terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Lilith - XII - Pecado Original

Oito e trinta da manhã.

Acordei.

Pela primeira vez em anos, parecia, não acordei com um peso em cima e sentia-me mais repousado, mais livre. Apesar dos queixumes dos ossos e dos músculos das costas, admito que me sentia bem. Levantei-me para ir à casa de banho e de caminho espreitei para o quarto. Ela dormia ainda.

Depois fiz o meu pequeno-almoço, comi, liguei o portátil e comecei a escrever. Há anos que não sentia uma necessidade tão grande de escrever, de dizer coisas, e esta sensação como que tinha voltado, o porquê de eu escrever. Neste momento não me angustiavam já os prazos, não me preocupava com o que escrevia, pura e simplesmente despejava as minhas opiniões, os meus pontos de vista, a minha alma para dentro de um ficheiro. Escrevia com gosto, motivo e razão, por oposição a escrever para pagar as contas.

Ela acordou por volta das onze. Veio à porta do quarto e viu-me a escrever. Sorriu.

– Bom dia – disse-lhe.

– Bom dia. Pelos vistos há qualquer coisa de diferente.

– É, acho que consegui organizar-me e estou a trabalhar.

– Bom, muito bom. Deixa-te estar, continua. Eu faço o almoço. Mas olha, que dizes de irmos a Lisboa mais logo?

– Porquê?

– Porque me apetece sair daqui um pouco, porque gosto de isolamento, mas não em demasia, gostava de sair um bocadinho e dar uma volta. Podíamos ir. Que dizes?

– Bem, agora estou um bocado lançado nisto…

– Sim, mas sabes, viver um bocadinho também é bom…

Calei-me. Da última vez que ela disse algo de parecido, eu não esperava, de maneira nenhuma, o que aconteceu depois.

– Tens a certeza de que queres ir?

– Tenho. Mas agora não penses nisso. Continua. Vamos lá para o meio da tarde.

Continuei a escrever, mas não voltei a vê-la até me chamar para almoçar. Almoçámos conversando sempre de forma leve, como bons amigos, a confesso que sentia cada vez mais isso em relação a ela, se calhar também por tudo o que se tinha passado ontem.

Depois do almoço voltei à escrita e eram umas quatro da tarde quando ela chegou ao pé de mim, já vestida para sair.

– Vamos?

– Tens mesmo a certeza de querer ir?

– Sim.

– Então deixa-me ir mudar de roupa.

– Não vale a pena. Podes mudar de roupa em tua casa em Lisboa. Passamos por lá antes de vermos para onde vamos.

Se ontem a perspectiva de irmos a minha casa me pareceria odiosa, hoje pareceu apenas um pormenor sem grande significado. Raramente lá ia, e quando o fazia nunca demorava. A maior parte do tempo a casa estava fechada. Ainda tinha lá roupas da Diana, coisas que ela não tivera sequer a coragem de reclamar e das quais eu não conseguira desfazer-me. A casa estava carregada dela e isso deixava-me sempre desconfortável. Mas não hoje. O desconforto tinha ido com a culpa. Sobretudo porque me apercebi, finalmente, de que não me podia considerar culpado de um erro alheio. Senti que estava finalmente em paz comigo.

– Sim, podemos passar lá. Vamos então.

Fizemo-nos ao caminho. Nos primeiros quilómetros, apesar do seu ar jovial e bem-disposto, manteve o silêncio. Só ao fim de algum tempo falou.

– Aquilo que te vou dizer agora não se passou comigo. Mas é necessário que o saibas para perceberes tudo o resto.

Percebi que ia voltar ao seu passado ali mesmo. Ela continuou.

– Depois de eu ter saído do Éden, Adão ficou só, sem companheira. A solidão começou a corroê-lo, a entristecê-lo, deixá-lo sem ânimo. Yahvé mandou chamar por mim várias vezes, mas eu sabia que se regressasse os problemas voltariam da mesma forma e recusei. Ainda não sentia ser o tempo certo. Se sabes o que dez anos de solidão podem fazer a um homem, imagina cem…

Custava-me a imaginar, realmente.

– Entretanto Yahvé acabou por sentir pena dele, da solidão e do estado de espírito. E foi assim que apareceu Eva, feita para Adão, mais dócil e subserviente. O aparecimento dela fez com que Adão ganhasse nova vida. Aquilo que Yahvé não esperava foi o que aconteceu em seguida.

– Então?

– A solidão mudou Adão. Mudou-o muito, tal como eu sabia que mudaria. E vê como são as coisas, não me quis tratar como igual mas acabou por se submeter à Eva, não porque sentisse o mundo de maneira diferente, mas porque tinha medo de ficar só outra vez. Eu tinha razão quando pensava que ele ainda não tinha mudado, mas ele acabou por se deixar submeter por medo. Yahvé ficou furioso. Não só pela atitude, mas também pelos motivos dele. Percebeu que aquilo que tinha em mente desde o princípio caía por terra, que os seus planos falhavam. Não havia já hipótese de dar início ao que queria e, como tal, expulsou Adão e Eva do Éden. Uma vez que Eva não tinha sido concebida como nós, Yahvé retirou a Adão a longevidade para que pudessem seguir os dois a vida em conjunto.

– Mas então e história da maçã? – Perguntei eu, tentando dar um toque de humor à pergunta. Ela percebeu e riu.

– Sabes de onde vem a história da maçã?

– Francamente, não.

– O «Génesis» fala em fruto, não em maçã. E nunca poderia falar em maçã, porque não era coisa que se conhecesse ali por aqueles sítios.

– Então de onde é que ela aparece?

– Do facto de, quando o «Génesis» é traduzido para latim, aparece a palavra fruto e os tradutores, como alegoria, introduzem a maçã na história porque a palavra para maçã é a mesma que para mal, ou seja malus. A pobre maçã levou as culpas sem culpa nenhuma.

– Então, nesse caso, qual é afinal o pecado original?

– Meu querido, o pecado original é o orgulho.

– Mas então como é que tu te tornas a rainha da noite, a que vem colher as vidas dos filhos de Eva, a aliada dos demónios?

– Através desse mesmo orgulho, meu querido. Calculas o ressentimento de Adão? E o ressentimento que ele passou à sua descendência? Ele passou o resto da vida a culpar-me de tudo. Já eu não me acho culpada de nada, a não ser de ter feito o que achava certo, sem exigir mais do que me era devido. E sabes que mais? De uma certa forma sinto-me isenta do pecado original.

– Porquê?

– Porque não acho que tenha alguma responsabilidade no que se passou, logo sou a única pessoa no mundo que nada do que faça é pecado.

– Não sentes culpa…

– Exacto. Sou livre.

1 comentário:

  1. Ontem não pude vir. Hoje também não posso adiantar muito, mas adiante.
    Abraço e saúde

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!