quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Lilith - VII - Dúvidas

Dez da manhã.

Acordei e as minhas costas gritaram-me que já não tinha idade para dormir no sofá. Levantei-me lentamente enquanto me espreguiçava e me empurrava para trás o mais que podia para tentar pô-las direitas novamente.

Dirigi-me ao quarto para ver se ela ainda dormia, mas a cama estava vazia. Pensei de imediato que tinha partido outra vez. Foi então que vi a porta para o terraço aberta e me dirigi para lá.

Estava sol, embora o dia estivesse frio e houvesse aquela neblina que ainda não se dissipara e que deixava ver até uma distância considerável mas fazia com que o horizonte se desvanecesse em tons de cinzento, parecendo limitar o mundo à volta. A porta para as escadas que desciam do terraço para o areal estava aberta. Procurei-a na praia. Vi-a finalmente, envolvida nas ondas de um mar revolto sem qualquer réstia de receio, a entregar-se a elas.

Enquanto eu agarrava um cobertor para me proteger do frio, ela viu-me e saiu da água completamente nua, caminhando assim ao longo da praia de regresso a casa.

Subiu as escadas e brindou-me com um sorriso luminoso. Confesso que a sua nudez era perturbadora, não só pela nudez em si, mas também pelo facto de eu estar e encolher-me debaixo de um cobertor e ela estar ali com a pele molhada exposta ao frio e isso não parecer incomodá-la minimamente.

– Bom dia, dorminhoco – disse. – Não olhes assim para mim. Não devo ter nada que não tenhas visto ainda…

Mas tinha. Curiosamente aquilo que sentia não era desejo, não era luxúria, mas comparava-se antes ao que se sentia na presença de algo perfeito, grandioso. Observava-a na perfeição das suas formas, na fluidez dos seus movimentos. Sentia-me intimidado e esmagado pela sua beleza.

– Desculpa… – balbuciei finalmente –, não queria embaraçar-te. Devo parecer um miúdo…

– Não embaraçaste.

– Desculpa na mesma.

– Estás desculpado. Já comeste?

– Não, acordei mesmo agora, não te encontrei e vi a porta aberta.

– E se comêssemos qualquer coisa?

Os queixumes do meu estômago anunciaram-me que talvez fosse uma boa ideia. Entrámos, bebemos sumo de laranja e comemos torradas. Pouco falei, porque quase tudo o que me vinha à cabeça eram questões com as quais não a queria importunar. Ela estava muito bem-disposta e jovial.

Depois do pequeno-almoço fomos para o terraço. Sentámo-nos. Ela esticou-se um bocado na espreguiçadeira e apreciava o Sol que estava cada vez mais forte e ia aos poucos vencendo a neblina. Eu olhava para o mar, tentando pôr as minhas ideias em perspectiva.

Foi ela que quebrou o silêncio.

– Ontem disseste que tinhas uma pergunta e um pedido…

– Sim, cheguei a fazer a pergunta.

– Pois foi. E ainda queres a resposta?

– Claro.

– Como te disse, o meu nome aparece uma única vez na Bíblia ou na Torá, no livro do profeta Isaías. As modernas traduções da Bíblia retiraram o meu nome do versículo em causa, mas ele estava lá. Hoje em dia lês: «As feras do deserto se encontrarão com as feras da ilha, e o sátiro clamará ao seu companheiro; e os animais nocturnos ali pousarão, e acharão lugar de repouso para si», mas o que lá deveria constar é: «As feras do deserto se encontrarão com as feras da ilha, e o sátiro clamará ao seu companheiro; e Lilith ali pousará, e achará lugar de repouso para si». Ora acontece que na tradição judaica qualquer nome que estivesse nos textos sagrados teria de ter uma história por detrás. Os próprios rabinos acreditavam que os textos deviam ser analisados em busca de referências ou coincidências para tentar dar significado e história a qualquer nome. Era esta tradição que levava à criação das midrashim.

– Sim, já li qualquer coisa acerca disso. Mas as midrashim não aparecem apenas por volta do século I A.C.?

– Escritas sim, mas vêm de uma tradição que afirma que a Bíblia só pode ser compreendida através de dois pontos de vista, o que está escrito e algo que era passado apenas na tradição oral, de pais para filhos. O conhecimento de uma parte sem a outra levava a uma interpretação incompleta dos textos.

– Compreendo.

– Quando o meu nome aparece naquele versículo, todo o texto foi vasculhado à procura de algo que levasse a mim, à luz desta tradição e é assim que me vão descobrir na criação ao lado de Adão. Isto responde à tua pergunta?

– Sim, mas levanta ainda mais dúvidas.

– Claro que sim, mas temos de ir devagar. Tinhas também um pedido, não era?

– Sim. É também uma pergunta, mas é de certa forma tão extensa que prefiro pô-la como um pedido.

– Diz, então…

– Há algo que me confunde em tudo o que disseste. Segundo a ciência, a idade da Terra é de mais ou menos 100 milhões de anos, sendo que a idade do universo será de aproximadamente 12 a 13 biliões de anos. No entanto, o criacionismo aponta para algo bem mais modesto, entre os 6000 e os 7500 anos, conforme tu própria afirmaste. Como é que isto se encaixa?

Ela riu.

– Compreendo o facto de isso ser um pedido. É realmente algo de complicado. Mas eu vou tentar explicar-te. – Fez uma pausa como que para organizar as ideias. – A Bíblia afirma que o universo foi criado em sete dias, mas o texto não é de todo literal. Isso é apenas o primeiro capítulo do «Génesis». Como já te disse o segundo capítulo tem outro tom.

– Sim, já me tinhas referido isso.

– Já pensaste nas características que se afirma que Deus tem?

– Bem, é eterno, omnipotente, omnipresente, omnisciente…

– … e todas as outras, mas olha para o que se passa depois do primeiro capítulo. No capítulo 4, versículo 14, é afirmado que Caim se retira da face do Senhor. Ora ele nunca poderia fazê-lo, sendo Deus omnipresente. No capítulo 6, versículo 6, o Senhor arrepende-se de ter criado o homem. Ora, sendo omnisciente como é que poderia arrepender-se de uma coisa que já sabia à partida que ia acontecer? Só se não é omnisciente, e com isto já foram duas características de Deus. O que é que achas que isto quer dizer?

– Bem, isso diz-me que aquele ser não é de facto Deus.

– É isso mesmo. Não é.

– Então quem é Deus, afinal?

– Ninguém sabe, embora se saiba que ele existe. Deus é o criador de tudo, mas mesmo tudo e não precisa da existência do universo para existir. Existia antes de o ter criado e continuará a existir depois de ele desaparecer.

– E tem de facto todas aquelas características?

– Há uma que é ligeiramente diferente. Ele não é eterno, é intemporal e extemporâneo. Quer isto dizer que Ele tem todas as outras características exactamente porque existe fora do tempo. Está no passado, no presente e no futuro ao mesmo tempo e por isso é também omnisciente. Basicamente é como se para Ele tudo o que existe, incluindo o tempo, estivessem condensados num pensamento, ou melhor até, numa imagem feita por si próprio da qual ele conhece cada detalhe, e não passasse disso. Logo, tudo o que existe, existirá ou já existiu está permanentemente na Sua presença.

– Mas isso implica, na prática, que se Ele criou absolutamente tudo, também é o criador do mal…

– O que é o mal? O mal é apenas um conceito relativo. O facto de existir um Deus que é a fonte de todo o bem e algo que o contrapõe, que é a fonte de todo o mal, é apenas conveniente, pois desresponsabiliza o indivíduo Aquilo que fazemos de mau é culpa da influência de algo externo e aquilo que acontece de bom também o é. Isto, Miguel, é apenas a natureza humana a funcionar e não tem nada de divino ou demoníaco.

– Sim, mas existe bem e mal.

– Achas? Diz-me, se olhares para um leão e para uma gazela. O leão come a gazela…

– É apenas algo de natural.

– Sim, mas se vires o mundo da perspectiva da gazela o leão deve ser o mal encarnado. E se o fosse, então o leão deveria sentir remorsos de comer a gazela, não achas?

– Isso seria ridículo. O leão precisa de comer a gazela para sobreviver e até para manter os equilíbrios naturais.

– Exacto. O conceito de bem e de mal advém do facto de não conseguirmos compreender os mecanismos que nos rodeiam e, assim sendo, tudo o que nos faz mal é considerado «o Mal». Mas não é bem assim.

2 comentários:

  1. este já está, mas por agora já não consigo ler mais. Vamos ver se dá mais logo. Mal forço um pouco os olhos fico aflita. E estes textos são muito longos.
    Abraço e saúde

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    1. São capítulos inteiros de um romance... Quem leu em papel até achou os capítulos pequenos... ;) Abraço Elvira

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