Uma e quarenta e seis da manhã
Fiquei a olhar um pouco
ainda para o texto, relacionando-o com o que já sabia antes. Já tinha lido
referências a ele mas nunca o tinha lido completo.
– Esta és tu?
– Sim. De uma forma algo
distorcida, mas sim. Afinal isso foi escrito mil e quinhentos anos depois e
quem conta um conto…
– …aumenta um ponto. Mas o
que é que há aqui de real?
– Para já digo-te o que
não há. Não esperes que eu crie asas e voe daqui para fora.
– Para te ser franco não
me surpreenderia.
– Mas olha, a mim sim. E
não esperes ver flores a nascer onde piso, nem árvores onde me sento.
– Bem, isso já não
esperava. Esta casa e a de praia já seriam uma selva…
Ela riu com gosto.
– Pois – disse –, era
complicado, sem dúvida. Mas este texto conta a história da fundação da
civilização.
– Da Suméria?
– Sim, e basicamente de
todas. Diz-me, o que achas que formou a primeira civilização?
– Penso que a descoberta
da agricultura, não?
– Exacto. As pessoas
deixaram de ser nómadas e seguiram as migrações da caça porque descobriram
outro meio de subsistência. Mas a própria agricultura obrigava-os a permanecer
no mesmo sítio durante muito tempo.
– Tem lógica.
– Logo, criaram
comunidades que com o tempo foram crescendo até se tornarem culturas e mais
tarde civilizações.
– Percebo. E dizes que
este texto descreve esses primórdios?
– Sim. Sabes, Yahvé
preparou-nos, a mim e a Adão, para uma série de coisas. Ensinou-nos a
agricultura de modo a que a pudéssemos fomentar mais tarde e sermos o início da
dita civilização. Quando saí do Éden trazia comigo esses conhecimentos.
Desterrei-me para as margens do Mar Vermelho, para a zona que hoje é conhecida
como Harrat al Birk, na Arábia Saudita. É uma zona vulcânica bastante fértil.
Comecei a aplicar o que sabia e criei um pomar, jardins, cultivei as terras com
cereais. Era algo de pequeno, mas o suficiente para me sustentar.
– Não me digas, os jardins
que criaste ao andar e as árvores de quando te sentavas.
– Exacto. Repara, nunca
ninguém o tinha feito, logo eu ganhei uma aura mística. Foram passando clãs por
ali, e como havia abundância e comida foram ficando à minha volta. Fui-lhes
ensinando o que sabia, e dava-lhes comida em troca do trabalho. Os pomares
cresceram, bem como as terras cultivadas de cereais. E, lógico, onde há
abundância, a população também.
– Mas pelo que percebo,
logo a seguir vieram os problemas.
– Claro. Havia abundância
da nossa parte, e havia a cobiça de clãs vizinhos que não queriam trabalhar a
terra mas que invejavam o que tínhamos. Começámos a ser rodeados, cercados
mesmo e acabou por haver uma guerra.
– Com o tal príncipe
enamorado?
– Não, isso só fica mesmo
bem na lenda. Não seria uma lenda sem uma história trágica de amor para os
poetas contarem.
– É verdade! – Ri-me eu.
Não, a guerra teve mesmo
objectivos mais mundanos. Queriam simplesmente apoderar-se da nossa
prosperidade. No entanto, fomos tentando manter o que tínhamos construído, e
conseguimos durante algum tempo. Mas o que não é para ser não é mesmo, e houve
uma erupção vulcânica que acabou com o nosso sonho ali. Acabei por levar os que
me quiseram seguir numa busca por um sítio pacífico onde nos pudéssemos fixar e
construir algo. Acabámos por ficar onde é agora Bagdade e aí sim, fundámos
qualquer coisa maior. Começámos a construir em pedra, criámos muralhas de
protecção, porque não queríamos voltar a passar pala mesma situação, começámos
a agregar uma cultura. Como havia prosperidade e tempo fizemos evoluir a
tecelagem, a pintura, a música, desenvolvemos os transportes, a irrigação dos
campos. Fundámos a primeira cidade. Para não corrermos o risco de começarmos a
ser atacados e não termos defesas, formámos o primeiro exército com fins
meramente defensivos. E uma vez que começou a haver gente ocupada
permanentemente em coisas que não eram directamente produtivas, vimo-nos
obrigados a substituir o sistema de troca directa de bens por outro, o que
levou à criação da moeda corrente.
– E criaste, assim, a
primeira civilização.
– Exacto. E acredita, é um
passo que depois de ser dado não volta atrás.
– Mas diz-me, o resto da
história, a envolvência com o tal príncipe tem algum fundamento?
– Se tivesse – disse ela
com um sorriso maroto –, por esta altura já estarias morto, não achas?
– É verdade! – Disse eu,
sentindo ainda nos lábios a suavidade do toque dos dela.
– Em relação a isso,
lembras-te de na lenda hebraica Deus me ter amaldiçoado?
– Sim, lembro-me da maldição.
Cem dos teus filhos morreriam todos os dias.
– Pois, mas acontece que a
maldição nunca existiu e eu nunca os tive. E consegues adivinhar o porquê?
Pensei um pouco e olhei-a.
Tentei pôr-me no seu lugar. E num rasgo um pensamento veio-me à ideia.
– Porque a tua maldição é
outra? – Perguntei.
– Sim – respondeu ela, com
o olhar a tornar-se distante de repente. – E nem é uma maldição, é apenas uma
consequência.
– A dor de veres morrer
tudo aquilo que amas?
Ela olhou para mim, talvez
surpreendida com a minha pergunta, como se o facto de eu o dizer alto tivesse
implicações maiores.
Limitou-se a acenar
afirmativamente com a cabeça, enquanto os seus olhos ficavam turvos com as
lágrimas que tentava conter.
– Achas que não podes
amar!
– Sei que não posso.
– Mas não consegues
desistir de o fazer.
– E é essa a minha
maldição.
Olhei-a. Não como pretensa
deusa, criatura mitológica, ou fonte de mitos, como criadora da civilização,
como ser imortal, mas apenas e tão só como mulher. Como uma mulher que se revelava.
Cheia de contradições, como qualquer outra. Cheia de desejos e vontades, como
qualquer outra. Com a segurança que apenas a sua longevidade podia dar. Dorida,
como quem já tinha tido tudo e tudo tinha perdido. E com a força que apenas
passar por essa dor consegue dar.
Levantei-me, e pela
primeira vez aproximei-me dela por minha vontade. Coloquei a mão na sua face,
toquei nas suas lágrimas. Sentei-me ao seu lado e envolvi-a. Ela cerrou os
olhos e virou a cara, com uma expressão de dor.
Eu senti-a. Era uma sensação
estranha. Continuava a não sentir qualquer desejo por ela. Nenhuma paixão. A
mulher mais bela que já vira e não me fazia ferver o sangue. Mas algo em mim,
no fundo de mim, me fazia aproximar dela.
E, sem eu me dar conta, a
minha mão puxou a sua face para a minha, os meus lábios procuraram os seus, as
nossas bocas entreabriram-se, as nossas línguas tocaram-se e mergulhámos no
beijo mais carregado de sensações e sentimentos que jamais tivera. E à medida
que as nossas bocas se exploravam, os meus braços envolveram-na e apertei-a
contra mim.
Ainda que apenas por um
momento, um momento fugaz, algo indefinível e que escapa, tive a certeza
absoluta de que fomos um só. Desapaixonadamente.
Hoje passei apenas para lhe desejar as melhoras e um Feliz Natal.
ResponderEliminarAbraço Fraterno
Pronto. Atualizei-me.
ResponderEliminarAbraço, saúde e continuação de boas festas.