura sentiu algo
de parecido com o que eu senti quando Lilith me perguntou se eu queria sentir,
então tenho a certeza de que o universo dela foi abalado, de uma maneira boa,
mas foi abalado.
Percebi perfeitamente aquilo por que ela devia
estar a passar. Afinal eu andava confuso desde que conhecera Lilith e só agora
começava a ver algo através do véu opaco que era a minha percepção. Ela
revelara-se-me e eu não a conseguia ver. Quer eu, quer Laura éramos demasiado
pequenos para conseguir apreendê-la, e no entanto estava cada vez mais disposto
a tentar. Laura continuou.
– E agora olho para os dois e não sei o que
sentir. Mas sei que me sinto bem convosco… – disse com um sorriso.
Não sabia o que lhe dizer. Resolvi tomar a atitude
inteligente e não dizer nada. Limitei-me a olhar para Lilith.
Lilith pousou o copo que quase flutuava na sua mão
e levantou-se. Laura ficou estática a olhar para ela. Flutuou os dois passos
que a separavam de Laura e sentou-se na mesa ao seu lado. Levantou a mão e
fez-lhe uma festa ao de leve na face. Depois puxou-lhe o queixo para cima com
leveza, para que os olhos dela fossem de encontro aos seus. Ficaram as duas
perdidas nos olhos uma da outra, num contraste estranhíssimo, parecendo mãe e
filha, sendo a mãe mais nova que a filha, parecendo amigas desde sempre,
parecendo amantes. Nem me atrevo a tentar perceber o que lhes passava na
cabeça.
– Sabes, criança – acabou por dizer Lilith –,
aquilo que faz de nós, mulheres, criaturas à parte é o facto de termos esta
capacidade quase infinita de amar – baixou-se e deu-lhe um beijo na testa, ao
de leve – e a irredutibilidade de nunca desistirmos de procurar o amor.
Laura cedeu. Sem nunca tirar os olhos dos de
Lilith agarrou-lhe na mão, com os olhos rasos de água. Olhava para Lilith com o
ar de quem se tinha reencontrado. As lágrimas começavam a fazer linhas ao longo
do seu rosto. Mas não eram lágrimas de dor. Eram de redenção. De alguma
maneira, ela percebera muito mais depressa que eu a natureza de quem tinha à
sua frente. Abraçou‑se a ela e chorou.
Ao fim de algum tempo Lilith fê-la levantar e
abraçaram-se. Estiveram assim muito tempo, uma eternidade. Senti-me um privilegiado
por poder ver tudo o que se desenrolava à minha frente com esta clareza. Por
fim, as suas bocas procuraram-se com calma, com doçura, sem urgência, sem
pressa, com todo o tempo do mundo. E a própria presença de Laura parecia
crescer.
Quando finalmente se afastaram, Laura pareceu
lembrar-se de repente de que eu estava ali, olhou para mim, sorriu algo envergonhada
e tentou limpar as lágrimas dos olhos. Eu olhei-a e sorri para ela também.
Sentia em mim uma felicidade genuína por ela e alguma pontinha de inveja, para
ser franco. A sua condição de mulher deixava-a tão mais próxima daquele ser que
eu tanto admirava…
Levantei-me, resoluto, e aproximei-me delas.
Lilith continuava encostada à mesa, meio sentada, meio de pé, com o olhar mais
terno que eu já tinha visto em alguém. Olhei-a bem nos olhos. «Quando quiseres
uma certeza pergunta», tinha-me dito.
– Tu não consegues deixar de amar, pois não? –
Perguntei-lhe.
Um sorriso dorido foi a minha resposta afirmativa.
Puxei-a para mim e dei-lhe um beijo, curto, doce, cheio. Depois olhámos para
Laura, abraçados lado a lado. Esticámos os nossos braços livres para ela e ela
caiu no nosso abraço.
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