Entrei no carro, meti a chave na ignição, pus o
cinto de segurança e no momento em que ia dar a ignição ela entrou e sentou-se
ao meu lado.
Fiquei a olhar para ela, parado, estático, à
espera. Era ela que tinha que dizer algo. E disse.
– Estás chateado.
– Não, por acaso até nem estou, embora sinta que
tenho todas as razões para estar.
– Então porque é que queres ir embora?
– Porque, como te disse, não gosto dele, não quero
aturá-lo e muito menos recebê-lo em minha casa e ter de ser cordial com ele. Já
não lido bem com esse tipo de hipocrisia. Mas, uma vez que fizeste o convite,
deves honrá-lo, portanto, deixo-te à vontade. Confio em ti.
– Miguel, eu queria que estivesses.
– Mas eu não quero nem vou estar, mesmo.
Independentemente do que tu queres. Afinal não se tem sempre o que se quer, não
é?
– Mas Miguel, há uma razão para isto.
– Lilith, neste momento prezo-me mais a mim do que
às tuas razões. Eu ontem saí e tu escolheste ficar. Não te pedi explicações.
Não tenho que pedir. Como te disse, tu não me pertences, aquilo que me pertence
é o tempo que tenho contigo. Aquilo que me pertence mesmo sou eu, e se ontem já
não tinha paciência para ele, hoje muito menos. Vai, se não começares a fazer
agora o jantar, fica tarde.
O olhar dela para mim era diferente. Ela sabia que
eu não me estava a afirmar impondo a minha vontade, mas antes preservando-a e
seguindo aquilo em que acredito.
– Queres saber o que se passou ontem?
– Não.
– E se eu te contar?
– Contas.
Ela parou um bocadinho para recolher ideias.
– Se eu te contar ficas?
– Não.
Suspirou.
– Ontem, depois de saíres, ficámos no bar até por
volta das quatro e meia. O ambiente até estava agradável, o bar estava apinhado,
muito mais do que quando saíste. Logo depois de saíres a Laura ficou um pouco
triste, não estava à espera, mas eu consegui animá-la. Depois da música ao vivo
puseram música de dança e o bar transformou-se numa enorme discoteca com toda a
gente a dançar e aos pulos. Eu e a Laura demos show…
– Deram?
– Sim, a dançarmos coladinhas de forma bem
sensual, provocadora, mesmo.
– Já nem falando pelo resto do bar, o Henrique
devia estar a salivar.
– Estava, estava mesmo.
– Eu calculo. Ele fartou-se de me invejar a sorte
que eu tinha por ser um escritor famoso e conseguir sacar «gajas» como tu.
– A sério?
– Sim, foi a gota de água para mim. Isto logo a
seguir a enumerar as qualidades das gajas presentes…
– Enfim. Mas adiante. Quando saímos ofereceram-se
para me trazer a tua casa. Eu disse que não, que não te queria incomodar e para
me deixarem perto de um hotel ou assim que eu passava bem a noite. «Disparate»,
disse a Laura «…para isso ficas lá em casa». «Mas eu não quero incomodar…»
disse eu, e ela insistiu: «Mas, querida, sabes que não incomodas nada. Nem se
fala mais no assunto». Entretanto, via a maneira como o Henrique me olhava.
Estava de certa forma desiludido por eu ser um empecilho, mas ao mesmo tempo
desejava-me. Acho que nos termos dele seria uma espécie de «Tu és tão boa, mas
estás-me a estragar a queca.»
– Vê o ponto de vista dele. Depois de ter que
andar a arranjar desculpas ter alguém a segurar a vela…
– Sim, mas sabes, também fiquei na dúvida em
relação ao que a Laura teria falado de nós, sobretudo pela maneira como ele
olhava para mim.
– Duvido que ela lhe tenha dito alguma coisa. Acho
que ela própria ainda anda a digerir o que se passou…
– Achas?
– Acho. Eu ando, para te ser franco.
Ela riu à gargalhada.
– Mas lindo, o que se passou não foi absolutamente
natural?
– Foi, mas assusta, sabes. Ainda nem sei muito bem
como lidar com ela, e muito menos agora.
– Ainda tens a cabeça cheia de noções de certo e
errado… Achas errado o que se passou?
– Não. Só não sei se foi na altura certa.
– Porquê?
– Por causa do Henrique. – Ela sorriu. – Sabes,
ainda não percebi muito bem como é que aconteceu algo entre mim e ela, o que é
que levou a isso. Aliás, ainda não a percebi a ela. Porquê aquilo tudo, se
ainda se sente ligada a ele?
– Talvez se sentisse apenas carente e confusa
naquele momento…
– Sim, mas tudo o que se seguiu já não seria por
esse motivo.
– Vais compreender um dia – disse, de uma forma
algo enigmática.
– Espero que sim.
– Mas entretanto, chegámos a casa dela.
Perguntei-lhe de imediato onde é que ia dormir e ela indicou-me uma cama no
quarto de hóspedes. Depois perguntou-me se eu me iria já deitar. Eu disse que
sim e ela pediu-me para não ir já, que a noite ainda era uma criança e que eu
nem parecia muito cansada. Na realidade não estava, mas não os queria
incomodar. Perguntei-lhe se podia tomar um duche rápido e ela pôs-me à vontade.
Depois do duche, quando saí, estavam os dois no sofá da sala. A Laura pediu-me
para ficar um bocadinho enquanto ela se punha também à vontade. Sentei-me ao pé
do Henrique e fomos os dois falando um pouco, se bem que a conversa entre nós
era, nem sei como te dizer…
– Insalubre?
– Sim, boa comparação. Insalubre. Mas a ausência
da Laura deu‑lhe algum ânimo em relação a mim e começou a querer ficar mais
próximo, mais íntimo. Tentava tocar-me no cabelo ou na perna, quase
sub-repticiamente.
Olhou para mim em busca de reacção. Mas não havia.
Aquilo que lhe tinha dito era verdade. A minha cabeça em relação a ela estava
extraordinariamente bem resolvida. Sabia quem ela era, não conseguia ter uma
ideia dos homens e mulheres que tinha tido ao longo da sua vida. Mais um, menos
um não faria qualquer diferença em relação a mim. Contava apenas o que ela sentia
por mim, que eu sentia que ela sentia, e contava tanto que ela estava aqui a
dizer-me tudo isto. Sei que mo dizia também porque confiava e porque sabia que
eu não a ia censurar.
Durante a pausa que ela fez, apercebi-me de que
realmente o que sentia por ela era amor, mas não um amor possessivo, que exigisse
exclusividade, que me fizesse querê-la ter só para mim. Antes um amor
inclusivo, capaz de a perceber e aceitar, capaz de perceber que ela tem, como
qualquer outra pessoa, como eu próprio, a capacidade de amar com intensidade
mais do que uma única pessoa, e que aquilo que sente por uma não diminui o que
sente pelas outras, antes pelo contrario, dá mais sentido e aumenta esse amor.
E tive, nesse momento, a certeza de que ela o sentia pela Laura, embora não
soubesse porquê. Mas também não me cabia a mim saber, apenas aceitar, e fi-lo.
Ela continuou.
– Como o que ele fazia não era explícito também
não me afastei de uma forma explícita. Entretanto, a Laura apareceu vestida
numa camisa de noite longa, transparente, sem nada por baixo. Vinha muito sexy,
acredita. Tanto que tive pena que o Henrique ali estivesse… – Desta vez fui eu
quem sorriu. Quase a imaginei a fazer aquele olhar maroto para Laura enquanto
mordia o lábio de baixo. – A Laura pôs uma música suave, bem baixinho para não
incomodar ninguém e depois disse «Apetecia-me dançar…» e quis puxar o Henrique,
mas este recusou levantar-se. Então agarrou-me na mão e puxou-me para ela.
Colámos os nossos corpos num abraço apertado, encaixámo-nos uma na outra, e
fomos dançando assim ao longo de algum tempo. Reparava no Henrique que olhava
para nós com um ar deliciado, e para a maneira como me olhava, cheio de desejo.
A dada altura comecei a sentir os lábios da Laura no meu pescoço a darem-me
beijos pequeninos, mas doces, quando estava escondida dos olhos dele. Também eu
comecei a ficar quente, muito quente, e ela apetecia-me. Foi então que ela
desencaixou a cabeça do meu ombro, e eu imitei-a. Ficamos abraçadas, coladas
com os nossos corpos a roçarem devagar, com os olhos nos olhos uma da outra.
Não nos contivemos e demos um beijo doce, mesmo doce, sabes?
– Sei.
– Deves imaginar como ficou o Henrique…
– Não imagino, sei.
– Pois. Foi por esta altura que ele se levantou e
chegou ao pé de nós. Quando isso aconteceu eu libertei-me da Laura e limitei-me
a pedir desculpa. A Laura ficou algo confundida com a minha atitude, mas
percebeu de imediato que eu não queria nada com o Henrique. O Henrique
agarrou-a e beijou-a, a quis agarrar-me a seguir, mas eu afastei-me. Só que ele
estava num ponto em que não aceitaria um não nem que estivesse escrito na
lateral de um prédio e veio direito a mim.
– E tu?
– Eu parei-o. Sabes, ele de repente ficou a olhar
para mim com o misto do desejo no olhar e a lutar contra o sentimento de não me
querer, sem saber o que lhe estava a acontecer. Vi raiva nos olhos dele, sabes?
E depois deixou-se cair no sofá pesadamente, a olhar para a Laura e para mim,
com aquela mistura de coisas dentro dele, atónito. Eu disse-lhe «Eu não te
quero, Henrique».
– Nem imagino a cabeça dele.
– Pois não, não imaginas. Ele levantou-se de
repente, levantou a mão para mim, mas como calculas não foi capaz de me tocar.
Enfiou a mão na cara da Laura e fê-la cair para cima do sofá. Ela desatou a
chorar, não tanto pela agressão, mas por tudo o resto. Ele virou-se e disse
«Aposto que se fosse com o escritorzeco de meia-tijela o resultado era
diferente, não era, suas putas? Vão-se foder as duas, suas fufas de merda» e
saiu disparado porta fora.
– Bem, o gajo é meigo…
– Não calculas foi o estado de desespero em que a
Laura ficou. Levei-a para a cama, acalmei-a, fi-la dormir. Hoje quando acordou
contou-me o quanto estava dependente dele. A casa onde ela vive é praticamente
paga por ele, uma vez que o ordenado dela pouco mais dá do que para comer. Ela
nem gosta dele por ai além, mas ele foi a porta de saída para a solidão que ela
sentia e tomou conta dela. Acabou por lhe tomar conta da vida. Ela estava em
pânico. De tal forma que fui eu quem acabou por ligar e convidá-lo para jantar
hoje aqui. Pronto. Agora já sabes tudo.
– Pois, agora já sei. O problema é que depois de
saber ainda me apetece menos tê-lo à minha frente.
– Eu sei, mas temos que fazer algo pela Laura.
Compreendi-a, e sim, também tinha vontade de o
fazer. Mas hoje não.
– Podemos combinar uma coisa, então? – Perguntei.
– Diz.
– Eu hoje vou agarrar no portátil e vou para a
casa de praia. Tu dás o jantar. Já convidaste, está convidado, não vais voltar
atrás. Depois do jantar vais ter comigo, ainda hoje ou amanhã, como te der mais
jeito, mas perguntas se eles querem ir jantar lá no meio da semana.
– Porquê no meio da semana?
– Porque ai já arranjei paciência para lidar com
ele. Hoje não ia ter mesmo.
Ela olhou para mim e um brilho passou-lhe nos
olhos que não me escapou, embora não fizesse ideia do porquê.
– Pode ser, então. És capaz de ter razão. Ficamos
combinados assim. Eu hoje desculpo-te e arranjo um compromisso qualquer de que
eu não tinha conhecimento, tento serenar mais as coisas entre eles. Depois vou
ter contigo.
Assenti.
– Espero-te, então.
Ela ia para sair do carro mas parou o movimento,
voltou a olhar para mim com um ar diferente do que tinha até ontem, sorriu, e
inesperadamente disse-me:
– Tens noção de que eu também te amo?
Não esperou pela reposta e saiu.
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