quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Chuva - XV

 

Sim, eu próprio fiquei surpreendido com a minha resposta. Mas acho que a dei porque percebi que o meu objectivo de estar ali se prendia precisamente com a necessidade de expor o que se passava.

Claro que fui bombardeado com todas as perguntas que seriam lógicas em seguida. “Revelado? Por quem? Pelo quê? Como?” mas depois de dar a resposta fechei-me novamente. Não respondi a mais nada. O médico olhava para mim com surpresa e ao mesmo tempo com um ar de quem tenta descortinar motivos ocultos por detrás das minhas acções. Tinha de ter cuidado com ele. Muito cuidado.

Foi ele que me arrancou das garras dos jornalistas e me levou de volta para o carro. Saímos dali em direcção a Lisboa, novamente. Continuamos em silêncio por um bom bocado.

Foi quando chegamos à auto-estrada que ele se virou finalmente para mim.

“Qual foi o seu objectivo, afinal?”

Não respondi. Até porque também eu não tinha resposta. Nem eu sabia.

“Sabe, ou você é incrivelmente esperto ou incrivelmente estúpido.”

Eu pessoalmente começava a achar que a segunda hipótese era a mais consistente.

“Mas seja de que maneira for, espero que tenha consciência do que vem ai agora. Tem essa consciência?”

Claro que tinha. Aliás, tinha de tal forma que ainda não fazia ideia do que ia fazer em seguida. A minha vida ia virar-se do avesso, ia ter montes de olhos postos em mim, pessoas a fazer perguntas umas atrás das outras. A minha invisibilidade tinha-se perdido. Respondi negativamente com a cabeça.

“Pois, calculo que não tenha.”

Voltamos os dois ao nosso silêncio. Ele conduzia pensativo. Eu tentava de uma vez por todas percebê-lo. Afinal, o que levaria um homem como ele a estar aqui, agora?

Ele estava verdadeiramente intrigado comigo, isso era certo. E creio que mais ainda agora do que antes. Mas também acredito que o interesse dele fosse além da curiosidade. Era um médico, um homem de ciência…

…mas aparentemente procurava algo mais. E, de repente, ao descobrir em mim algo que desafiava a lógica, tentava perceber o que se passava, e por consequência tentava perceber-me a mim.

E nesse momento tive a certeza de que, enquanto conseguisse manter a minha mascara, poderia ter nele um aliado valioso, alguém que me serviria de escudo, que conseguiria absorver os primeiros impactos das consequências dos meus actos e assim levar a que, apesar da exposição, a minha mascara se mantivesse intacta.

“Amanhã meio Portugal vai andar à sua procura. Tem noção disso?”

“Não, doutor.”

“Porra, deixe lá a treta do doutor de lado. O meu nome Fernandes. E eu ainda nem o seu nome sei…”

“Gabriel, …” disse eu “…Gabriel Guerra.”

“Gabriel, detesto formalismos. Já basta quando tenho mesmo de os usar. Podemos tratar-nos por ‘tu’?”

“Sim.”

Ele olhou para mim e sorriu.

“Gabriel, voltando à pergunta, tens noção de que amanhã toda a gente vai querer saber quem tu és?”

Eu tinha…

…mas não queria ter.

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