Escrevo estas linhas com o coração pesado.
Não é que me apeteça particularmente escrevê-las,
mas acho que todas as histórias devem ter uma conclusão e esta não é excepção.
É sexta-feira, passaram dois dias desde que tudo
aconteceu e eu ainda não consigo acreditar em tudo o que vivi. Não há uma explicação
plausível. Mas sei o vazio que sinto, a raiva, a frustração.
Perdi a esperança, esse bem tão precioso, e como
tal, perdi tudo.
Henrique chegou com um ar sério, carregado,
estavam as duas na cozinha a acabar o jantar. Havia um bem-estar na casa que
era contagiante, mas ainda assim Henrique não se deixou contagiar, antes pelo
contrário, a simples presença dele deixou Laura retraída.
Jantámos calmamente, sempre com conversas de
circunstância, mas aos poucos o ambiente foi-se tornando pesado. Sentia que
algo estava para se passar, mas não sabia o quê.
Depois do jantar elas ficaram a arrumar a cozinha
e eu fiz sala ao Henrique. Ofereci-lhe uma bebida, que ele aceitou. Quis um whisky, para me fazer companhia.
Estávamos sentados, eu no maple e ele
no sofá grande, frente a frente. Ele estudava-me, olhava-me como se me quisesse
desafiar.
Daí a pouco elas juntaram-se a nós, e fomos
falando de tudo um pouco. Ele não só pareceu surpreso como também desagradado
pelo facto de Laura se ter juntado a nós no dia anterior. Ainda assim, tentou
disfarçar.
Com o decorrer da conversa o assunto foi
resvalando para o sexo e ele começou a abordar o que queria, com alguma
subtileza, é certo, mas não deixando grande margem para dúvidas. Perguntou como
tinha sido estarem as duas, ao que Lilith respondeu com simplicidade. Disse-lhe
que o sexo entre duas mulheres era algo de tão natural como entre uma mulher e
um homem, que não havia nada a recriminar. Explicou-lhe que o que importava realmente
era com quem se estava, independentemente do género, que o género não definia a
pessoa. Ele ouvia tudo isto com ar de gozo.
Lilith continuou, dizendo-lhe que havia muito mais
no que se passava entre ela e Laura do que era aparente, e para surpresa geral,
mas especialmente de Laura, virou-se para ela, fez-lhe uma festa no cabelo e
disse «Amo-te!». Laura ficou de tal forma comovida que as lágrimas lhe vieram
aos olhos e respondeu: «Também te amo».
Henrique riu-se e olhou para mim como se eu fosse
um marido traído, mas parou de rir quando se apercebeu de que eu estava
simplesmente maravilhado com o que acabara de se passar. Foi então que
perguntou a Lilith «E ele?», apontando para mim. Ela respondeu simplesmente
«Ele ama-nos às duas. Está muito bem ali, onde está. Nada do que eu disse o faz
sentir mal, antes pelo contrário, ele esteve connosco e sabe…».
Foi então que Henrique se saiu com a frase «Por
acaso também gostava de estar no meio das duas». Lilith olhou-o com um ar de
desprezo total e disse: «Mas tu, por acaso, sonhas que eu alguma vez me
deitaria contigo? Nem ao teu lado, quanto mais para ter sexo. Não vês que não
passas de uma criaturinha pequena e desprezível? Tratas a Laura pior de que um
dos pedaços de mobília que tens em casa, quase de certeza. Aproveitas-te da
fraqueza alheia para te fazeres grande. Achas-te grande, mas não és ninguém. Eu
só me deito com alguém que é alguém».
Henrique empalideceu de raiva. Conseguia ver as
veias nas fontes a latejar. «Mas achas que consegues falar assim comigo e sair
impune? Sabes com quem estás a falar? Tens ideia do que eu sou capaz?»,
gritava. «Sei muito bem!», respondeu Lilith.
Henrique saiu disparado da casa, deixando a porta
aberta e deixando-me estático. Laura estava aterrorizada. Apenas Lilith mantinha
a calma, com um sorriso ao canto dos lábios. Levantei-me para ir fechar a
porta, mas mal acabei de me levantar Henrique voltou a entrar empunhando um
revólver. Apontou-o a Lilith e disse: «Ri-te lá agora na minha cara, puta».
Lilith desatou às gargalhadas e respondeu «Faz o que tens a fazer».
O resto aconteceu tão rápido que me pareceu em
câmara lenta e parece que não sou capaz de ver mais nada na minha mente desde
aí para cá.
Henrique disparou três vezes contra Lilith e ela
caiu pesadamente no chão com a cabeça trespassada por uma bala e duas no corpo.
Laura gritou aterrorizada. Ele virou-se para ela e
acabou de despejar o tambor da arma, matando-a também instantaneamente. Depois
virou-se para mim, cheio ainda de raiva e disparou a arma vazia umas quantas
vezes. Acho que nem se tinha apercebido de que estava vazia. Por fim, atirou-me
com ela e saiu a correr. Ainda estava estático quando ouvi o motor do carro
dele a acelerar, afastando-se rapidamente.
Quando me consegui mexer ajoelhei-me ao lado de
Lilith, afaguei‑lhe o rosto, agora sem vida, ficando com as mãos cheias do seu
sangue e as lágrimas jorraram finalmente.
Num momento todos os sonhos destruídos pela
estupidez e arrogância de um homem. A morte de uma deusa. A morte da esperança.
Consegui recompor-me o suficiente, ao fim de um
bocado, para telefonar à polícia e dar parte do sucedido. A casa foi invadida
por polícias e paramédicos que confirmaram as mortes e levaram os corpos. Foi
nesse momento que desejei que a arma tivesse mais balas e que estivesse a ser
levado também.
Cheguei há pouco dos funerais. A polícia
identificou as vítimas, como lhe compete. Laura Correia e Cristiana Branquinho.
O funeral de Laura contou com alguns amigos e familiares. O cortejo fúnebre de
Cristiana teve-me a mim e ao padre.
A minha vida foi sendo coberta com as pazadas
vigorosas dos coveiros. Ao fim de uns minutos já não sobrava nada de mim.
Sinto-me enganado, traído. Foi-me retirado o
mundo. Estive tanto tempo alheio a ele, e no momento em que o descobri foi-me
retirado. Sei que no fundo esta história não faz sentido, e se o fez, perdeu-o.
No entanto, é a história que tenho, e pelo menos saio deste mundo com a
consciência de que cumpri o último prazo que me foi imposto. Quando estas
palavras forem lidas eu já não precisarei de fazer sentido nem de ver o sentido
nas coisas.
Fica esta minha despedida.
Até sempre.
Miguel Lages
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