Uma e dez da manhã.
Cheguei à porta de casa e
parei o carro. Ela saiu, como estava, nua, andando devagar em direcção à porta
com os sapatos pendurados na mão esquerda e o vestido no antebraço. Apressei-me
a correr à sua frente para lhe abrir a porta. Entrámos.
– Vou tomar um banho –
anunciou.
Servi um whisky e sentei-me. Os meus lábios ainda
queimavam. Um simples beijo, um pequeno toque, mas uma sensação sublime. E no
entanto tão isenta de desejo. Ternura apenas.
Afundei-me no sofá e
tentei não pensar em nada. Rigorosamente nada. Para mim, hoje, chegava. Não
queria saber mais de deuses, semi-deuses, anjos e demónios das trevas.
Refugiei-me, como sempre faço, no fumo de um cigarro, à procura de libertação.
Ela saiu do banho a secar
o cabelo com uma toalha, veio para o sofá à minha frente, sentou-se e olhou-me.
Gloriosa criatura. Olhava-a sem conseguir compreender o porquê de não a desejar
para mim. Era perfeita em tudo. E como tudo o que é perfeito, parecia‑me
inatingível.
– Miguel, e tu?
– Eu? Eu o quê?
– E tu, Miguel. Tenho-te
falado de mim, das minhas recordações, da minha vida. E tu, Miguel?
– Não tenho algo de assim
tão interessante para contar, mas suspeito que o saibas. Limito-me a ir
escrevendo e levando um dia atrás do outro.
– Porquê?
– Porquê? Bem, porque não
tenho motivos para querer muito mais. Quero apenas a minha paz e o meu sossego,
cada vez mais detesto confusões.
– Miguel, Miguel… Quem é
que te fez assim tanto mal?
Ela via-me à transparência
e eu não estava a sentir-me minimamente confortável com isso. Olhava para mim
com um sorriso meio enigmático, com um olhar fixo que eu nem conseguia encarar.
Os seus olhos pareciam olhar directamente para a minha alma, adivinhando os
meus sentimentos.
– Quem foi ela, Miguel?
Senti-me perfeitamente
encurralado com a pergunta.
– Ela foi alguém que está
algures no passado e que já não importa.
– Importa, sim. O passado
tem a virtude de assombrar cada pequena coisa que fazemos. Afinal de contas, é
através dele que lidamos com o presente, e isso tem repercussões no futuro.
Ela tinha razão e eu
sabia-o. Levantei-me e, tentando esquivar-me à conversa, fui para o terraço e
acendi um cigarro. Embora estivesse de costas para ela, quase podia sentir o
seu olhar a queimar‑me a pele. Não queria falar. Não queria desenterrar o passado.
No entanto, tinha a certeza de que ela não desistiria enquanto eu não o
fizesse.
O simples facto de ela ter
feito emergir em mim estas recordações que eu teimava em manter adormecidas
causou impacto em mim. Senti-me mal. Apetecia-me fechar numa concha.
Lá dentro ela aguardava.
Sabia que eu voltaria a entrar. E eu também o sabia, mas a minha vontade era
descer para o areal e deixar-me estar.
O cigarro acabou e o whisky também. Apetecia-me mais. Apetecia‑me
beber até o torpor do álcool me fazer esquecer novamente.
Entrei, dirigi-me à
garrafa para me servir. Quando a inclinava, a mão dela agarrou na minha com uma
suavidade firme e senti-me impedido de o fazer.
Quebrei.
– Miguel, como é que podes
escrever acerca da vida e no entanto fugires dela?
Olhei-a.
– Sabes, acho que é para
fugir dela que escrevo. Refugio-me em vidas que não são minhas e em universos
que crio sem me sentir esmagado pela realidade.
– Mas a realidade não
desaparece…
– Não, mas fica oculta.
– Queres contar-me o que
aconteceu?
– Não.
– Mas vais contar.
O tom autoritário que
entregou à última frase tornou-se um comando quase irresistível. Não queria
falar, mas as recordações emergiram em catadupa, e a dor foi demasiado forte.
Senti a mesma pressão no peito que senti naquele dia, o dia que queria ter
apagado da minha existência. Controlei-me para conter as lágrimas que me vieram
aos olhos. Sentei-me. Acendi mais um cigarro. Ela sentou-se à minha frente.
– Conheci-a há dez anos
atrás – dei comigo a dizer. – Chama-se Diana. Era e é uma mulher linda,
sofisticada. Conheci-a numa tertúlia de amigos. Era inteligente, culta. Era
alguém com quem dava gosto falar.
Ela continuava a olhar num
silêncio expectante. Continuei.
– Na altura tinha
publicado o meu primeiro livro e escrevia esporadicamente para jornais e
revistas. O meu livro tinha sido um sucesso, ganhei algum dinheiro com isso,
não tanto como muitos julgam, mas algum, e gozava já de popularidade em certos
meios. Começaram a aparecer convites para festas e eventos, lançamento de
livros de outros autores. Soube-me bem esta mudança na minha vida, este
reconhecimento do que tinha feito. Comecei a frequentar tertúlias onde se
falava horas a fio acerca de artes em geral, onde aprendi a apreciar muita
coisa que me escapava até então e onde encontrei muita gente interessante. E um
dia conheci-a a ela.
– Conta-me.
– Éramos um grupo
considerável e estávamos reunidos num bar ao pé do cinema Roma, onde costumava
haver espectáculos de jazz ao vivo. O
ambiente era selecto e calmo e costumávamos falar longamente antes de os
espectáculos começarem. Lembro-me perfeitamente de quando a vi pela primeira
vez. Veio a acompanhar alguém, já não sei quem, e chamou-me a atenção. Tentei
não dar nas vistas, não olhar demasiado para ela, mas prestava atenção aos seus
movimentos, ao que dizia, à maneira como o dizia. No fim da noite ela veio ter
comigo, para minha surpresa. Trazia um exemplar do meu livro e pediu-me para eu
o autografar. Foi um bom pretexto para meter conversa com ela. Se eu soubesse…
– Ninguém sabe. É por isso
que a vida é interessante.
– Fomo-nos cruzando de
forma avulsa, aqui e ali, até que um dia nos encontrámos numa livraria por mero
acaso. Acabámos por tomar um café e ficar na conversa. Trocámos números de
telefone. Não tardou muito para estarmos a sair os dois. Fomo-nos conhecendo
com tempo, sem pressas. Uma coisa foi levando a outra e acabámos por nos casar
e constituir família. Ela continuou a ter uma atitude independente de que eu
gostava, mas, pacato como sempre fui, tive de me habituar a algumas coisas que
não apreciava. Insistia em ir a todas as festas do jet-set para que éramos convidados, muito a contragosto meu, que
geralmente declinava esses convites, e queria sempre algum glamour. Acabei por comprar esta casa que estava em ruínas e
remodelá-la, porque tínhamos a casa sempre cheia de gente e começou a ser-me
impossível escrever. Retirava-me para aqui e deixava-a com o que ela gostava. A
nossa vida parecia correr bem. Eu queria ter filhos, mas ela não queria. «Não
ainda», dizia. E isto durou até um dia.
– Um dia…
– Um amigo avisou-me de
que eu devia abrir os olhos, mas não me disse acerca de quê. No entanto, fiquei
desperto e alerta. A minha casa em Lisboa continuava a ser um rodopio de gente,
ela ia a festas sozinha ou acompanhada por alguém, raramente era vista sozinha
em qualquer sítio. Eu, por outro lado, para conseguir escrever passava muito
tempo ausente de Lisboa. Começou a haver algo negro a roer-me por dentro,
pensamentos obscuros. Quis ter certezas. Contratei um detective para a seguir,
porque queria ter certezas. E um dia, nesse dia, as certezas apareceram dentro
de um envelope A4, amarelo. Ela não tinha um amante. Tinha vários. E numa
pequena cassete vinha gravado todo o desprezo e o desrespeito que sentia por
mim. Fui de imediato a Lisboa. Entrei em casa a meio da tarde para a encontrar
no quarto com um dos amantes. Limitei-me a entrar no quarto. Sentei-me. O homem
que estava com ela ficou branco, pálido, sem reacção. «Levanta-te, agarra nas
tuas coisas e sai», limitei-me a dizer-lhe. Ele nem olhou para trás. Ela olhava
para mim e chorava. «Amor, desculpa, foi uma vez, não é o que parece…».
Mentiras. Tantas mentiras. Mandei o envelope para cima da cama. Ela abriu-o e
os seus olhos ficaram cheios de terror. «Amor, isto não é verdade, sabes que te
amo, jamais faria isto, isto são montagens!». E eu iniciei a reprodução das
gravações de alguns telefonemas seus. «Não é a tua voz?». «Amor, podemos
resolver isto…». Abanei a cabeça. Dirigi-me à porta do quarto. Antes de sair
lembro-me de me ter ouvido dizer: «Uma vez que nada do que aqui esta foi pago
por ti, com o teu dinheiro, tudo fica. Veste-te, tens dez minutos para sair de
casa. Daqui a dez minutos ponho-te na rua como estiveres.» «Mas vou para
onde?». «Podes ir ter com um dos teus amantes. Ou podes ficar na rua, se
quiseres. Afinal é na rua que as putas costumam estar, não é? Despacha-te. Tens
dez minutos». Daí a dez minutos ela saía. Uma hora depois a fechadura foi trocada.
Calei-me finalmente.
Sentia-me dorido das recordações. Amara-a tanto, podia ter compreendido tanta
coisa, podia até ter compreendido os amantes que tinha pelas minhas ausências.
Não compreendi o desprezo na sua voz.
E pela primeira vez
percebi que, apesar de ter passado todos estes anos a culpá-la, a verdade é que
me sentia culpado pelo que aconteceu. E finalmente chorei.
Lilith levantou-se, veio
até mim, sentou-se ao meu lado, agarrou‑me, fez-me deitar no seu colo.
Encolhi-me, resguardei-me, experimentei aquela sensação doce de quando era
miúdo e corria para o colo da minha mãe. Senti-me finalmente reconfortado, como
se algo dentro de mim estivesse finalmente disposto a descansar.
Ela fez-me uma festa no
cabelo, baixou-se, deu-me mais um pequeno beijo nos lábios e disse:
– Pronto, meu querido. Já
podes recomeçar a viver…
Já atualizei a leitura.
ResponderEliminarAbraço e saúde