Oito e trinta da manhã.
Acordei.
Pela primeira vez em anos,
parecia, não acordei com um peso em cima e sentia-me mais repousado, mais
livre. Apesar dos queixumes dos ossos e dos músculos das costas, admito que me
sentia bem. Levantei-me para ir à casa de banho e de caminho espreitei para o
quarto. Ela dormia ainda.
Depois fiz o meu
pequeno-almoço, comi, liguei o portátil e comecei a escrever. Há anos que não
sentia uma necessidade tão grande de escrever, de dizer coisas, e esta sensação
como que tinha voltado, o porquê de eu escrever. Neste momento não me
angustiavam já os prazos, não me preocupava com o que escrevia, pura e simplesmente
despejava as minhas opiniões, os meus pontos de vista, a minha alma para dentro
de um ficheiro. Escrevia com gosto, motivo e razão, por oposição a escrever
para pagar as contas.
Ela acordou por volta das
onze. Veio à porta do quarto e viu-me a escrever. Sorriu.
– Bom dia – disse-lhe.
– Bom dia. Pelos vistos há
qualquer coisa de diferente.
– É, acho que consegui
organizar-me e estou a trabalhar.
– Bom, muito bom. Deixa-te
estar, continua. Eu faço o almoço. Mas olha, que dizes de irmos a Lisboa mais logo?
– Porquê?
– Porque me apetece sair
daqui um pouco, porque gosto de isolamento, mas não em demasia, gostava de sair
um bocadinho e dar uma volta. Podíamos ir. Que dizes?
– Bem, agora estou um
bocado lançado nisto…
– Sim, mas sabes, viver um
bocadinho também é bom…
Calei-me. Da última vez
que ela disse algo de parecido, eu não esperava, de maneira nenhuma, o que
aconteceu depois.
– Tens a certeza de que
queres ir?
– Tenho. Mas agora não
penses nisso. Continua. Vamos lá para o meio da tarde.
Continuei a escrever, mas
não voltei a vê-la até me chamar para almoçar. Almoçámos conversando sempre de
forma leve, como bons amigos, a confesso que sentia cada vez mais isso em relação
a ela, se calhar também por tudo o que se tinha passado ontem.
Depois do almoço voltei à
escrita e eram umas quatro da tarde quando ela chegou ao pé de mim, já vestida
para sair.
– Vamos?
– Tens mesmo a certeza de
querer ir?
– Sim.
– Então deixa-me ir mudar
de roupa.
– Não vale a pena. Podes
mudar de roupa em tua casa em Lisboa. Passamos por lá antes de vermos para onde
vamos.
Se ontem a perspectiva de
irmos a minha casa me pareceria odiosa, hoje pareceu apenas um pormenor sem
grande significado. Raramente lá ia, e quando o fazia nunca demorava. A maior
parte do tempo a casa estava fechada. Ainda tinha lá roupas da Diana, coisas
que ela não tivera sequer a coragem de reclamar e das quais eu não conseguira
desfazer-me. A casa estava carregada dela e isso deixava-me sempre
desconfortável. Mas não hoje. O desconforto tinha ido com a culpa. Sobretudo
porque me apercebi, finalmente, de que não me podia considerar culpado de um
erro alheio. Senti que estava finalmente em paz comigo.
– Sim, podemos passar lá.
Vamos então.
Fizemo-nos ao caminho. Nos
primeiros quilómetros, apesar do seu ar jovial e bem-disposto, manteve o
silêncio. Só ao fim de algum tempo falou.
– Aquilo que te vou dizer
agora não se passou comigo. Mas é necessário que o saibas para perceberes tudo
o resto.
Percebi que ia voltar ao
seu passado ali mesmo. Ela continuou.
– Depois de eu ter saído
do Éden, Adão ficou só, sem companheira. A solidão começou a corroê-lo, a
entristecê-lo, deixá-lo sem ânimo. Yahvé mandou chamar por mim várias vezes,
mas eu sabia que se regressasse os problemas voltariam da mesma forma e
recusei. Ainda não sentia ser o tempo certo. Se sabes o que dez anos de solidão
podem fazer a um homem, imagina cem…
Custava-me a imaginar,
realmente.
– Entretanto Yahvé acabou
por sentir pena dele, da solidão e do estado de espírito. E foi assim que
apareceu Eva, feita para Adão, mais dócil e subserviente. O aparecimento dela
fez com que Adão ganhasse nova vida. Aquilo que Yahvé não esperava foi o que
aconteceu em seguida.
– Então?
– A solidão mudou Adão.
Mudou-o muito, tal como eu sabia que mudaria. E vê como são as coisas, não me
quis tratar como igual mas acabou por se submeter à Eva, não porque sentisse o
mundo de maneira diferente, mas porque tinha medo de ficar só outra vez. Eu
tinha razão quando pensava que ele ainda não tinha mudado, mas ele acabou por
se deixar submeter por medo. Yahvé ficou furioso. Não só pela atitude, mas
também pelos motivos dele. Percebeu que aquilo que tinha em mente desde o
princípio caía por terra, que os seus planos falhavam. Não havia já hipótese de
dar início ao que queria e, como tal, expulsou Adão e Eva do Éden. Uma vez que
Eva não tinha sido concebida como nós, Yahvé retirou a Adão a longevidade para
que pudessem seguir os dois a vida em conjunto.
– Mas então e história da
maçã? – Perguntei eu, tentando dar um toque de humor à pergunta. Ela percebeu e
riu.
– Sabes de onde vem a
história da maçã?
– Francamente, não.
– O «Génesis» fala em
fruto, não em maçã. E nunca poderia falar em maçã, porque não era coisa que se
conhecesse ali por aqueles sítios.
– Então de onde é que ela
aparece?
– Do facto de, quando o
«Génesis» é traduzido para latim, aparece a palavra fruto e os tradutores, como
alegoria, introduzem a maçã na história porque a palavra para maçã é a mesma
que para mal, ou seja malus. A pobre
maçã levou as culpas sem culpa nenhuma.
– Então, nesse caso, qual
é afinal o pecado original?
– Meu querido, o pecado
original é o orgulho.
– Mas então como é que tu
te tornas a rainha da noite, a que vem colher as vidas dos filhos de Eva, a
aliada dos demónios?
– Através desse mesmo
orgulho, meu querido. Calculas o ressentimento de Adão? E o ressentimento que
ele passou à sua descendência? Ele passou o resto da vida a culpar-me de tudo.
Já eu não me acho culpada de nada, a não ser de ter feito o que achava certo,
sem exigir mais do que me era devido. E sabes que mais? De uma certa forma
sinto-me isenta do pecado original.
– Porquê?
– Porque não acho que
tenha alguma responsabilidade no que se passou, logo sou a única pessoa no
mundo que nada do que faça é pecado.
– Não sentes culpa…
– Exacto. Sou livre.
Ontem não pude vir. Hoje também não posso adiantar muito, mas adiante.
ResponderEliminarAbraço e saúde