quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Lilith - II - À procura de Lilith

Três da manhã.

– O nome só por si não te diz nada?

Pensei um pouco.

– Lilith? Não, não me diz nada.

– Então talvez seja melhor eu mostrar-te quem sou.

Olhou para as minhas estantes repletas de livros. Levantou-se com suavidade, dirigiu-se a elas, e pegou num livro. Quase tive a ilusão de que o livro tinha saltado da estante para ir ao seu encontro.

– Já leste este livro?

Reparei que tinha a Bíblia Sagrada na mão.

– Todo não.

Ela sorriu.

– Quem eu sou está explicado nos versículos 26 e 27 do capítulo 1 do livro do Génesis.

Passou-me o livro para a mão. Procurei o que ela me tinha indicado. Encontrei com facilidade e li:

 

26

«E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.

27

E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.»

 

Já tinha lido aquela passagem outras vezes e não achei nada de estranho.

– E então? – Perguntei.

– Bem, se continuares a ler, vais descobrir a segunda criação a partir do versículo 7 do capítulo 2.

– Segunda criação?

– Pensa. Deus criou tudo até ao sexto dia. Só depois recriou?

– Parece-me apenas uma descrição mais pormenorizada do sexto dia…

– Mas não é.

Li novamente o capítulo 1 desde o começo e o capítulo 2, mas continuei com a mesma sensação. Ela percebeu isso.

– Já ouviste falar na Cabala? – Perguntou-me.

– Já. É um conjunto de textos místicos judeus.

– Sim. É isso mesmo. E no Zohar?

– Não, nunca ouvi falar. Quer dizer, o nome não me é estranho, mas não sei do que se trata.

– O Zohar é um comentário cabalístico à Bíblia hebraica. É lá que me encontras.

Fiquei a olhar para ela, provavelmente com um ar estranho. Ela riu-se.

– Poupo-te o trabalho – disse. – Sou Lilith, primeira mulher de Adão, criada do barro primordial juntamente com ele.

Foi a vez de eu me rir.

– Para alguém com a tua idade estás muito bem conservada.

– Estou, não estou?

– Agora a sério…

– Eu falo sempre a sério.

Parei a olhar para ela e fiquei a pensar na sensação que me provocava.

– Não te posso obrigar a acreditar em mim, mas vou-te contar uma história. E a escolha de acreditares ou não é tua.

Limitei-me a acenar. Afinal de contas, o que tinha eu a perder? Ela começou.

 

«A primeira recordação que eu tenho é de acordar. Não foi um acordar normal, como quando acordas de manhã de um sono pesado, foi antes um tomar de consciência repentino. Olhei para o lado e ali estava eu, embora não fosse eu. É difícil explicar-te por palavras porque não pode haver uma descrição precisa do que senti. Estavam ali mais duas entidades. Uma era eu também, embora separado de mim. O outro não.

Aquele que não era eu falou:

– Eu sou Yahvé, o criador. Tu és Adão –, falando para a outra parte de mim que me era externa – e tu és Lilith. – Disse para mim directamente. – São homem e mulher e ambos são um só, criados à minha imagem e semelhança. Este lugar onde estão chama-se Éden, e tudo o que aqui está é vosso. Nada tem nome, pelo que o nome de cada uma destas coisas será dado por vós.

Sabes, à altura ainda nem havia perguntas. Não conseguia formular nada. Tudo à minha volta era novo, belo e maravilhoso. Levantei-me, bem como Adão, e saímos em exploração, numa verdadeira aventura de conhecimento. Cheirávamos, provávamos, tocávamos e olhávamos para tudo. Deitávamo-nos e fechávamos os olhos só para ouvir os sons. Tudo era bom.

Com o tempo, fomos descobrindo mais e mais e quanto mais coisas descobríamos mais queríamos descobrir. Yahvé vinha frequentemente ao nosso encontro e ensinava-nos, tirava-nos dúvidas, respondia às nossas questões com a paciência com que um pai ensina um filho. E ele era na verdade o nosso pai.

Até que houve um momento maravilhoso. Adão e eu descobrimos que, embora já não estivéssemos unidos, havia ainda uma maneira de sermos um só, ainda que por breves momentos. Descobrimos o sexo, e tudo o que de bom advinha dele.

Mas depressa me apercebi de que ambos sentíamos as coisas de maneira diferente, díspar. Percebi que o que eu sentia era muito mais forte em termos físicos do que ele. E descobri que ele se acomodava. E descobrimos a rotina. E ao fim de algum tempo, depois de longas conversas com ele, decidi ir falar com Yahvé. Perguntei-lhe o porquê de tudo aquilo e ele explicou-me que ambos tínhamos sido feitos de maneira a ver o mundo de forma diferente para que nos complementássemos. Não podíamos ser iguais na nossa natureza. Compreendi. Mas o tempo foi-se arrastando e nada mudava e a minha insatisfação cresceu. Houve uma altura em que o meu coração ansiava por mais e mais não havia ali. E então, apesar do medo que sentia, e contra os conselhos de Yahvé, decidi partir.»

 

– História interessante. A única coisa que não explica é como é que, passado este tempo todo, estás aqui à minha frente.

– Se pensares um bocadinho, é fácil descobrires.

– Como assim?

– Só depois disto é que Yahvé criou Eva, porque Adão ficou sozinho. E só depois é que se deu o pecado original e a expulsão do paraíso. Ora eu e Adão somos de natureza divina, criados à imagem e semelhança de Yahvé. Adão perdeu parte dessa natureza ao ser expulso. Eu não.

Fiquei a olhar para ela enquanto pensava nas implicações do que me acabara de dizer.

– Quer isso dizer que és imortal?

– Sim, quer. Quer também dizer que nada do que eu faça é pecado, uma vez que não tenho em mim o pecado original. Sou o único ser humano que existe que é a verdadeira natureza de Yahvé, logo não posso ser bem nem mal. Sou tudo.

Deixei-me estar, não acreditando no que ouvia.

Ela levantou-se e dirigiu-se para a porta.

– Já tens muito em que pensar, por ora – disse. – Voltarei em breve. Procura-me e vais-me encontrar. Quando estiveres preparado voltarei.

 

Agarrou a capa e saiu, fechando a porta atrás de si, e deixando-me com uma sensação de vazio tão grande que só me apeteceu chorar.

Eram quatro da manhã.

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