quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Lilith - XXXIV - O Jantar de Domingo

 

– É verdade, ainda não me disseste o que se passou ontem…

– Pois não – respondeu ela, enquanto acabava de se secar.

Tínhamos vindo da praia e tomámos um duche rápido para tirar o sal do corpo. Entretanto tinha acabado de me secar e lembrara-me.

– Deixa-me só acabar de secar o cabelo e já te conto – continuou ela.

– Está bem, eu espero. – E dirigi-me ao portátil, para escrever mais um pouco.

Esta tarde tinha sido absolutamente fabulosa para mim e queria registar todas estas impressões enquanto estavam ainda frescas na minha memória. Escrevia rapidamente, tentando deixar tudo registado, mas sabia que, por mais que tentasse, as palavras ficariam sempre longe da realidade vivida.

A diferença entre as palavras que ia escrevendo e tudo aquilo por que passara era, na realidade, tão abismal que quase tinha vontade de procurar um novo vocabulário onde as palavras pudessem carregar sensações. Para mim este momento, enquanto escritor, era frustrante. Frustrante não porque não fossem as palavras certas, mas porque me apercebia claramente de que eram vazias de sentimentos, logo também o eram de significado. E, assim sendo, nada do que eu tinha feito até então fazia sentido.

E tudo isto, em vez de me deprimir, deu-me uma vontade enorme de rir. Tanta que comecei à gargalhada, bem alto.

– Estás-te a rir de quê? – Perguntou ela do quarto.

– De nada. Mesmo nada. Acho que estou a perder o juízo, é só isso.

– Porquê? – Voltou a perguntar, divertida, enquanto se juntava a mim.

Expliquei-lhe o que acabara de passar pela cabeça. Também ela se riu.

– Sabes, tens toda a razão. Mas pior ainda, imagina que as tuas palavras serão traduzidas. Alem de teres de contar com a interpretação do leitor final, tens ainda um intermediário que nunca é isento.

– Pois! Pior ainda.

– E agora imagina isso num texto sagrado, como a Bíblia, por exemplo.

Calei-me de repente e vi a seriedade da questão. E vi as cisões dentro da mesma religião por causa de coisas como uma vírgula, os erros de interpretação, as palavras intraduzíveis de uma língua para outra.

Ela olhou para mim, divertida.

– Chegaste lá, não foi?

– Acho que sim. Sendo os textos sagrados traduções de traduções de textos que existem em línguas mortas, estão completamente cheios de imprecisões, incorrecções e erros.

– Sim, é isso mesmo. Ainda que o original pudesse ser a palavra de Deus, a verdade é que não foi Deus que a escreveu nem traduziu. Ainda que essa fosse a realidade, a verdade está perdida por baixo de todas as interpretações. Perdeu-se.

– Nesse caso, os textos sagrados não fazem grande sentido!

Ela sorriu.

– Pelo menos são algo. Uma parte, mas é melhor ter apenas uma parte que não ter nada. Pelo menos dão esperança a quem acredita, e a esperança é a coisa mais preciosa que o ser humano pode ter. Quando ela está perdida, tudo está perdido.

Parei a olhar para ela e a matutar no significado da palavra «esperança» e em tudo o que carregava em si. A esperança, aquilo que nos fazia suportar tudo e por vezes nos obrigava a transcendermo-nos e vi o significado das escrituras. A mensagem e não as palavras em que ela se apoiava para chegar.

– Mas queres descer a assuntos mais mundanos? – Perguntou ela.

– Como, por exemplo?

– O jantar de ontem. Não estavas curioso?

– Estava e estou. Conta.

– Está bem, mas só porque estás a pedir. – Ri-me – A Laura chegou primeiro, não muito tempo depois de tu saíres. Estava destroçada sem saber como lidar com a situação. Conversei com ela durante um bom bocado. Fomos as duas para a cozinha e fomos preparando o jantar e falando. O pouco que falara com o Henrique não fora, de todo, bom. Estava muito preocupada com o que o futuro lhe reservava. «Sem o apoio dele», dizia, «não sei como levar a minha vida». Eu tentei acalmá-la e disse-lhe que tudo ficaria bem. Perguntei-lhe o que é que ela tinha contado ao Henrique acerca de nós. Ela disse-me que lhe tinha dito que me tinha conhecido a mim no bar, e não a ti. Era mais fácil para ele aceitar que as coisas tinham sido assim. Se ela lhe tivesse contado que tinha estado contigo, ele não aceitaria.

– Compreendo. Sabes, não vejo que ele lhe tenha um grande respeito, nem sentimentos muito fortes por ela, para te ser franco. Acho que ela fez bem. É mais fácil para ele aceitar que ela bebeu uns copos a mais e foi seduzida por outra mulher do que por outro homem. O orgulho dele sairia muito pior.

– Claro. Também a compreendi. Depois falou-lhe da noite que passou aqui e ele até pareceu entusiasmado com a história, fartou-se de lhe fazer perguntas acerca de mim. Sabes, acho que ele encaixou na cabeça que de alguma maneira ela lhe devia uma certa reciprocidade. E que eu lha devia também. Foi ele que a convenceu a organizar o jantar connosco.

– Já calculava algo desse género.

– Pois. O que não sabes é que quando saíste ele fez todas as conjecturas possíveis e não ficou minimamente incomodado, antes pelo contrário.

– Pois, não sabia, mas também calculava.

– O facto de eu o ter recusado deixou-o em brasa, como já te disse, e a Laura contou-me que do pouco que tinham falado durante o dia, grande parte foram ameaças. Ele foi completamente arrogante com ela.

– Ele é completamente arrogante com o mundo – disse eu com um sorriso.

– Pois… Mas entretanto ele chegou e tentou portar-se como um cavalheiro, como se nada se tivesse passado. Eu fiz o mesmo e jantámos num tom carregado pelas circunstâncias, mas de certa forma até cordial.

– E o que é que lhes disseste da minha ausência?

– Disse-lhes que nem me lembrava que tinhas um compromisso, mas que nos tinhas deixado à vontade.

– Fizeste bem. Assim ninguém saiu melindrado.

– Sim, foi uma boa saída. Já depois do jantar ele foi directo ao assunto pelo qual estava ali, sem rodeios. «Acho que se a Laura foi contigo e com o Miguel para a cama, no mínimo tu deverias estar comigo e com ela também». Mas havias de ver o tom arrogante com que disse isto.

– E tu?

– Eu? Disse-lhe que até o faria, mas nunca sem tu estares presente, o que levou ao convite para amanhã à noite. «Eu sei que é algo afastado», disse-lhe, «mas por outro lado é também extremamente recatado». Ele lá aceitou e saiu logo em seguida.

– E a Laura?

– A Laura ficou mais um bocadinho. Estava mais descansada, mas ainda assim sem saber muito bem o que dizer.

– Que lhe disseste?

– Que depois do encontro de quarta-feira tudo ficaria bem.

– E achas que tudo vai ficar bem?

– Tenho a certeza…

Fiquei com uma impressão estranha quando ouvi esta resposta. Mas não me atrevi a questionar.

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