segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Lilith - XI - Miguel

Uma e dez da manhã.

Cheguei à porta de casa e parei o carro. Ela saiu, como estava, nua, andando devagar em direcção à porta com os sapatos pendurados na mão esquerda e o vestido no antebraço. Apressei-me a correr à sua frente para lhe abrir a porta. Entrámos.

– Vou tomar um banho – anunciou.

Servi um whisky e sentei-me. Os meus lábios ainda queimavam. Um simples beijo, um pequeno toque, mas uma sensação sublime. E no entanto tão isenta de desejo. Ternura apenas.

Afundei-me no sofá e tentei não pensar em nada. Rigorosamente nada. Para mim, hoje, chegava. Não queria saber mais de deuses, semi-deuses, anjos e demónios das trevas. Refugiei-me, como sempre faço, no fumo de um cigarro, à procura de libertação.

Ela saiu do banho a secar o cabelo com uma toalha, veio para o sofá à minha frente, sentou-se e olhou-me. Gloriosa criatura. Olhava-a sem conseguir compreender o porquê de não a desejar para mim. Era perfeita em tudo. E como tudo o que é perfeito, parecia‑me inatingível.

– Miguel, e tu?

– Eu? Eu o quê?

– E tu, Miguel. Tenho-te falado de mim, das minhas recordações, da minha vida. E tu, Miguel?

– Não tenho algo de assim tão interessante para contar, mas suspeito que o saibas. Limito-me a ir escrevendo e levando um dia atrás do outro.

– Porquê?

– Porquê? Bem, porque não tenho motivos para querer muito mais. Quero apenas a minha paz e o meu sossego, cada vez mais detesto confusões.

– Miguel, Miguel… Quem é que te fez assim tanto mal?

Ela via-me à transparência e eu não estava a sentir-me minimamente confortável com isso. Olhava para mim com um sorriso meio enigmático, com um olhar fixo que eu nem conseguia encarar. Os seus olhos pareciam olhar directamente para a minha alma, adivinhando os meus sentimentos.

– Quem foi ela, Miguel?

Senti-me perfeitamente encurralado com a pergunta.

– Ela foi alguém que está algures no passado e que já não importa.

– Importa, sim. O passado tem a virtude de assombrar cada pequena coisa que fazemos. Afinal de contas, é através dele que lidamos com o presente, e isso tem repercussões no futuro.

Ela tinha razão e eu sabia-o. Levantei-me e, tentando esquivar-me à conversa, fui para o terraço e acendi um cigarro. Embora estivesse de costas para ela, quase podia sentir o seu olhar a queimar‑me a pele. Não queria falar. Não queria desenterrar o passado. No entanto, tinha a certeza de que ela não desistiria enquanto eu não o fizesse.

O simples facto de ela ter feito emergir em mim estas recordações que eu teimava em manter adormecidas causou impacto em mim. Senti-me mal. Apetecia-me fechar numa concha.

Lá dentro ela aguardava. Sabia que eu voltaria a entrar. E eu também o sabia, mas a minha vontade era descer para o areal e deixar-me estar.

O cigarro acabou e o whisky também. Apetecia-me mais. Apetecia‑me beber até o torpor do álcool me fazer esquecer novamente.

Entrei, dirigi-me à garrafa para me servir. Quando a inclinava, a mão dela agarrou na minha com uma suavidade firme e senti-me impedido de o fazer.

Quebrei.

– Miguel, como é que podes escrever acerca da vida e no entanto fugires dela?

Olhei-a.

– Sabes, acho que é para fugir dela que escrevo. Refugio-me em vidas que não são minhas e em universos que crio sem me sentir esmagado pela realidade.

– Mas a realidade não desaparece…

– Não, mas fica oculta.

– Queres contar-me o que aconteceu?

– Não.

– Mas vais contar.

O tom autoritário que entregou à última frase tornou-se um comando quase irresistível. Não queria falar, mas as recordações emergiram em catadupa, e a dor foi demasiado forte. Senti a mesma pressão no peito que senti naquele dia, o dia que queria ter apagado da minha existência. Controlei-me para conter as lágrimas que me vieram aos olhos. Sentei-me. Acendi mais um cigarro. Ela sentou-se à minha frente.

– Conheci-a há dez anos atrás – dei comigo a dizer. – Chama-se Diana. Era e é uma mulher linda, sofisticada. Conheci-a numa tertúlia de amigos. Era inteligente, culta. Era alguém com quem dava gosto falar.

Ela continuava a olhar num silêncio expectante. Continuei.

– Na altura tinha publicado o meu primeiro livro e escrevia esporadicamente para jornais e revistas. O meu livro tinha sido um sucesso, ganhei algum dinheiro com isso, não tanto como muitos julgam, mas algum, e gozava já de popularidade em certos meios. Começaram a aparecer convites para festas e eventos, lançamento de livros de outros autores. Soube-me bem esta mudança na minha vida, este reconhecimento do que tinha feito. Comecei a frequentar tertúlias onde se falava horas a fio acerca de artes em geral, onde aprendi a apreciar muita coisa que me escapava até então e onde encontrei muita gente interessante. E um dia conheci-a a ela.

– Conta-me.

– Éramos um grupo considerável e estávamos reunidos num bar ao pé do cinema Roma, onde costumava haver espectáculos de jazz ao vivo. O ambiente era selecto e calmo e costumávamos falar longamente antes de os espectáculos começarem. Lembro-me perfeitamente de quando a vi pela primeira vez. Veio a acompanhar alguém, já não sei quem, e chamou-me a atenção. Tentei não dar nas vistas, não olhar demasiado para ela, mas prestava atenção aos seus movimentos, ao que dizia, à maneira como o dizia. No fim da noite ela veio ter comigo, para minha surpresa. Trazia um exemplar do meu livro e pediu-me para eu o autografar. Foi um bom pretexto para meter conversa com ela. Se eu soubesse…

– Ninguém sabe. É por isso que a vida é interessante.

– Fomo-nos cruzando de forma avulsa, aqui e ali, até que um dia nos encontrámos numa livraria por mero acaso. Acabámos por tomar um café e ficar na conversa. Trocámos números de telefone. Não tardou muito para estarmos a sair os dois. Fomo-nos conhecendo com tempo, sem pressas. Uma coisa foi levando a outra e acabámos por nos casar e constituir família. Ela continuou a ter uma atitude independente de que eu gostava, mas, pacato como sempre fui, tive de me habituar a algumas coisas que não apreciava. Insistia em ir a todas as festas do jet-set para que éramos convidados, muito a contragosto meu, que geralmente declinava esses convites, e queria sempre algum glamour. Acabei por comprar esta casa que estava em ruínas e remodelá-la, porque tínhamos a casa sempre cheia de gente e começou a ser-me impossível escrever. Retirava-me para aqui e deixava-a com o que ela gostava. A nossa vida parecia correr bem. Eu queria ter filhos, mas ela não queria. «Não ainda», dizia. E isto durou até um dia.

– Um dia…

– Um amigo avisou-me de que eu devia abrir os olhos, mas não me disse acerca de quê. No entanto, fiquei desperto e alerta. A minha casa em Lisboa continuava a ser um rodopio de gente, ela ia a festas sozinha ou acompanhada por alguém, raramente era vista sozinha em qualquer sítio. Eu, por outro lado, para conseguir escrever passava muito tempo ausente de Lisboa. Começou a haver algo negro a roer-me por dentro, pensamentos obscuros. Quis ter certezas. Contratei um detective para a seguir, porque queria ter certezas. E um dia, nesse dia, as certezas apareceram dentro de um envelope A4, amarelo. Ela não tinha um amante. Tinha vários. E numa pequena cassete vinha gravado todo o desprezo e o desrespeito que sentia por mim. Fui de imediato a Lisboa. Entrei em casa a meio da tarde para a encontrar no quarto com um dos amantes. Limitei-me a entrar no quarto. Sentei-me. O homem que estava com ela ficou branco, pálido, sem reacção. «Levanta-te, agarra nas tuas coisas e sai», limitei-me a dizer-lhe. Ele nem olhou para trás. Ela olhava para mim e chorava. «Amor, desculpa, foi uma vez, não é o que parece…». Mentiras. Tantas mentiras. Mandei o envelope para cima da cama. Ela abriu-o e os seus olhos ficaram cheios de terror. «Amor, isto não é verdade, sabes que te amo, jamais faria isto, isto são montagens!». E eu iniciei a reprodução das gravações de alguns telefonemas seus. «Não é a tua voz?». «Amor, podemos resolver isto…». Abanei a cabeça. Dirigi-me à porta do quarto. Antes de sair lembro-me de me ter ouvido dizer: «Uma vez que nada do que aqui esta foi pago por ti, com o teu dinheiro, tudo fica. Veste-te, tens dez minutos para sair de casa. Daqui a dez minutos ponho-te na rua como estiveres.» «Mas vou para onde?». «Podes ir ter com um dos teus amantes. Ou podes ficar na rua, se quiseres. Afinal é na rua que as putas costumam estar, não é? Despacha-te. Tens dez minutos». Daí a dez minutos ela saía. Uma hora depois a fechadura foi trocada.

Calei-me finalmente. Sentia-me dorido das recordações. Amara-a tanto, podia ter compreendido tanta coisa, podia até ter compreendido os amantes que tinha pelas minhas ausências. Não compreendi o desprezo na sua voz.

E pela primeira vez percebi que, apesar de ter passado todos estes anos a culpá-la, a verdade é que me sentia culpado pelo que aconteceu. E finalmente chorei.

Lilith levantou-se, veio até mim, sentou-se ao meu lado, agarrou‑me, fez-me deitar no seu colo. Encolhi-me, resguardei-me, experimentei aquela sensação doce de quando era miúdo e corria para o colo da minha mãe. Senti-me finalmente reconfortado, como se algo dentro de mim estivesse finalmente disposto a descansar.

Ela fez-me uma festa no cabelo, baixou-se, deu-me mais um pequeno beijo nos lábios e disse:

– Pronto, meu querido. Já podes recomeçar a viver…



1 comentário:

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!