Não sei o que se passou em seguida ao certo, nem quanto tempo estivemos ali. Só sei que me senti a acordar, embora não me parecesse que tivesse adormecido. Em cima do meu peito, ela, deitada, acariciava-me e olhava-me com os mesmos olhos repletos de ternura onde me perdera. A minha cabeça e o meu corpo continuavam a explodir em sensações que, se eram por um lado extremamente poderosas, capazes de mudar a maneira como eu via o mundo, não deixavam de ser calmas e doces.
Senti um toque de
intemporalidade, percebi de uma assentada o que me tinha dito acerca de Deus,
do bem e do mal.
Ela sorriu.
Não havia necessidade de
palavras para nos expressarmos, a nossa troca de olhares dizia tudo. Pela
primeira vez na minha vida não me sentia só, e sabia, tinha a certeza de que
nunca mais me sentiria só.
Ela tocou-me os lábios com
a ponta do indicador, como que para me chamar a atenção.
– Temos de ir…
Acenei com a cabeça em
assentimento.
Ela levantou-se e eu
levantei-me em seguida, sacudimos a areia ainda agarrada ao corpo, e vestimos as
nossas roupas.
Olhei para o relógio. Duas
e quarenta e sete da tarde.
Voltámos ao carro.
Enquanto subíamos sentia-me não como se andasse, mas como se de alguma forma
flutuasse, como se não tivesse peso. Ao chegar ao pé do carro olhei para a
vastidão do mar e as cores de alguma maneira pareciam diferentes, mais
luminosas, com pormenores mais nítidos, mais definidos. Era como se sempre
tivesse visto a vida e o mundo através de uns óculos escuros com lentes reles e
de repente mos tirassem da frente e revelassem as verdadeiras cores.
Sentámo-nos no carro.
Fiquei ainda uns momentos a reflectir em tudo isto, nos dias desde que a
conhecera, na sequência de acontecimentos até chegar ali. Não contive a
pergunta.
– Porquê?
Ela olhou para mim com uma
expressão séria. Media as palavras que me ia dizer em seguida.
– Há coisas que se
conseguem controlar com facilidade. Mais do que aparentemente julgamos. Há
outras que não.
– Sim, é verdade.
– Na Natureza tudo são
fluxos de energia. Todas as energias se influenciam umas às outras, por vezes
de formas imperceptíveis. No entanto, embora não nos apercebamos delas,
intuímo-las. Precisamos de as intuir enquanto animais que somos, a evolução
levou-nos para isso. Compreendes este conceito?
– Sim, não é muito difícil
de perceber. É um conceito muito «oriental». O yin e o yang…
– Mais ou menos isso. A
questão é que quando compreendes este conceito na totalidade e aprendes a
influenciá-lo tens uma chave na mão para a consciência dos que te rodeiam.
Perguntaste-me várias vezes porque é que não te sentias atraído por mim, e que
isso te confundia, não foi?
– Sim, e para te ser
franco, ainda me confunde. Não consigo compreender o porquê.
– O porquê não está em ti.
Está em mim. Se eu consigo reconhecer a energia que emanas e consigo controlar
a minha, consigo controlar os teus instintos mais básicos em relação a mim. Tão
depressa consigo fazer com que estejas completamente indiferente à minha
presença, como no momentos a seguir fazer-te sentir um desejo e uma paixão
incontroladas. Isto é, consigo controlar a tua parte animal.
– Compreendo. Daí estares
ao meu lado e eu ser incapaz de sentir algo por ti.
– Não é bem assim. Na
verdade sentes, mas o que sentes não vem da tua parte animal.
– Que é que queres dizer
com isso?
– Quero dizer que no meio
de tudo existem sentimentos teus por mim. São é muito mais elevados. Não se
relacionam apenas com desejo, com paixão, com química ou seja com o que for. Há
uma necessidade de estar, de proteger, de compreender. Não há?
Ficámos em silêncio
enquanto reflectia sobre isto. Enquanto procurava em mim o que na verdade
estava lá em relação a ela.
– Sim, acho que tens
razão. Começou com um fascínio por ti, pela maneira como te apresentaste, pela
maneira como estás, mas à medida que te foste revelando é também uma
necessidade de te sentir perto, uma vontade de te proteger, de te conhecer mais
e mais, de te entender, por mais difícil que isso se me afigure. Gosto da tua
companhia, gosto que estejas presente e sinto uma empatia tão grande contigo,
que quando estás triste não consigo controlar o facto de te querer confortar.
– Mas não deixa de ser um
sentimento calmo, não é?
– Muito calmo, sem
pressas, sem que precise de nada para mim.
– Completamente altruísta?
– Sim, acredita. Acho que
nem preciso que me reconheças esse sentimento. Ele apenas está ali e faz parte
de mim e da maneira como te vejo. Não está dependente de nada que venha de ti.
É, pura e simplesmente.
– E reconheces esse
sentimento, Miguel?
A pergunta apanhou-me
desprevenido. Na verdade não o reconhecia. Afecto? Sim, mas não só. Carinho?
Por completo. Mas era sobretudo uma vontade de apreendê-la, conhecê-la, de chegar
a ela, de me dar a conhecer, de retirar todas as defesas, mesmo contra o que o
meu bom senso me dizia, e mostrar-lhe tudo o que sou, sem segredos, sem
recantos obscuros. E aos poucos o reconhecimento veio até mim.
– Eu amo-te – disse, sem
qualquer intensidade na voz que a tentasse convencer disso – de uma forma
completamente desapaixonada.
– O que não impede que
sintas a paixão. Sabes, como posso suprimir sensações por mim, também as
consigo amplificar. Mas no teu caso, quando deixei de as suprimir também não
fiz nada por amplificá-las.
– E ainda assim acho que
nunca senti tanta paixão e desejo por uma mulher.
Ela sorriu. Inclinou-se
para mim, beijou-me, docemente, e perguntou em seguida:
– E se fôssemos almoçar?
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