sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Lilith - XXXVI - Conclusão

Escrevo estas linhas com o coração pesado.

Não é que me apeteça particularmente escrevê-las, mas acho que todas as histórias devem ter uma conclusão e esta não é excepção.

É sexta-feira, passaram dois dias desde que tudo aconteceu e eu ainda não consigo acreditar em tudo o que vivi. Não há uma explicação plausível. Mas sei o vazio que sinto, a raiva, a frustração.

Perdi a esperança, esse bem tão precioso, e como tal, perdi tudo.

Henrique chegou com um ar sério, carregado, estavam as duas na cozinha a acabar o jantar. Havia um bem-estar na casa que era contagiante, mas ainda assim Henrique não se deixou contagiar, antes pelo contrário, a simples presença dele deixou Laura retraída.

Jantámos calmamente, sempre com conversas de circunstância, mas aos poucos o ambiente foi-se tornando pesado. Sentia que algo estava para se passar, mas não sabia o quê.

Depois do jantar elas ficaram a arrumar a cozinha e eu fiz sala ao Henrique. Ofereci-lhe uma bebida, que ele aceitou. Quis um whisky, para me fazer companhia. Estávamos sentados, eu no maple e ele no sofá grande, frente a frente. Ele estudava-me, olhava-me como se me quisesse desafiar.

Daí a pouco elas juntaram-se a nós, e fomos falando de tudo um pouco. Ele não só pareceu surpreso como também desagradado pelo facto de Laura se ter juntado a nós no dia anterior. Ainda assim, tentou disfarçar.

Com o decorrer da conversa o assunto foi resvalando para o sexo e ele começou a abordar o que queria, com alguma subtileza, é certo, mas não deixando grande margem para dúvidas. Perguntou como tinha sido estarem as duas, ao que Lilith respondeu com simplicidade. Disse-lhe que o sexo entre duas mulheres era algo de tão natural como entre uma mulher e um homem, que não havia nada a recriminar. Explicou-lhe que o que importava realmente era com quem se estava, independentemente do género, que o género não definia a pessoa. Ele ouvia tudo isto com ar de gozo.

Lilith continuou, dizendo-lhe que havia muito mais no que se passava entre ela e Laura do que era aparente, e para surpresa geral, mas especialmente de Laura, virou-se para ela, fez-lhe uma festa no cabelo e disse «Amo-te!». Laura ficou de tal forma comovida que as lágrimas lhe vieram aos olhos e respondeu: «Também te amo».

Henrique riu-se e olhou para mim como se eu fosse um marido traído, mas parou de rir quando se apercebeu de que eu estava simplesmente maravilhado com o que acabara de se passar. Foi então que perguntou a Lilith «E ele?», apontando para mim. Ela respondeu simplesmente «Ele ama-nos às duas. Está muito bem ali, onde está. Nada do que eu disse o faz sentir mal, antes pelo contrário, ele esteve connosco e sabe…».

Foi então que Henrique se saiu com a frase «Por acaso também gostava de estar no meio das duas». Lilith olhou-o com um ar de desprezo total e disse: «Mas tu, por acaso, sonhas que eu alguma vez me deitaria contigo? Nem ao teu lado, quanto mais para ter sexo. Não vês que não passas de uma criaturinha pequena e desprezível? Tratas a Laura pior de que um dos pedaços de mobília que tens em casa, quase de certeza. Aproveitas-te da fraqueza alheia para te fazeres grande. Achas-te grande, mas não és ninguém. Eu só me deito com alguém que é alguém».

Henrique empalideceu de raiva. Conseguia ver as veias nas fontes a latejar. «Mas achas que consegues falar assim comigo e sair impune? Sabes com quem estás a falar? Tens ideia do que eu sou capaz?», gritava. «Sei muito bem!», respondeu Lilith.

Henrique saiu disparado da casa, deixando a porta aberta e deixando-me estático. Laura estava aterrorizada. Apenas Lilith mantinha a calma, com um sorriso ao canto dos lábios. Levantei-me para ir fechar a porta, mas mal acabei de me levantar Henrique voltou a entrar empunhando um revólver. Apontou-o a Lilith e disse: «Ri-te lá agora na minha cara, puta». Lilith desatou às gargalhadas e respondeu «Faz o que tens a fazer».

O resto aconteceu tão rápido que me pareceu em câmara lenta e parece que não sou capaz de ver mais nada na minha mente desde aí para cá.

Henrique disparou três vezes contra Lilith e ela caiu pesadamente no chão com a cabeça trespassada por uma bala e duas no corpo.

Laura gritou aterrorizada. Ele virou-se para ela e acabou de despejar o tambor da arma, matando-a também instantaneamente. Depois virou-se para mim, cheio ainda de raiva e disparou a arma vazia umas quantas vezes. Acho que nem se tinha apercebido de que estava vazia. Por fim, atirou-me com ela e saiu a correr. Ainda estava estático quando ouvi o motor do carro dele a acelerar, afastando-se rapidamente.

Quando me consegui mexer ajoelhei-me ao lado de Lilith, afaguei‑lhe o rosto, agora sem vida, ficando com as mãos cheias do seu sangue e as lágrimas jorraram finalmente.

Num momento todos os sonhos destruídos pela estupidez e arrogância de um homem. A morte de uma deusa. A morte da esperança.

Consegui recompor-me o suficiente, ao fim de um bocado, para telefonar à polícia e dar parte do sucedido. A casa foi invadida por polícias e paramédicos que confirmaram as mortes e levaram os corpos. Foi nesse momento que desejei que a arma tivesse mais balas e que estivesse a ser levado também.

Cheguei há pouco dos funerais. A polícia identificou as vítimas, como lhe compete. Laura Correia e Cristiana Branquinho. O funeral de Laura contou com alguns amigos e familiares. O cortejo fúnebre de Cristiana teve-me a mim e ao padre.

A minha vida foi sendo coberta com as pazadas vigorosas dos coveiros. Ao fim de uns minutos já não sobrava nada de mim.

Sinto-me enganado, traído. Foi-me retirado o mundo. Estive tanto tempo alheio a ele, e no momento em que o descobri foi-me retirado. Sei que no fundo esta história não faz sentido, e se o fez, perdeu-o. No entanto, é a história que tenho, e pelo menos saio deste mundo com a consciência de que cumpri o último prazo que me foi imposto. Quando estas palavras forem lidas eu já não precisarei de fazer sentido nem de ver o sentido nas coisas.

Fica esta minha despedida.

 

Até sempre.

 

Miguel Lages



Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!