– E ele era assim tão impressionante?
– Acredita, era mesmo.
– E a ti, pessoalmente, impressionou-te assim
tanto?
Ela parou para pensar.
– Não, se queres que te diga, nem por isso. Já
tinha conhecido maiores que ele – disse com uma piscadela de olho.
– Então porque é que me contaste esta história?
– Porque a sei impressionante para ti e para quem
quer que a leia. Afinal não é todos os dias que podes dizer que estiveste com
alguém que Alexandre Magno arrastou pelos cabelos.
– Bem, lá isso é verdade. E quanto à segunda parte
deste primeiro ponto?
– O facto de eu ter voltado a ser deusa?
– Sim.
Ela bebeu um gole de água.
– Voltei a ser uma única vez.
– Onde?
– No Nepal.
– No Nepal? Bem longe, não?
– Meu querido, nesta vida longa já tive tempo para
ir a quase todo o lado. Há poucos sítios ao cimo da Terra onde eu não tenha estado.
– Sim, realmente, tempo para viajar tiveste de
certeza – disse eu com um certo tom de gozo. Ela olhou para mim de escantilhão,
e num gesto brusco atirou o resto da água que tinha dentro da garrafa para cima
de mim.
– Estúpido – afirmou, tentando parecer zangada.
Eu olhei para ela com um olhar o mais carregado
possível e atirei o resto da minha água para cima dela.
– Cá se fazem, cá se pagam – disse com ar de gozo.
Ela fez uma cara de ainda mais zangada, mas que
não convencia ninguém, pelo menos não a mim e em seguida atirou-se para cima de
mim como quem vai bater. Eu consegui agarrar-lhe os braços, lutámos um
bocadinho os dois, com ela a tentar libertar-se, mas a escangalharmo-nos ambos
a rir. Eu acabei por conseguir puxá-la para mim e beijei-a com doçura. Ela
parou de lutar, e abraçou-me.
– Bem, podes ser estúpido assim mais vezes, se
quiseres.
– Desde que tu deixes.
– Que é que tu achas? Quais são as probabilidades?
– Acho que, pelo menos neste momento, me são
favoráveis.
– Achas bem. – Deu-me mais um beijo e largou-me. –
Mas sempre queres ouvir o resto da história?
– Claro que sim. Há alguma lenda por detrás?
– Coisas muito curtas, contraditórias e não muito
explicadas. A mais aceite é de que eu teria feito amor com um rei, Jaya Prakash Malla, e que quando parti disse que
voltaria na forma de uma donzela virgem. Mas sabes, o interessante não é a
lenda, mas o facto de ainda hoje haver uma deusa viva.
– Uma deusa
viva?
– Sim, uma
encarnação da deusa. Chamam-lhe Kumari e é uma jovem seleccionada entre as
muitas de um determinado clã, os Sakya. Tem que possuir pelo menos trinta e
duas características físicas e é depois posta à prova, caso se encontre mais do
que uma jovem com as mesmas características.
– E é
considerada uma deusa?
– Sim, é
adorada como tal. É enclausurada e só sai do templo nos festivais, e ainda assim
nunca pode tocar no chão com os pés, é sempre transportada num palanque.
Pintam-lhe os olhos, para que se assemelhe ainda mais aos dos deuses. Usam a
pintura para os alongar, com um traço negro.
– Um traço
negro?
– Sim, um
traço. Não é difícil imaginares como é. Basta olhares para uma estatueta ou
desenho egípcio e veres a linha de maquilhagem dos olhos. É igual.
– Mas esse
culto é muito espalhado?
– É um
culto que só é reconhecido por hindus e budistas.
– Ah! Só
hindus e budistas. Podia estar mais espalhado… – contrapus eu, na brincadeira.
– Pois,
realmente podia. – Riu-se ela.
– Mas
diz-me, essa escolhida fica o resto da vida como deusa?
– Não, nem
por sombras. Normalmente são escolhidas raparigas entre os quatro e os doze
anos que deixam de ser consideradas deusas logo que atingem a puberdade. Nessa
altura seguem a sua vida.
– Mas como
é que esse culto apareceu?
– Bem,
apareceu de alguns acasos. Uma breve passagem minha levou a que as pessoas
deste clã me considerassem uma deusa. Ajudei-os no que pude, sem esperar nada
em troca, até porque nada tinham para me dar, mesmo.
– Sim, mas
de ajudares a seres uma deusa…
– Meu
querido, num sítio onde há milhares de deuses e deusas, mais um, menos um, não
faz grande diferença.
– Sim,
também é verdade. Mas o que é que levou esta a ser especial?
– Não fazes
a mínima ideia de quem são os Sakya?
– Não faço
mesmo.
– Então
deixa que te diga que o seu mais conhecido e ilustre membro se chama
Siddhartha.
– Siddhartha?
Como em Buda?
– Exactamente.
– Siddhartha
é descendente do clã Sakya?
– Mais
concretamente, seria meu descendente em linha directa, e foram procurados nele
os trinta e dois sinais primários da minha presença nele.
Esta afirmação deixou-me espantado. Eis um ponto do mundo onde ela não
criara lendas por aí além, não criara civilizações e, no entanto, a sua marca
lá estava.
Ela continuou.
– Sabes,
dizem que por onde Buda caminhava cresciam flores de Lótus…
Ela parou um bocado a olhar para mim, deixou a frase a meio, no ar.
Dentro da minha cabeça fez-se a conexão.
– Por onde
Lilitu caminhava cresciam flores…
Ela riu.
– É isso.
Eu sabia que chegarias lá. Sabes, procuraram os sinais físicos em Buda para
confirmar a ascendência divina, tal como procuram ainda hoje nas raparigas que
se tornam Kumari. Basicamente, esta rapariga representa a mãe de Buda, a
divindade dele. Por isso ela é tão importante.
Estava abismado. Esta mulher tinha influenciado a História de uma maneira
que nenhum outro ser tinha alcançado, e ainda assim estava ali, diante de mim,
como era, simples, e a dizer que me amava.
E eu, diante dela a amá-la, apetecia-me ajoelhar-me a seus pés e
adorá-la. Prestar-lhe o respeito que ela merecia. Mas não o fiz porque sabia
que não seria o desejo dela. Como ela disse, era alguém a viver uma vida comum,
uma vida como a minha. Mas não havia nada de comum nela.
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