Três da manhã.
– O nome só por si não te diz nada?
Pensei um pouco.
– Lilith? Não, não me diz nada.
– Então talvez seja melhor eu mostrar-te quem sou.
Olhou para as minhas estantes repletas de livros.
Levantou-se com suavidade, dirigiu-se a elas, e pegou num livro. Quase tive a
ilusão de que o livro tinha saltado da estante para ir ao seu encontro.
– Já leste este livro?
Reparei que tinha a Bíblia Sagrada na mão.
– Todo não.
Ela sorriu.
– Quem eu sou está explicado nos versículos 26 e
27 do capítulo 1 do livro do Génesis.
Passou-me o livro para a mão. Procurei o que ela
me tinha indicado. Encontrei com facilidade e li:
26 |
«E disse
Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine
sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre
toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. |
27 |
E criou
Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os
criou.» |
Já tinha lido aquela passagem outras vezes e não
achei nada de estranho.
– E então? – Perguntei.
– Bem, se continuares a ler, vais descobrir a
segunda criação a partir do versículo 7 do capítulo 2.
– Segunda criação?
– Pensa. Deus criou tudo até ao sexto dia. Só
depois recriou?
– Parece-me apenas uma descrição mais
pormenorizada do sexto dia…
– Mas não é.
Li novamente o capítulo 1 desde o começo e o
capítulo 2, mas continuei com a mesma sensação. Ela percebeu isso.
– Já ouviste falar na Cabala? – Perguntou-me.
– Já. É um conjunto de textos místicos judeus.
– Sim. É isso mesmo. E no Zohar?
– Não, nunca ouvi falar. Quer dizer, o nome não me
é estranho, mas não sei do que se trata.
– O Zohar é um comentário cabalístico à Bíblia hebraica. É lá que me encontras.
Fiquei a olhar para ela, provavelmente com um ar
estranho. Ela riu-se.
– Poupo-te o trabalho – disse. – Sou Lilith,
primeira mulher de Adão, criada do barro primordial juntamente com ele.
Foi a vez de eu me rir.
– Para alguém com a tua idade estás muito bem conservada.
– Estou, não estou?
– Agora a sério…
– Eu falo sempre a sério.
Parei a olhar para ela e fiquei a pensar na
sensação que me provocava.
– Não te posso obrigar a acreditar em mim, mas
vou-te contar uma história. E a escolha de acreditares ou não é tua.
Limitei-me a acenar. Afinal de contas, o que tinha
eu a perder? Ela começou.
«A primeira recordação que eu tenho é de acordar.
Não foi um acordar normal, como quando acordas de manhã de um sono pesado, foi
antes um tomar de consciência repentino. Olhei para o lado e ali estava eu,
embora não fosse eu. É difícil explicar-te por palavras porque não pode haver
uma descrição precisa do que senti. Estavam ali mais duas entidades. Uma era eu
também, embora separado de mim. O outro não.
Aquele que não era eu falou:
– Eu sou Yahvé, o criador. Tu és Adão –, falando
para a outra parte de mim que me era externa – e tu és Lilith. – Disse para mim
directamente. – São homem e mulher e ambos são um só, criados à minha imagem e
semelhança. Este lugar onde estão chama-se Éden, e tudo o que aqui está é
vosso. Nada tem nome, pelo que o nome de cada uma destas coisas será dado por
vós.
Sabes, à altura ainda nem havia perguntas. Não
conseguia formular nada. Tudo à minha volta era novo, belo e maravilhoso. Levantei-me,
bem como Adão, e saímos em exploração, numa verdadeira aventura de
conhecimento. Cheirávamos, provávamos, tocávamos e olhávamos para tudo.
Deitávamo-nos e fechávamos os olhos só para ouvir os sons. Tudo era bom.
Com o tempo, fomos descobrindo mais e mais e
quanto mais coisas descobríamos mais queríamos descobrir. Yahvé vinha frequentemente
ao nosso encontro e ensinava-nos, tirava-nos dúvidas, respondia às nossas
questões com a paciência com que um pai ensina um filho. E ele era na verdade o
nosso pai.
Até que houve um momento maravilhoso. Adão e eu
descobrimos que, embora já não estivéssemos unidos, havia ainda uma maneira de
sermos um só, ainda que por breves momentos. Descobrimos o sexo, e tudo o que
de bom advinha dele.
Mas depressa me apercebi de que ambos sentíamos as
coisas de maneira diferente, díspar. Percebi que o que eu sentia era muito mais
forte em termos físicos do que ele. E descobri que ele se acomodava. E
descobrimos a rotina. E ao fim de algum tempo, depois de longas conversas com
ele, decidi ir falar com Yahvé. Perguntei-lhe o porquê de tudo aquilo e ele
explicou-me que ambos tínhamos sido feitos de maneira a ver o mundo de forma
diferente para que nos complementássemos. Não podíamos ser iguais na nossa
natureza. Compreendi. Mas o tempo foi-se arrastando e nada mudava e a minha
insatisfação cresceu. Houve uma altura em que o meu coração ansiava por mais e
mais não havia ali. E então, apesar do medo que sentia, e contra os conselhos
de Yahvé, decidi partir.»
– História interessante. A única coisa que não
explica é como é que, passado este tempo todo, estás aqui à minha frente.
– Se pensares um bocadinho, é fácil descobrires.
– Como assim?
– Só depois disto é que Yahvé criou Eva, porque
Adão ficou sozinho. E só depois é que se deu o pecado original e a expulsão do
paraíso. Ora eu e Adão somos de natureza divina, criados à imagem e semelhança
de Yahvé. Adão perdeu parte dessa natureza ao ser expulso. Eu não.
Fiquei a olhar para ela enquanto pensava nas
implicações do que me acabara de dizer.
– Quer isso dizer que és imortal?
– Sim, quer. Quer também dizer que nada do que eu
faça é pecado, uma vez que não tenho em mim o pecado original. Sou o único ser
humano que existe que é a verdadeira natureza de Yahvé, logo não posso ser bem
nem mal. Sou tudo.
Deixei-me estar, não acreditando no que ouvia.
Ela levantou-se e dirigiu-se para a porta.
– Já tens muito em que pensar, por ora – disse. –
Voltarei em breve. Procura-me e vais-me encontrar. Quando estiveres preparado
voltarei.
Agarrou a capa e saiu, fechando a porta atrás de
si, e deixando-me com uma sensação de vazio tão grande que só me apeteceu chorar.
Eram quatro da manhã.
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