sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Lilith - XX - Curvas

Depois de tomarmos o café, pagámos, saímos e fomos andando até ao carro. Tinha-se instalado um nevoeiro espesso e a humidade estava fria e entranhava até aos ossos. Como sempre isso, não parecia afectá-la minimamente. Eram cinco e quarenta e cinco da tarde e as luzes da rua começavam a acender-se. Detesto os dias pequenos no Inverno.

A verdade é que, apesar de andarmos devagar, o frio e a curiosidade faziam-me querer despachar. Mas admito que era mais a curiosidade. O frio até era suportável.

O carro estava já coberto por uma camada considerável de humidade. Entrámos. Pu-lo a trabalhar e liguei o aquecimento.

– Então e agora? Para onde?

– Para onde quiseres… – disse-me com um ar meio ausente.

– Para onde eu quiser? Não costumas ser assim.

– Pois não. Mas deixo ao teu critério.

Desarmou-me. Naquele momento não sabia o que fazer. Quando finalmente tive a liberdade de fazer algo, fiquei com a dúvida. Para onde? Fazer o quê? Apetecia-me ir para casa e ouvi-la por horas sem fim. Apetecia-me ouvir toda a história dela. Mas, por outro lado, apareceu em mim uma vontade de lhe mostrar a minha independência. Impressioná-la. Só depois me lembrei que impressioná-la… em quê? O que é que eu teria de impressionante para ela? Reduzi-me à minha insignificância.

– Vamos para minha casa? Fazemos um jantarinho e ficamos sossegados…

Ela olhou para mim como se adivinhasse tudo o que me passara pela cabeça.

– Tudo bem. Como te disse, está ao teu critério.

Fizemos o caminho em silêncio até à entrada para a auto-estrada, eu a tentar conter a minha curiosidade e ela a ignorá-la por completo. Sentia-a divertida com a minha relutância. Quando entrávamos na auto-estrada, falou finalmente:

– Não preciso que me dês espaço.

– Desculpa?

– Não preciso que me dês espaço. Tenho todo o que preciso. Podes ser directo e sincero comigo.

– E não tenho sido?

– Sim, mas estás em pulgas. Desembucha. Para quê tanto rodeio?

– Queria que me contasses a história. Ficaste de ma contar a seguir ao café…

– Bem, ainda não faltei à minha palavra. Já bebemos o café.

– É verdade, mas também já foi há um bocado.

– Que impaciência! Tens medo que o mundo acabe agora?

– Eu sei que tu não, mas eu…

– …mas tu não tens a mínima ideia do que te rodeia, por isso é que tens medo. Não te compreendo.

– Não?

– Não.

– E o que é que não compreendes?

– Como é que alguém que desistiu de viver há dez anos tem tanto medo de morrer.

Calei-me.

– Miguel, para se morrer é preciso estar vivo, e acho que o único momento em que estiveste vivo em dez anos foi naquela praia há umas horas atrás. E, entretanto, deixaste-te morrer outra vez.

Fiquei num silêncio meio amuado. Sabia que ela tinha razão. Mas não queria concordar nem discordar.

– ACORDA! – Gritou-me ela.

Senti-me furioso, e nem sabia se com ela ou comigo. Mas furioso. Sentia o rubor faces, o coração a bater forte nos tímpanos, as mãos a crisparem-se no volante. Tentei controlar-me, respirei fundo. Ela ria.

– MAS O QUE É QUE QUERES DE MIM, AFINAL? – Gritei-lhe eu, finalmente explodindo.

Ela riu ainda mais.

– Quero saber que estás vivo, Miguel. Só isso. Estás vivo, Miguel?

A pergunta dela ressoou em mim. Não tinha uma resposta para lhe dar. Fiquei ali com um ar mal disposto, amuado até, sem saber o que lhe dizer, e como sempre, quando não sabia o que dizer, calava-me.

Ela riu-se com o meu ar. O seu riso apenas teve o condão de me irritar mais e de me fechar ainda mais em mim. Percorremos a auto-estrada em silêncio. Assim que estacionei o carro, ao chegarmos a Lisboa, saímos e ela voltou-se para mim.

– Vou dar uma volta.

Assim, sem mais nem menos.

– E demoras?

– Não esperes por mim.

– Vens jantar, pelo menos?

– Já te disse, não esperes por mim.

Se já estava mal disposto, fiquei ainda pior. Mas afinal quem é que ela julgava ser? Julgava que podia entrar assim na minha vida, sem convite, sem se anunciar, e fazer tudo e mais alguma coisa?

– Fazes bem – acabei por dizer. – Quando voltares avisa.

Ela foi, sem mais uma palavra. Vi-a ir pela rua fora e desaparecer na esquina. Que frustração!

Entrei em casa, tomei um duche para tirar o sal do corpo, comi qualquer coisa e depois deixei-me ficar na penumbra e no silêncio. E quando o tiquetaque do relógio da sala começou a ser insuportável levantei-me resoluto, saí porta fora, entrei no carro e pu-lo em andamento. Só não sabia para onde ia ou porquê, mas ia.

Acabei à porta de um bar onde não parava já há anos. Era um bar enorme e nem sabia se estaria ainda aberto. Aparentemente estava, mas onde antes se viam chaços e carros artilhados, hoje viam‑se carros de prestígio e alta cilindrada. Pensei para comigo que os clientes, muito provavelmente, se tinham mantido fiéis. O que tinha mudado era sua capacidade económica.

Entrei e constatei o que pensava. A clientela era composta por pessoal na casa dos trintas e quarentas. Encontrei uma mesa livre e sentei-me. Nos altifalantes passava música dos anos oitenta e noventa, entre o rock e a pop. O facto de a mesa estar vazia de bebidas e de eu ter o cartão de consumo na mão atraiu com alguma velocidade uma empregada que me trouxe um whisky de doze anos com duas pedras de gelo com alguma rapidez.

Mas que diabo estava eu a fazer aqui?

Olhei em volta e era óbvio o que este bar se tinha tornado. Um ponto de encontro para engates rápidos de pessoal que já não tinha pachorra para o número das flores, jantares românticos ao pôr-do-sol e coisas afins. Ora, não estando eu aqui para engatar ninguém, sentia-me perfeitamente deslocado. «Estás vivo, Miguel?». Estava deslocado aqui como em qualquer outro lugar. A verdade era essa. Até em casa estava deslocado, uma casa onde, após dez anos, as coisas se tinham mantido, por preguiça, por desleixo, ou fosse pelo que fosse, da maneira como a Diana as tinha deixado. Ou talvez fosse apenas porque o meu orgulho não queria admitir que me tinha enganado assim tanto, e todas aquelas tralhas não passassem de um post-it gigante para me lembrar da merda que tinha feito.

Enquanto me perdia nos meus pensamentos, o bar apinhou. Já não havia lugares sentados e as pessoas iam-se amontoando de pé, sobretudo junto ao balcão. E eu ali, com três lugares vagos na minha mesa para quatro, sozinho e sem desejar companhia. Comecei a ter alguma noção de quanto estes três lugares começaram a ser desejados. Devia ir-me embora e deixar os quatro lugares para alguém que aqui quisesse estar. Mas também não me apetecia ir para lado nenhum, portanto, assim como assim, sentia‑me no direito inabalável de ser chato e de ter aquela mesa só para mim.

Apetecia-me um cigarro, mas nem sabia se ainda teria esse direito. Sinais azuis espalhados pelas paredes junto com o fumo de algumas pessoas anunciaram-me que podia. Acendi o cigarro e deixei‑me levar pelas músicas que já não ouvia há uma década.

Apesar de me apetecer ser chato e querer a mesa só para mim, alguém resolveu que aqueles três lugares eram um desperdício.

– Desculpe, estes lugares estão ocupados?

Olhei-a. Loura platinada pintada, com excesso de maquilhagem, embora desse para perceber que por baixo da mesma era uma mulher bonita. Trintona, muito produzida. Voluptuosa. Desinteressante.

– Não, não estão – disse-lhe, enquanto esperava que ela retirasse uma ou mais cadeiras para levar para outra mesa.

– E importa-se que me sente aqui? Não há mais lugar em lado nenhum…

A resposta que me apetecia dar seria, no mínimo, indelicada, por isso dei a que não queria.

– Claro que não. Está sozinha?

– Estava à espera de companhia, mas acho que ele está atrasado.

Menos mal. Isso eliminava qualquer conversa de circunstância e nem teria de me esforçar para lhe agradar. Ela tirou a mala e o casaco, que pendurou nas costas da cadeira. Eu esforcei-me o mais possível por ignorá-la. Ela não se esforçou para que eu não a ignorasse.

Voltei-me para o palco onde uma banda qualquer começava a tocar os êxitos mais recentes de bandas caducas. Se já me sentia deslocado antes, piorou o meu sentimento. Pensei que não fazia parte deste presente, mas ao mesmo tempo este presente em que estava encontrava-se imerso num passado a que toda a gente parecia querer agarrar-se. Havia conforto na falta de novidade, na previsibilidade das coisas. Havia conforto em saber de cor todas as músicas que a banda tocava e era isso que provocava a festa. Não havia um resquício de algo novo, uma sombra de novidade, algo que não fosse previsível. Era esta ausência de novidade que me deixava morto.

Mas que diabo estava eu aqui a fazer?

Os temas sucediam-se e os whiskies também. Na verdade, eu não estava ali. Só o meu corpo é que estava. A cabeça tinha partido para parte incerta.

O telemóvel que ela tinha em cima da mesa iluminou-se subitamente. Deve ter tocado, mas com o barulho que estava era inaudível. Ela leu a mensagem no visor. A cara dela ficou séria e desiludida.

– Merda! – Disse. Fingi que não ouvi.

Encostou-se para trás na cadeira com uma expressão triste, as lágrimas a quererem chegar-lhe aos olhos. Sempre me foi quase impossível ver uma mulher a chorar. No fundo não passo de um trouxa bem-intencionado.

– Ele já não vem? – Acabei por perguntar.

Ela olhou para mim.

– Parece que não. Reuniões de última hora…

Ri-me. Quem é que tinha reuniões à meia-noite e meia? Ela compreendeu o meu riso. Acabei por me voltar para ela:

– Dos males, o menor. Pelo menos estamos aqui os dois, por isso não estamos assim tão sozinhos.

– É verdade – respondeu ela. – Já agora, o meu nome é Laura.

– Prazer, Laura. Sou o Miguel. – E apertámos as mãos.

Olhei para ela com mais atenção. Desinteressante comparando com quem? Com a Lilith? Por comparação o mundo era desinteressante. E ela tinha até alguns pontos de interesse. Ela olhou para mim com alguma atenção.

– A sua cara não me é de todo estranha. Miguel? Não será Miguel Lages?

– Sim, Miguel Lages.

– Bem que me parecia conhecê-lo, desde que o vi. Sou uma enorme admiradora sua, já li tudo o que escreveu…

Uma admiradora!

Duas horas depois, estávamos os dois deitados na minha cama enquanto fazíamos sexo com uma fúria animal. Ela, sem dúvida, porque queria vingar-se de quem não apareceu, eu porque me apetecia libertar-me de tudo, de todas as amarras que tinha tido. Sexo inconsequente, sem nexo, mas com desejo, com garra. Ouvia os gemidos dela enquanto a penetrava e lhe cravava as unhas nas costas. Sentia os seus orgasmos e os seus dentes cravados no meu ombro. Adivinhava a mentira do exagero, mas sabia-me bem a mentira.

Ela acabou por adormecer a meu lado. Levantei-me sem sono, tomei um duche, acendi um cigarro e a campainha da porta tocou. Soube imediatamente quem era. Não me ralei e abri a porta.

Ela entrou, com um sorriso maroto, leve como sempre, sem me dizer uma palavra. Foi até à porta do quarto, olhou para a cama. Voltou-se para mim.

– Não está mal. É gira, ela. Até tens bom gosto…

Não respondi.

– Sentes-te mais vivo? Foi bom sentires o sangue a pulsar-te nas veias? Sentires que a podias conquistar? Sentes-te homem?

– Se queres que te seja franco, sim. A tudo o que disseste.

– És um tonto, Miguel. Achas mesmo que conquistaste alguma coisa que não quisesse ser conquistada?

Entrou no quarto e sentou-se na cama ao lado de Laura. Passou a mão ao de leve por cima de uma das pernas expostas. Laura acordou e viu-me, virada como estava para mim. Sorriu. Só depois se apercebeu do calor da mão na sua perna e que havia alguém nas suas costas e sobressaltou-se. Olhou, algo assustada, para Lilith.

– Olá, eu sou a Lilith – disse esta, apresentando-se com um sorriso, não tirando a mão da perna dela.

– Sou a Laura. – Notava-se o nervoso na voz.

– Laura, diz-me, porque é que estás aqui com o Miguel?

Laura sorriu, um sorriso meio nervoso de quem não sabe muito bem o que fazer.

– Aconteceu… – acabou por dizer.

– Aconteceu? Assim, sem mais nem menos? – Lilith riu-se. – Não me digas, foi sem querer. Quando deste por isso estavas aqui na cama com ele. Nem querias, mas… – olhou-a bem nos olhos, levantou o sobrolho – aconteceu.

Laura encolheu-se perante o olhar dela.

– Diz-me Laura, ele seduziu-te?

– Não…

– Ele obrigou-te?

– Não…

Lilith virou-se finalmente para mim.

– Miguel, afinal o que é que tu conquistaste? O que é que tu ganhaste?

Pensei um pouco. Olhei para as duas, sentadas, uma ao lado da outra. Laura demasiado pequena por comparação, embora parecesse mais velha. Estranho contraste. A mão de Lilith deslizava devagar fazendo o contorno da coxa de Laura.

– Duas horas de pura tesão.

Lilith voltou-se novamente para Laura.

– E ele, foi bom?

– Foi óptimo.

– Sabes Laura, depois de dez anos sem um único dia de sexo, teve‑nos às duas no mesmo dia. É obra, não achas?

– Dez anos?

– É verdade. E sabes porque é que ele foi para a cama contigo? – Laura acenou negativamente com a cabeça – Foi apenas para provar que conseguia conquistar e para se sentir dominador. Ele dominou-te?

– Não. Foi bom mas não me dominou.

– E tu gostas de ser dominada, Laura? Gostas de te sentir dominada, não gostas? Confessa…

Laura não disse nada, apenas lhe era impossível desviar os olhos de Lilith. As mãos de Lilith subiam devagar pelo seu corpo, passavam ao de leve pelos seus seios. O rubor das faces mostrava a óbvia sensação que Laura experimentava. A mão subiu ainda mais, agarrando a face de Laura, afagando-a. Finalmente mergulharam as duas, uma na outra, lábios colados e vi Laura completamente dominada, e vi que nada daquilo era mentira ou exagero, e fechei a porta do quarto, vesti-me e saí de casa.



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