Cheguei à casa de praia uma hora e meia depois, envolto por uma neblina espessa que quase não me deixava ver a estrada.
Cinco e catorze da manhã. Olhei para o relógio
quando levava a chave à porta. A humidade no ar era tão grande que quase sentia
as roupas ensopadas.
Entrei, liguei a aquecimento, porque a casa estava
fria, tirei as roupas, vesti um pijama e um robe. Depois dentei-me no sofá da
sala. Apático. Tinha fugido.
Ela dizia-me morto? Talvez, mas a verdade é que os
últimos dez anos tinham passado com calma, sem sobressaltos, de uma forma
indolente. E neste momento, francamente não sabia o que sentir, vendo tudo
aquilo de que estava certo a escapar-me ao controlo. Via tudo o que acontecera
e começava a pensar até que ponto a situação com Laura não teria sido
orquestrada por ela. As coisas pareciam acontecer com a precisão que ela
queria. Nem mais cedo, nem mais tarde, sem surpresas. Apenas se consumavam aos
seus olhos, como se a situação sempre ali tivesse estado e ela também. Era eu
que parecia sempre um recém-chegado, que nunca conseguia surpreender e era
enredado por algo em que tropeçava.
E porque é que ela me fizera aquilo, sem um grama
de mágoa, de dor, de desdém, de nada? Pura e simplesmente constatando as minhas
verdades, sem qualquer espécie de sentimento, arrebatando-me a minha conquista,
que nem eu acreditara que o fora e tomando-a para ela.
Os cigarros sucederam-se, tal como os pensamentos.
Apenas o sono não chegou. O sol subiu, dissipando o nevoeiro e o final da manhã
tornou-se pleno de luz e radioso. Mas não mudou a disposição.
Perto do meio-dia os meus pensamentos foram
interrompidos pelo barulho de um carro que chegava. Fui à porta e, com alguma
surpresa, vejo Laura e Lilith chegarem com alguns sacos na mão. Lilith vinha à
frente. Chegou ao pé de mim, abraçou-me, chegou a sua boca ao meu ouvido e
sussurrou:
– Julgavas que te deixava aqui sozinho? Tu não
eras capaz de cozinhar alguma coisa de jeito nem que a tua vida dependesse
disso. Eu não te quero mal tratado, nem sequer por ti próprio… – e seguiu em
direcção à cozinha para poisar os sacos.
Laura passou por mim dando-me um beijo na face e
seguindo Lilith para a cozinha.
Para isto, teria ficado em Lisboa. Afinal não
fugira de nada. Estava tudo aqui na mesma e dentro de mim a suspeita de que,
fosse eu para onde fosse, tudo estaria lá e seria incontornável. Resignei-me.
Voltei ao meu passatempo anterior de fumar cigarros no sofá da sala.
Infelizmente, já não me podia dar ao luxo de pensar, com duas mulheres a falar
alegremente na cozinha.
Ao fim de dois ou três cigarros, Lilith saiu da
cozinha e sentou-se ao meu lado. Ficou a olhar para mim com um sorriso, à espera
que eu me decidisse a dizer qualquer coisa. Eu não queria abrir a boca e
ficámos naquele impasse. O sorriso dela vergou-me ao fim de algum tempo.
Procurei algo óbvio para lhe dizer que não denotasse que eu estava a ceder.
– A Laura? – Perguntei secamente.
– Está a fazer o almoço. É uma óptima cozinheira,
sabias? E adora cozinhar.
– Ai é?
– É. Ela contou-me no caminho.
– Deves ter ficado a saber muita coisa sobre ela,
não?
– Bastante. Sabes, por vezes podemos conhecer
melhor uma pessoa numa hora que numa vida inteira.
Remeti-me novamente ao silêncio. Mas já tinha
cedido uma vez, que era o que ela queria.
– Miguel, diz-me, achas que temos de ser fiéis um
ao outro?
– Como assim?
– Responde, simplesmente.
– Não sei. Não sei o que é isto que temos, se é
que temos alguma coisa, não sei porque é que a Laura está na cozinha a fazer o
almoço, não sei porque cargas de água é que estou aqui, não sei de nada…
Ela olhou para mim, com o mesmo sorriso. Um
sorriso que me parecia absolutamente sincero, carregado de companheirismo.
– Sabes, Miguel – disse ao fim de algum tempo –,
devemos ser fiéis, sim. Mas a fidelidade é a uma ideia, é um elo, um conceito
que apenas implica que dois seres confiem plenamente um no outro. E eu confio
plenamente em ti.
– Porquê?
– Porque que te conheço. E sei que posso. Mas e
tu, Miguel, confias em mim?
Demorei algum tempo a dar a primeira resposta que
me veio à cabeça.
– Sim.
– Miguel, o teu corpo é só o teu corpo. E o facto
de estares nele não o torna mais valioso, a não ser para ti próprio. Já
estiveste com várias mulheres e o teu corpo nunca deixou de ser teu, pois não?
– Não, na verdade não. Mas onde queres chegar?
– O meu corpo esteve com números incontáveis de
homens e mulheres. Não existe nada debaixo do Sol que seja novidade para mim.
Gosto de estar com alguém quando quero esse alguém. Mas nunca deixo de ser fiel
a mim. Nunca entrego o corpo, que é meu. Partilho-o. Mas, Miguel, o meu
espírito só o dou a quem confio implicitamente, ainda que não partilhe o meu
corpo.
Ela deixou a ideia assentar em mim e depois
perguntou:
– Diz-me, Miguel, se sou fiel em espírito a
alguém, e se esse alguém me é fiel, então a confiança implícita está lá. Então
o que interessa o que eu faço com o meu corpo? Esse alguém sabe que a entrega
do corpo não é a do espírito. A fidelidade mantém-se intacta. Achas que uma
vítima de violação é infiel só porque o seu corpo esteve com outra pessoa?
Mantive-me em silêncio.
– Miguel, há quem esteja com muitas pessoas e seja
fiel, e quem esteja apenas com uma durante toda a vida e não seja fiel nem a si
próprio. Quem achas mais certo? O que segue os cânones, ou o que desfruta e
partilha esse usufruto com quem é fiel?
Ela tinha razão. E eu sabia-o e negá-lo era
hipócrita da minha parte.
– Sou-te fiel, Miguel. Do meu ponto de vista. Sou
e serei. Achas que estaria aqui se não confiasse em ti? Deixo-te só mais um
pensamento. Precisas de te assegurar de que a minha prole provém de ti?
Precisas de assegurar algum domínio? Miguel, eu jamais quererei dominar-te, e
nunca me deixarei dominar. Quando quiseres uma certeza pergunta.
Levantou-se e deixou-me só com os meus pensamentos
novamente, enquanto sentia a casa a ser invadida pelo cheiro de um refogado.
Lembrei-me de uma frase que o meu pai dizia muitas
vezes, «A única certeza é a morte!», mas com ela até isso era incerto. Afinal o
que eram meros conceitos para alguém que fundara civilizações? Quantos conceitos
diferentes teria ela já vivido? Quantas maneiras de ver o mundo, e todas certas
à luz da sua época?
Afinal, um conceito é um reflexo da verdade? É,
mas sob um determinado ponto de vista. Fora dele, a verdade existe por si só.
E, de repente, as minhas atitudes desde ontem à tarde pareciam mesquinhas
demais. Pobres. E ainda me senti despeitado…
Apaguei o cigarro que fumava, levantei-me e fui
ter com elas à cozinha. Andavam as duas atarefadas. Olhei para Laura. Noutra
situação qualquer teria algum sentimento de culpa em relação a ela, como se de
certa maneira me tivesse aproveitado dela para descarregar a minha raiva e
frustração. Mas Lilith encarregou-se de fazer com que isso não acontecesse. A
conversa de ontem tinha sido esclarecedora. Eu não tinha sido o caçador, ela
não tinha sido a presa. Apenas estávamos ali, naquele momento. Encarei-a sem
arrependimentos. Ela levantou os olhos e sorriu. Veio ter comigo, deu-me um
beijo nos lábios, ao de leve, e perguntou num tom genuinamente preocupado:
– Estás bem?
– Estou.
Ela olhou-me com um olhar maroto.
– Mesmo?
– Mesmo, a sério. Não te preocupes.
Afastou-se voltando a dedicar-se ao refogado que
me fazia crescer água na boca. Ao passar por Lilith deu-lhe um beijo de fugida
na face. Lilith olhou para mim e sorriu. Eu sorri.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!