– É verdade, ainda não me disseste o que se passou
ontem…
– Pois não – respondeu ela, enquanto acabava de se
secar.
Tínhamos vindo da praia e tomámos um duche rápido
para tirar o sal do corpo. Entretanto tinha acabado de me secar e lembrara-me.
– Deixa-me só acabar de secar o cabelo e já te
conto – continuou ela.
– Está bem, eu espero. – E dirigi-me ao portátil,
para escrever mais um pouco.
Esta tarde tinha sido absolutamente fabulosa para
mim e queria registar todas estas impressões enquanto estavam ainda frescas na
minha memória. Escrevia rapidamente, tentando deixar tudo registado, mas sabia
que, por mais que tentasse, as palavras ficariam sempre longe da realidade
vivida.
A diferença entre as palavras que ia escrevendo e
tudo aquilo por que passara era, na realidade, tão abismal que quase tinha vontade
de procurar um novo vocabulário onde as palavras pudessem carregar sensações.
Para mim este momento, enquanto escritor, era frustrante. Frustrante não porque
não fossem as palavras certas, mas porque me apercebia claramente de que eram
vazias de sentimentos, logo também o eram de significado. E, assim sendo, nada
do que eu tinha feito até então fazia sentido.
E tudo isto, em vez de me deprimir, deu-me uma
vontade enorme de rir. Tanta que comecei à gargalhada, bem alto.
– Estás-te a rir de quê? – Perguntou ela do
quarto.
– De nada. Mesmo nada. Acho que estou a perder o
juízo, é só isso.
– Porquê? – Voltou a perguntar, divertida,
enquanto se juntava a mim.
Expliquei-lhe o que acabara de passar pela cabeça.
Também ela se riu.
– Sabes, tens toda a razão. Mas pior ainda,
imagina que as tuas palavras serão traduzidas. Alem de teres de contar com a
interpretação do leitor final, tens ainda um intermediário que nunca é isento.
– Pois! Pior ainda.
– E agora imagina isso num texto sagrado, como a Bíblia, por exemplo.
Calei-me de repente e vi a seriedade da questão. E
vi as cisões dentro da mesma religião por causa de coisas como uma vírgula, os
erros de interpretação, as palavras intraduzíveis de uma língua para outra.
Ela olhou para mim, divertida.
– Chegaste lá, não foi?
– Acho que sim. Sendo os textos sagrados traduções
de traduções de textos que existem em línguas mortas, estão completamente
cheios de imprecisões, incorrecções e erros.
– Sim, é isso mesmo. Ainda que o original pudesse
ser a palavra de Deus, a verdade é que não foi Deus que a escreveu nem
traduziu. Ainda que essa fosse a realidade, a verdade está perdida por baixo de
todas as interpretações. Perdeu-se.
– Nesse caso, os textos sagrados não fazem grande
sentido!
Ela sorriu.
– Pelo menos são algo. Uma parte, mas é melhor ter
apenas uma parte que não ter nada. Pelo menos dão esperança a quem acredita, e
a esperança é a coisa mais preciosa que o ser humano pode ter. Quando ela está
perdida, tudo está perdido.
Parei a olhar para ela e a matutar no significado
da palavra «esperança» e em tudo o que carregava em si. A esperança, aquilo que
nos fazia suportar tudo e por vezes nos obrigava a transcendermo-nos e vi o
significado das escrituras. A mensagem e não as palavras em que ela se apoiava
para chegar.
– Mas queres descer a assuntos mais mundanos? –
Perguntou ela.
– Como, por exemplo?
– O jantar de ontem. Não estavas curioso?
– Estava e estou. Conta.
– Está bem, mas só porque estás a pedir. – Ri-me –
A Laura chegou primeiro, não muito tempo depois de tu saíres. Estava destroçada
sem saber como lidar com a situação. Conversei com ela durante um bom bocado.
Fomos as duas para a cozinha e fomos preparando o jantar e falando. O pouco que
falara com o Henrique não fora, de todo, bom. Estava muito preocupada com o que
o futuro lhe reservava. «Sem o apoio dele», dizia, «não sei como levar a minha
vida». Eu tentei acalmá-la e disse-lhe que tudo ficaria bem. Perguntei-lhe o
que é que ela tinha contado ao Henrique acerca de nós. Ela disse-me que lhe
tinha dito que me tinha conhecido a mim no bar, e não a ti. Era mais fácil para
ele aceitar que as coisas tinham sido assim. Se ela lhe tivesse contado que
tinha estado contigo, ele não aceitaria.
– Compreendo. Sabes, não vejo que ele lhe tenha um
grande respeito, nem sentimentos muito fortes por ela, para te ser franco. Acho
que ela fez bem. É mais fácil para ele aceitar que ela bebeu uns copos a mais e
foi seduzida por outra mulher do que por outro homem. O orgulho dele sairia
muito pior.
– Claro. Também a compreendi. Depois falou-lhe da
noite que passou aqui e ele até pareceu entusiasmado com a história, fartou-se
de lhe fazer perguntas acerca de mim. Sabes, acho que ele encaixou na cabeça
que de alguma maneira ela lhe devia uma certa reciprocidade. E que eu lha devia
também. Foi ele que a convenceu a organizar o jantar connosco.
– Já calculava algo desse género.
– Pois. O que não sabes é que quando saíste ele
fez todas as conjecturas possíveis e não ficou minimamente incomodado, antes
pelo contrário.
– Pois, não sabia, mas também calculava.
– O facto de eu o ter recusado deixou-o em brasa,
como já te disse, e a Laura contou-me que do pouco que tinham falado durante o
dia, grande parte foram ameaças. Ele foi completamente arrogante com ela.
– Ele é completamente arrogante com o mundo –
disse eu com um sorriso.
– Pois… Mas entretanto ele chegou e tentou
portar-se como um cavalheiro, como se nada se tivesse passado. Eu fiz o mesmo e
jantámos num tom carregado pelas circunstâncias, mas de certa forma até
cordial.
– E o que é que lhes disseste da minha ausência?
– Disse-lhes que nem me lembrava que tinhas um
compromisso, mas que nos tinhas deixado à vontade.
– Fizeste bem. Assim ninguém saiu melindrado.
– Sim, foi uma boa saída. Já depois do jantar ele
foi directo ao assunto pelo qual estava ali, sem rodeios. «Acho que se a Laura
foi contigo e com o Miguel para a cama, no mínimo tu deverias estar comigo e
com ela também». Mas havias de ver o tom arrogante com que disse isto.
– E tu?
– Eu? Disse-lhe que até o faria, mas nunca sem tu
estares presente, o que levou ao convite para amanhã à noite. «Eu sei que é
algo afastado», disse-lhe, «mas por outro lado é também extremamente recatado».
Ele lá aceitou e saiu logo em seguida.
– E a Laura?
– A Laura ficou mais um bocadinho. Estava mais
descansada, mas ainda assim sem saber muito bem o que dizer.
– Que lhe disseste?
– Que depois do encontro de quarta-feira tudo
ficaria bem.
– E achas que tudo vai ficar bem?
– Tenho a certeza…
Fiquei com uma impressão estranha quando ouvi esta
resposta. Mas não me atrevi a questionar.
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