Depois de tomarmos o café, pagámos, saímos e fomos andando até ao carro. Tinha-se instalado um nevoeiro espesso e a humidade estava fria e entranhava até aos ossos. Como sempre isso, não parecia afectá-la minimamente. Eram cinco e quarenta e cinco da tarde e as luzes da rua começavam a acender-se. Detesto os dias pequenos no Inverno.
A verdade é que, apesar de andarmos devagar, o
frio e a curiosidade faziam-me querer despachar. Mas admito que era mais a
curiosidade. O frio até era suportável.
O carro estava já coberto por uma camada
considerável de humidade. Entrámos. Pu-lo a trabalhar e liguei o aquecimento.
– Então e agora? Para onde?
– Para onde quiseres… – disse-me com um ar meio
ausente.
– Para onde eu quiser? Não costumas ser assim.
– Pois não. Mas deixo ao teu critério.
Desarmou-me. Naquele momento não sabia o que
fazer. Quando finalmente tive a liberdade de fazer algo, fiquei com a dúvida.
Para onde? Fazer o quê? Apetecia-me ir para casa e ouvi-la por horas sem fim.
Apetecia-me ouvir toda a história dela. Mas, por outro lado, apareceu em mim
uma vontade de lhe mostrar a minha independência. Impressioná-la. Só depois me
lembrei que impressioná-la… em quê? O que é que eu teria de impressionante para
ela? Reduzi-me à minha insignificância.
– Vamos para minha casa? Fazemos um jantarinho e
ficamos sossegados…
Ela olhou para mim como se adivinhasse tudo o que
me passara pela cabeça.
– Tudo bem. Como te disse, está ao teu critério.
Fizemos o caminho em silêncio até à entrada para a
auto-estrada, eu a tentar conter a minha curiosidade e ela a ignorá-la por completo.
Sentia-a divertida com a minha relutância. Quando entrávamos na auto-estrada,
falou finalmente:
– Não preciso que me dês espaço.
– Desculpa?
– Não preciso que me dês espaço. Tenho todo o que
preciso. Podes ser directo e sincero comigo.
– E não tenho sido?
– Sim, mas estás em pulgas. Desembucha. Para quê
tanto rodeio?
– Queria que me contasses a história. Ficaste de
ma contar a seguir ao café…
– Bem, ainda não faltei à minha palavra. Já
bebemos o café.
– É verdade, mas também já foi há um bocado.
– Que impaciência! Tens medo que o mundo acabe
agora?
– Eu sei que tu não, mas eu…
– …mas tu não tens a mínima ideia do que te
rodeia, por isso é que tens medo. Não te compreendo.
– Não?
– Não.
– E o que é que não compreendes?
– Como é que alguém que desistiu de viver há dez
anos tem tanto medo de morrer.
Calei-me.
– Miguel, para se morrer é preciso estar vivo, e
acho que o único momento em que estiveste vivo em dez anos foi naquela praia há
umas horas atrás. E, entretanto, deixaste-te morrer outra vez.
Fiquei num silêncio meio amuado. Sabia que ela
tinha razão. Mas não queria concordar nem discordar.
– ACORDA! – Gritou-me ela.
Senti-me furioso, e nem sabia se com ela ou
comigo. Mas furioso. Sentia o rubor faces, o coração a bater forte nos
tímpanos, as mãos a crisparem-se no volante. Tentei controlar-me, respirei
fundo. Ela ria.
– MAS O QUE É QUE QUERES DE MIM, AFINAL? –
Gritei-lhe eu, finalmente explodindo.
Ela riu ainda mais.
– Quero saber que estás vivo, Miguel. Só isso.
Estás vivo, Miguel?
A pergunta dela ressoou em mim. Não tinha uma
resposta para lhe dar. Fiquei ali com um ar mal disposto, amuado até, sem saber
o que lhe dizer, e como sempre, quando não sabia o que dizer, calava-me.
Ela riu-se com o meu ar. O seu riso apenas teve o
condão de me irritar mais e de me fechar ainda mais em mim. Percorremos a
auto-estrada em silêncio. Assim que estacionei o carro, ao chegarmos a Lisboa,
saímos e ela voltou-se para mim.
– Vou dar uma volta.
Assim, sem mais nem menos.
– E demoras?
– Não esperes por mim.
– Vens jantar, pelo menos?
– Já te disse, não esperes por mim.
Se já estava mal disposto, fiquei ainda pior. Mas
afinal quem é que ela julgava ser? Julgava que podia entrar assim na minha
vida, sem convite, sem se anunciar, e fazer tudo e mais alguma coisa?
– Fazes bem – acabei por dizer. – Quando voltares
avisa.
Ela foi, sem mais uma palavra. Vi-a ir pela rua
fora e desaparecer na esquina. Que frustração!
Entrei em casa, tomei um duche para tirar o sal do
corpo, comi qualquer coisa e depois deixei-me ficar na penumbra e no silêncio.
E quando o tiquetaque do relógio da sala começou a ser insuportável levantei-me
resoluto, saí porta fora, entrei no carro e pu-lo em andamento. Só não sabia
para onde ia ou porquê, mas ia.
Acabei à porta de um bar onde não parava já há
anos. Era um bar enorme e nem sabia se estaria ainda aberto. Aparentemente estava,
mas onde antes se viam chaços e carros artilhados, hoje viam‑se carros de
prestígio e alta cilindrada. Pensei para comigo que os clientes, muito
provavelmente, se tinham mantido fiéis. O que tinha mudado era sua capacidade
económica.
Entrei e constatei o que pensava. A clientela era
composta por pessoal na casa dos trintas e quarentas. Encontrei uma mesa livre
e sentei-me. Nos altifalantes passava música dos anos oitenta e noventa, entre
o rock e a pop. O facto de a mesa estar vazia de bebidas e de eu ter o cartão
de consumo na mão atraiu com alguma velocidade uma empregada que me trouxe um whisky de doze anos com duas pedras de
gelo com alguma rapidez.
Mas que diabo estava eu a fazer aqui?
Olhei em volta e era óbvio o que este bar se tinha
tornado. Um ponto de encontro para engates rápidos de pessoal que já não tinha
pachorra para o número das flores, jantares românticos ao pôr-do-sol e coisas
afins. Ora, não estando eu aqui para engatar ninguém, sentia-me perfeitamente deslocado.
«Estás vivo, Miguel?». Estava deslocado aqui como em qualquer outro lugar. A
verdade era essa. Até em casa estava deslocado, uma casa onde, após dez anos,
as coisas se tinham mantido, por preguiça, por desleixo, ou fosse pelo que
fosse, da maneira como a Diana as tinha deixado. Ou talvez fosse apenas porque
o meu orgulho não queria admitir que me tinha enganado assim tanto, e todas
aquelas tralhas não passassem de um post-it
gigante para me lembrar da merda que tinha feito.
Enquanto me perdia nos meus pensamentos, o bar
apinhou. Já não havia lugares sentados e as pessoas iam-se amontoando de pé,
sobretudo junto ao balcão. E eu ali, com três lugares vagos na minha mesa para
quatro, sozinho e sem desejar companhia. Comecei a ter alguma noção de quanto
estes três lugares começaram a ser desejados. Devia ir-me embora e deixar os
quatro lugares para alguém que aqui quisesse estar. Mas também não me apetecia
ir para lado nenhum, portanto, assim como assim, sentia‑me no direito
inabalável de ser chato e de ter aquela mesa só para mim.
Apetecia-me um cigarro, mas nem sabia se ainda
teria esse direito. Sinais azuis espalhados pelas paredes junto com o fumo de
algumas pessoas anunciaram-me que podia. Acendi o cigarro e deixei‑me levar
pelas músicas que já não ouvia há uma década.
Apesar de me apetecer ser chato e querer a mesa só
para mim, alguém resolveu que aqueles três lugares eram um desperdício.
– Desculpe, estes lugares estão ocupados?
Olhei-a. Loura platinada pintada, com excesso de
maquilhagem, embora desse para perceber que por baixo da mesma era uma mulher
bonita. Trintona, muito produzida. Voluptuosa. Desinteressante.
– Não, não estão – disse-lhe, enquanto esperava
que ela retirasse uma ou mais cadeiras para levar para outra mesa.
– E importa-se que me sente aqui? Não há mais
lugar em lado nenhum…
A resposta que me apetecia dar seria, no mínimo,
indelicada, por isso dei a que não queria.
– Claro que não. Está sozinha?
– Estava à espera de companhia, mas acho que ele
está atrasado.
Menos mal. Isso eliminava qualquer conversa de
circunstância e nem teria de me esforçar para lhe agradar. Ela tirou a mala e o
casaco, que pendurou nas costas da cadeira. Eu esforcei-me o mais possível por
ignorá-la. Ela não se esforçou para que eu não a ignorasse.
Voltei-me para o palco onde uma banda qualquer
começava a tocar os êxitos mais recentes de bandas caducas. Se já me sentia
deslocado antes, piorou o meu sentimento. Pensei que não fazia parte deste
presente, mas ao mesmo tempo este presente em que estava encontrava-se imerso
num passado a que toda a gente parecia querer agarrar-se. Havia conforto na
falta de novidade, na previsibilidade das coisas. Havia conforto em saber de
cor todas as músicas que a banda tocava e era isso que provocava a festa. Não
havia um resquício de algo novo, uma sombra de novidade, algo que não fosse
previsível. Era esta ausência de novidade que me deixava morto.
Mas que diabo estava eu aqui a fazer?
Os temas sucediam-se e os whiskies também. Na verdade, eu não estava ali. Só o meu corpo é que
estava. A cabeça tinha partido para parte incerta.
O telemóvel que ela tinha em cima da mesa
iluminou-se subitamente. Deve ter tocado, mas com o barulho que estava era
inaudível. Ela leu a mensagem no visor. A cara dela ficou séria e desiludida.
– Merda! – Disse. Fingi que não ouvi.
Encostou-se para trás na cadeira com uma expressão
triste, as lágrimas a quererem chegar-lhe aos olhos. Sempre me foi quase
impossível ver uma mulher a chorar. No fundo não passo de um trouxa
bem-intencionado.
– Ele já não vem? – Acabei por perguntar.
Ela olhou para mim.
– Parece que não. Reuniões de última hora…
Ri-me. Quem é que tinha reuniões à meia-noite e
meia? Ela compreendeu o meu riso. Acabei por me voltar para ela:
– Dos males, o menor. Pelo menos estamos aqui os dois,
por isso não estamos assim tão sozinhos.
– É verdade – respondeu ela. – Já agora, o meu
nome é Laura.
– Prazer, Laura. Sou o Miguel. – E apertámos as
mãos.
Olhei para ela com mais atenção. Desinteressante
comparando com quem? Com a Lilith? Por comparação o mundo era desinteressante.
E ela tinha até alguns pontos de interesse. Ela olhou para mim com alguma
atenção.
– A sua cara não me é de todo estranha. Miguel?
Não será Miguel Lages?
– Sim, Miguel Lages.
– Bem que me parecia conhecê-lo, desde que o vi.
Sou uma enorme admiradora sua, já li tudo o que escreveu…
Uma admiradora!
Duas horas depois, estávamos os dois deitados na
minha cama enquanto fazíamos sexo com uma fúria animal. Ela, sem dúvida, porque
queria vingar-se de quem não apareceu, eu porque me apetecia libertar-me de
tudo, de todas as amarras que tinha tido. Sexo inconsequente, sem nexo, mas com
desejo, com garra. Ouvia os gemidos dela enquanto a penetrava e lhe cravava as
unhas nas costas. Sentia os seus orgasmos e os seus dentes cravados no meu
ombro. Adivinhava a mentira do exagero, mas sabia-me bem a mentira.
Ela acabou por adormecer a meu lado. Levantei-me
sem sono, tomei um duche, acendi um cigarro e a campainha da porta tocou. Soube
imediatamente quem era. Não me ralei e abri a porta.
Ela entrou, com um sorriso maroto, leve como
sempre, sem me dizer uma palavra. Foi até à porta do quarto, olhou para a cama.
Voltou-se para mim.
– Não está mal. É gira, ela. Até tens bom gosto…
Não respondi.
– Sentes-te mais vivo? Foi bom sentires o sangue a
pulsar-te nas veias? Sentires que a podias conquistar? Sentes-te homem?
– Se queres que te seja franco, sim. A tudo o que
disseste.
– És um tonto, Miguel. Achas mesmo que
conquistaste alguma coisa que não quisesse ser conquistada?
Entrou no quarto e sentou-se na cama ao lado de
Laura. Passou a mão ao de leve por cima de uma das pernas expostas. Laura acordou
e viu-me, virada como estava para mim. Sorriu. Só depois se apercebeu do calor
da mão na sua perna e que havia alguém nas suas costas e sobressaltou-se.
Olhou, algo assustada, para Lilith.
– Olá, eu sou a Lilith – disse esta,
apresentando-se com um sorriso, não tirando a mão da perna dela.
– Sou a Laura. – Notava-se o nervoso na voz.
– Laura, diz-me, porque é que estás aqui com o
Miguel?
Laura sorriu, um sorriso meio nervoso de quem não
sabe muito bem o que fazer.
– Aconteceu… – acabou por dizer.
– Aconteceu? Assim, sem mais nem menos? – Lilith
riu-se. – Não me digas, foi sem querer. Quando deste por isso estavas aqui na
cama com ele. Nem querias, mas… – olhou-a bem nos olhos, levantou o sobrolho –
aconteceu.
Laura encolheu-se perante o olhar dela.
– Diz-me Laura, ele seduziu-te?
– Não…
– Ele obrigou-te?
– Não…
Lilith virou-se finalmente para mim.
– Miguel, afinal o que é que tu conquistaste? O
que é que tu ganhaste?
Pensei um pouco. Olhei para as duas, sentadas, uma
ao lado da outra. Laura demasiado pequena por comparação, embora parecesse mais
velha. Estranho contraste. A mão de Lilith deslizava devagar fazendo o contorno
da coxa de Laura.
– Duas horas de pura tesão.
Lilith voltou-se novamente para Laura.
– E ele, foi bom?
– Foi óptimo.
– Sabes Laura, depois de dez anos sem um único dia
de sexo, teve‑nos às duas no mesmo dia. É obra, não achas?
– Dez anos?
– É verdade. E sabes porque é que ele foi para a cama
contigo? – Laura acenou negativamente com a cabeça – Foi apenas para provar que
conseguia conquistar e para se sentir dominador. Ele dominou-te?
– Não. Foi bom mas não me dominou.
– E tu gostas de ser dominada, Laura? Gostas de te
sentir dominada, não gostas? Confessa…
Laura não disse nada, apenas lhe era impossível
desviar os olhos de Lilith. As mãos de Lilith subiam devagar pelo seu corpo,
passavam ao de leve pelos seus seios. O rubor das faces mostrava a óbvia
sensação que Laura experimentava. A mão subiu ainda mais, agarrando a face de
Laura, afagando-a. Finalmente mergulharam as duas, uma na outra, lábios colados
e vi Laura completamente dominada, e vi que nada daquilo era mentira ou
exagero, e fechei a porta do quarto, vesti-me e saí de casa.
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