– Dás a tua curiosidade por satisfeita?
– Quase.
– Então?
– Falta o segundo ponto, lembras-te?
– Sim, lembro. Queres saber qual o meu interesse
em revelar isto tudo.
– Quero. É algo que ainda me confunde. Lógico que
me sinto honrado com a tua confiança, não me interpretes mal, mas a verdade é
que se passaste tanto tempo no anonimato, quando podias não o ter feito, porquê
agora?
Ela parou para medir as palavras, para as
organizar, creio que numa tentativa de ser o mais clara possível. Levantou-se e
apoiou‑se no corrimão, a observar o mar. Senti claramente que media as palavras
porque havia coisas que não queria, ou não me podia revelar. Deixei-a estar um
pouco a ver o mar em silêncio. Ela fechou os olhos e sentiu a brisa. Dava a
sensação de estar a sentir o mundo, a sua pulsação.
Sabia que, fossem quais fossem as suas razões,
nunca as entenderia na totalidade. Mais do que uma mulher, era um ser humano
altamente complexo com o peso de uma história atrás de si que a levara a
conhecer em detalhe coisas das quais hoje em dia tínhamos apenas visões
limitadas e parciais. Era um ser com a chave de conhecimentos perdidos. Quase
me sentia tentado em perguntar‑lhe acerca de lendas perdidas, de civilizações
míticas, se tinham existido, quem eram, de onde tinham vindo, mas também achava
que nada disso era relevante e que não passaria de uma curiosidade infantil.
Contudo, isso não impedia que eu olhasse para ela e achasse que detinha a chave
do conhecimento.
No entanto, ela era a pessoa mais simples que eu
já tinha visto, sem dúvida. Descomplexava, em vez de complicar, simplificava as
coisas, reduzia-as ao que eram, e mesmo quando tirava ilações, fazia-o de uma
forma clara.
Mas o mais surpreendente nela era, claramente, o
facto de ela parecer sempre contextualizada no que a rodeava. Estava-o a tal
ponto que por vezes parecia influenciar a realidade. No entanto, eu não achava
que ela a influenciasse directamente, antes tirava o máximo partido das
situações em se encontrava. Sabia estar, fosse onde fosse, fosse com quem
fosse, nunca ficando à margem dos acontecimentos, mas antes fazendo parte
integrante deles.
Virou-se para mim, de repente, e perguntou:
– Queres dar um mergulho? Apetece-me dar um
mergulho…
Limitei-me a acenar com a cabeça que sim. Embora
esperasse uma resposta, não me sentia desapontado. Tinha aprendido a respeitar
os seus tempos.
Deixou cair no chão a roupa que tinha vestida. Eu
levantei-me e fiz o mesmo. Ela desceu as escadas e esperou-me ao fundo. Quando
desci as escadas, ela deu-me a mão e descemos os dois pela praia completamente
sós, completamente livres de tudo, em direcção à água. Entrámos nas ondas,
brincámos, mergulhámos, sentimos. Acabámos deitados na zona da areia onde
chegavam as ondas já só muito levemente a contemplar o céu, em silêncio.
– Sabes – disse ela –, tenho pena de não te poder
dizer tudo. Quer dizer, até podia, mas há uma grande diferença entre achares
que sabes uma coisa, teres um conhecimento enciclopédico dela, e esse conhecimento
fazer mesmo parte de ti. Se eu te contasse todas as razões ia confundir-te. Não
estás preparado para as saber.
Eu virei-me na areia e encarei-a. Ela virou-se
para mim, ficámos deitados de lado, frente a frente, olhos nos olhos. Eu sorri
e disse‑lhe:
– Eu compreendo.
– Sabes, Miguel – disse ela, pondo-me a mão na
face de uma forma doce –, tu cresceste imenso. E não falo apenas deste último
mês. Tens crescido imenso e isso é lindo. E vai chegar a uma altura em que vais
estar tão grande como eu.
– Como tu? Dificilmente. Eu olho para ti e tu és
na realidade uma deusa.
– Não, Miguel. Sou tão humana como tu, sou feita
das mesmas coisas que tu, tenho os mesmos sentimentos que tu, sou igual a ti.
– Mas és, ao mesmo tempo, tão diferente…
– A diferença vem pela minha vivência. Não por
aquilo que sou.
Acenei com a cabeça. Percebi o que queria dizer.
Ela continuou.
– Mas isto tudo para te explicar que a minha
vontade era dizer-te tudo. A minha vontade era partilhar-me contigo. Não o devo
fazer ainda. Mas posso dar-te uma das razões. Lembras-te do que disse aquando
da minha chegada ao Egipto? De que tinha consciência do quanto seria difícil
impor-me enquanto mulher?
– Sim, lembro.
– Pois bem, eis-nos chegados a um ponto na
história do mundo onde a civilização dominante a nível social e cultural começa
a esbater as barreiras entre homens e mulheres e a dar às próprias mulheres o
poder de decisão. Eis um ponto em que começa a haver um equilíbrio que sempre
devia ter existido.
– Mas ainda assim há desigualdades gritantes,
sobretudo em certas zonas do mundo.
– É verdade, mas atingimos uma massa crítica,
sabes. Além disso, o mundo tornou-se pequeno nestes últimos cinquenta anos. O
advento dos satélites de comunicações espalhou ideias e conceitos que antes
estavam apenas localizados. Vês guerras em directo e nunca antes o choque entre
civilizações foi tão grande. O mundo caminha a passos largos para que haja
apenas uma civilização, uma compreensão do mundo e, a não ser que haja um
desastre tecnológico, é impossível voltar atrás. Estamos a viver um tempo
apaixonante, tens noção disso?
– Não, para te ser franco, não tenho. Olho à minha
volta e vejo o caos em que estamos a mergulhar o mundo.
– Sim, mas cada vez há mais pessoas como tu que
vêem o caos, estão descontentes, e que procuram uma ordem para as coisas.
Sempre houve pessoas como tu, mas nunca pensaram numa escala global como se
pensa hoje em dia. Sempre houve pequenas luzes de esperança mas que acabavam
por cair, fruto da dominância do que as rodeava. Hoje, mais que nunca antes na
História, estamos perto de atingir uma massa crítica que revolucionará o mundo.
Ao ouvir estas palavras proferidas por ela, senti
esperança. De repente, era como se realmente todas as comoções, guerras, barafundas
económicas tivessem um sentido mais lato que levava as pessoas a ter uma
compreensão global do que as rodeava. Era verdade. As pessoas ansiavam por
algo, embora não soubessem o quê. Ela continuou.
– Neste momento, a minha história faz sentido,
sabes? Faz sentido porque consegue dar-te a perspectiva de que as coisas podiam
ter sido diferentes. É a primeira vez nestes milénios que sinto que o
desequilíbrio que causou tudo isto pode ser corrigido. É a primeira vez que
podem olhar para mim como sou, sem ser uma deusa ou um demónio. É a primeira
vez que posso ser simplesmente eu, ser entendida e passar a mensagem de que
ninguém está acima de ninguém. Daí a minha vontade de me revelar e de dizer que
existo, que sou, o que sou e que a minha história faz sentido.
– E como é que seria possível tu não fazeres
sentido?
– O sentido está sempre nos olhos de quem me vê, e
nunca em mim.
Abracei-a e beijei-a.
– Tu, para mim, fazes todo o sentido.
– Sabes, Miguel, aquilo de que mais gostava neste
momento é que o sentido que faço para ti passasse para o resto do mundo.
Fiquei parado a olhar para ela, cheio de sensações
à flor da pele. Não me contive, olhei-a naqueles olhos azuis faiscantes e disse‑lhe:
– Amo-te!
– Amo-te! – Foi a resposta que ouvi enquanto senti
os seus lábios nos meus.
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