segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Lilith - XXI - Fidelidade

Cheguei à casa de praia uma hora e meia depois, envolto por uma neblina espessa que quase não me deixava ver a estrada.

Cinco e catorze da manhã. Olhei para o relógio quando levava a chave à porta. A humidade no ar era tão grande que quase sentia as roupas ensopadas.

Entrei, liguei a aquecimento, porque a casa estava fria, tirei as roupas, vesti um pijama e um robe. Depois dentei-me no sofá da sala. Apático. Tinha fugido.

Ela dizia-me morto? Talvez, mas a verdade é que os últimos dez anos tinham passado com calma, sem sobressaltos, de uma forma indolente. E neste momento, francamente não sabia o que sentir, vendo tudo aquilo de que estava certo a escapar-me ao controlo. Via tudo o que acontecera e começava a pensar até que ponto a situação com Laura não teria sido orquestrada por ela. As coisas pareciam acontecer com a precisão que ela queria. Nem mais cedo, nem mais tarde, sem surpresas. Apenas se consumavam aos seus olhos, como se a situação sempre ali tivesse estado e ela também. Era eu que parecia sempre um recém-chegado, que nunca conseguia surpreender e era enredado por algo em que tropeçava.

E porque é que ela me fizera aquilo, sem um grama de mágoa, de dor, de desdém, de nada? Pura e simplesmente constatando as minhas verdades, sem qualquer espécie de sentimento, arrebatando-me a minha conquista, que nem eu acreditara que o fora e tomando-a para ela.

Os cigarros sucederam-se, tal como os pensamentos. Apenas o sono não chegou. O sol subiu, dissipando o nevoeiro e o final da manhã tornou-se pleno de luz e radioso. Mas não mudou a disposição.

Perto do meio-dia os meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de um carro que chegava. Fui à porta e, com alguma surpresa, vejo Laura e Lilith chegarem com alguns sacos na mão. Lilith vinha à frente. Chegou ao pé de mim, abraçou-me, chegou a sua boca ao meu ouvido e sussurrou:

– Julgavas que te deixava aqui sozinho? Tu não eras capaz de cozinhar alguma coisa de jeito nem que a tua vida dependesse disso. Eu não te quero mal tratado, nem sequer por ti próprio… – e seguiu em direcção à cozinha para poisar os sacos.

Laura passou por mim dando-me um beijo na face e seguindo Lilith para a cozinha.

Para isto, teria ficado em Lisboa. Afinal não fugira de nada. Estava tudo aqui na mesma e dentro de mim a suspeita de que, fosse eu para onde fosse, tudo estaria lá e seria incontornável. Resignei-me. Voltei ao meu passatempo anterior de fumar cigarros no sofá da sala. Infelizmente, já não me podia dar ao luxo de pensar, com duas mulheres a falar alegremente na cozinha.

Ao fim de dois ou três cigarros, Lilith saiu da cozinha e sentou-se ao meu lado. Ficou a olhar para mim com um sorriso, à espera que eu me decidisse a dizer qualquer coisa. Eu não queria abrir a boca e ficámos naquele impasse. O sorriso dela vergou-me ao fim de algum tempo. Procurei algo óbvio para lhe dizer que não denotasse que eu estava a ceder.

– A Laura? – Perguntei secamente.

– Está a fazer o almoço. É uma óptima cozinheira, sabias? E adora cozinhar.

– Ai é?

– É. Ela contou-me no caminho.

– Deves ter ficado a saber muita coisa sobre ela, não?

– Bastante. Sabes, por vezes podemos conhecer melhor uma pessoa numa hora que numa vida inteira.

Remeti-me novamente ao silêncio. Mas já tinha cedido uma vez, que era o que ela queria.

– Miguel, diz-me, achas que temos de ser fiéis um ao outro?

– Como assim?

– Responde, simplesmente.

– Não sei. Não sei o que é isto que temos, se é que temos alguma coisa, não sei porque é que a Laura está na cozinha a fazer o almoço, não sei porque cargas de água é que estou aqui, não sei de nada…

Ela olhou para mim, com o mesmo sorriso. Um sorriso que me parecia absolutamente sincero, carregado de companheirismo.

– Sabes, Miguel – disse ao fim de algum tempo –, devemos ser fiéis, sim. Mas a fidelidade é a uma ideia, é um elo, um conceito que apenas implica que dois seres confiem plenamente um no outro. E eu confio plenamente em ti.

– Porquê?

– Porque que te conheço. E sei que posso. Mas e tu, Miguel, confias em mim?

Demorei algum tempo a dar a primeira resposta que me veio à cabeça.

– Sim.

– Miguel, o teu corpo é só o teu corpo. E o facto de estares nele não o torna mais valioso, a não ser para ti próprio. Já estiveste com várias mulheres e o teu corpo nunca deixou de ser teu, pois não?

– Não, na verdade não. Mas onde queres chegar?

– O meu corpo esteve com números incontáveis de homens e mulheres. Não existe nada debaixo do Sol que seja novidade para mim. Gosto de estar com alguém quando quero esse alguém. Mas nunca deixo de ser fiel a mim. Nunca entrego o corpo, que é meu. Partilho-o. Mas, Miguel, o meu espírito só o dou a quem confio implicitamente, ainda que não partilhe o meu corpo.

Ela deixou a ideia assentar em mim e depois perguntou:

– Diz-me, Miguel, se sou fiel em espírito a alguém, e se esse alguém me é fiel, então a confiança implícita está lá. Então o que interessa o que eu faço com o meu corpo? Esse alguém sabe que a entrega do corpo não é a do espírito. A fidelidade mantém-se intacta. Achas que uma vítima de violação é infiel só porque o seu corpo esteve com outra pessoa?

Mantive-me em silêncio.

– Miguel, há quem esteja com muitas pessoas e seja fiel, e quem esteja apenas com uma durante toda a vida e não seja fiel nem a si próprio. Quem achas mais certo? O que segue os cânones, ou o que desfruta e partilha esse usufruto com quem é fiel?

Ela tinha razão. E eu sabia-o e negá-lo era hipócrita da minha parte.

– Sou-te fiel, Miguel. Do meu ponto de vista. Sou e serei. Achas que estaria aqui se não confiasse em ti? Deixo-te só mais um pensamento. Precisas de te assegurar de que a minha prole provém de ti? Precisas de assegurar algum domínio? Miguel, eu jamais quererei dominar-te, e nunca me deixarei dominar. Quando quiseres uma certeza pergunta.

Levantou-se e deixou-me só com os meus pensamentos novamente, enquanto sentia a casa a ser invadida pelo cheiro de um refogado.

Lembrei-me de uma frase que o meu pai dizia muitas vezes, «A única certeza é a morte!», mas com ela até isso era incerto. Afinal o que eram meros conceitos para alguém que fundara civilizações? Quantos conceitos diferentes teria ela já vivido? Quantas maneiras de ver o mundo, e todas certas à luz da sua época?

Afinal, um conceito é um reflexo da verdade? É, mas sob um determinado ponto de vista. Fora dele, a verdade existe por si só. E, de repente, as minhas atitudes desde ontem à tarde pareciam mesquinhas demais. Pobres. E ainda me senti despeitado…

Apaguei o cigarro que fumava, levantei-me e fui ter com elas à cozinha. Andavam as duas atarefadas. Olhei para Laura. Noutra situação qualquer teria algum sentimento de culpa em relação a ela, como se de certa maneira me tivesse aproveitado dela para descarregar a minha raiva e frustração. Mas Lilith encarregou-se de fazer com que isso não acontecesse. A conversa de ontem tinha sido esclarecedora. Eu não tinha sido o caçador, ela não tinha sido a presa. Apenas estávamos ali, naquele momento. Encarei-a sem arrependimentos. Ela levantou os olhos e sorriu. Veio ter comigo, deu-me um beijo nos lábios, ao de leve, e perguntou num tom genuinamente preocupado:

– Estás bem?

– Estou.

Ela olhou-me com um olhar maroto.

– Mesmo?

– Mesmo, a sério. Não te preocupes.

Afastou-se voltando a dedicar-se ao refogado que me fazia crescer água na boca. Ao passar por Lilith deu-lhe um beijo de fugida na face. Lilith olhou para mim e sorriu. Eu sorri.

Como Laura estava hoje tão longe daquela mulher meio insegura que quase chorava na noite anterior por alguém que, claramente, não a merecia. Hoje estava aqui, plena, segura, feminina. Interessante, sem dúvida. Tinha também ela sido tocada por uma deusa. Só que não o sabia…

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