quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Lilith - XVII - Porquê?

Não sei o que se passou em seguida ao certo, nem quanto tempo estivemos ali. Só sei que me senti a acordar, embora não me parecesse que tivesse adormecido. Em cima do meu peito, ela, deitada, acariciava-me e olhava-me com os mesmos olhos repletos de ternura onde me perdera. A minha cabeça e o meu corpo continuavam a explodir em sensações que, se eram por um lado extremamente poderosas, capazes de mudar a maneira como eu via o mundo, não deixavam de ser calmas e doces.

Senti um toque de intemporalidade, percebi de uma assentada o que me tinha dito acerca de Deus, do bem e do mal.

Ela sorriu.

Não havia necessidade de palavras para nos expressarmos, a nossa troca de olhares dizia tudo. Pela primeira vez na minha vida não me sentia só, e sabia, tinha a certeza de que nunca mais me sentiria só.

Ela tocou-me os lábios com a ponta do indicador, como que para me chamar a atenção.

– Temos de ir…

Acenei com a cabeça em assentimento.

Ela levantou-se e eu levantei-me em seguida, sacudimos a areia ainda agarrada ao corpo, e vestimos as nossas roupas.

Olhei para o relógio. Duas e quarenta e sete da tarde.

Voltámos ao carro. Enquanto subíamos sentia-me não como se andasse, mas como se de alguma forma flutuasse, como se não tivesse peso. Ao chegar ao pé do carro olhei para a vastidão do mar e as cores de alguma maneira pareciam diferentes, mais luminosas, com pormenores mais nítidos, mais definidos. Era como se sempre tivesse visto a vida e o mundo através de uns óculos escuros com lentes reles e de repente mos tirassem da frente e revelassem as verdadeiras cores.

Sentámo-nos no carro. Fiquei ainda uns momentos a reflectir em tudo isto, nos dias desde que a conhecera, na sequência de acontecimentos até chegar ali. Não contive a pergunta.

– Porquê?

Ela olhou para mim com uma expressão séria. Media as palavras que me ia dizer em seguida.

– Há coisas que se conseguem controlar com facilidade. Mais do que aparentemente julgamos. Há outras que não.

– Sim, é verdade.

– Na Natureza tudo são fluxos de energia. Todas as energias se influenciam umas às outras, por vezes de formas imperceptíveis. No entanto, embora não nos apercebamos delas, intuímo-las. Precisamos de as intuir enquanto animais que somos, a evolução levou-nos para isso. Compreendes este conceito?

– Sim, não é muito difícil de perceber. É um conceito muito «oriental». O yin e o yang

– Mais ou menos isso. A questão é que quando compreendes este conceito na totalidade e aprendes a influenciá-lo tens uma chave na mão para a consciência dos que te rodeiam. Perguntaste-me várias vezes porque é que não te sentias atraído por mim, e que isso te confundia, não foi?

– Sim, e para te ser franco, ainda me confunde. Não consigo compreender o porquê.

– O porquê não está em ti. Está em mim. Se eu consigo reconhecer a energia que emanas e consigo controlar a minha, consigo controlar os teus instintos mais básicos em relação a mim. Tão depressa consigo fazer com que estejas completamente indiferente à minha presença, como no momentos a seguir fazer-te sentir um desejo e uma paixão incontroladas. Isto é, consigo controlar a tua parte animal.

– Compreendo. Daí estares ao meu lado e eu ser incapaz de sentir algo por ti.

– Não é bem assim. Na verdade sentes, mas o que sentes não vem da tua parte animal.

– Que é que queres dizer com isso?

– Quero dizer que no meio de tudo existem sentimentos teus por mim. São é muito mais elevados. Não se relacionam apenas com desejo, com paixão, com química ou seja com o que for. Há uma necessidade de estar, de proteger, de compreender. Não há?

Ficámos em silêncio enquanto reflectia sobre isto. Enquanto procurava em mim o que na verdade estava lá em relação a ela.

– Sim, acho que tens razão. Começou com um fascínio por ti, pela maneira como te apresentaste, pela maneira como estás, mas à medida que te foste revelando é também uma necessidade de te sentir perto, uma vontade de te proteger, de te conhecer mais e mais, de te entender, por mais difícil que isso se me afigure. Gosto da tua companhia, gosto que estejas presente e sinto uma empatia tão grande contigo, que quando estás triste não consigo controlar o facto de te querer confortar.

– Mas não deixa de ser um sentimento calmo, não é?

– Muito calmo, sem pressas, sem que precise de nada para mim.

– Completamente altruísta?

– Sim, acredita. Acho que nem preciso que me reconheças esse sentimento. Ele apenas está ali e faz parte de mim e da maneira como te vejo. Não está dependente de nada que venha de ti. É, pura e simplesmente.

– E reconheces esse sentimento, Miguel?

A pergunta apanhou-me desprevenido. Na verdade não o reconhecia. Afecto? Sim, mas não só. Carinho? Por completo. Mas era sobretudo uma vontade de apreendê-la, conhecê-la, de chegar a ela, de me dar a conhecer, de retirar todas as defesas, mesmo contra o que o meu bom senso me dizia, e mostrar-lhe tudo o que sou, sem segredos, sem recantos obscuros. E aos poucos o reconhecimento veio até mim.

– Eu amo-te – disse, sem qualquer intensidade na voz que a tentasse convencer disso – de uma forma completamente desapaixonada.

– O que não impede que sintas a paixão. Sabes, como posso suprimir sensações por mim, também as consigo amplificar. Mas no teu caso, quando deixei de as suprimir também não fiz nada por amplificá-las.

– E ainda assim acho que nunca senti tanta paixão e desejo por uma mulher.

Ela sorriu. Inclinou-se para mim, beijou-me, docemente, e perguntou em seguida:

– E se fôssemos almoçar?



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