Meio-dia e dez.
– Mas se Yahvé não é Deus, quem é ele então,
afinal? – Perguntei.
– Isso é uma excelente pergunta para responder a
seguir ao almoço – respondeu-me num tom brincalhão. – Tens alguma coisa que não
seja cozinhado em microondas?
– Por acaso acho que não.
– Bahhh! Como é que consegues passar este tempo
todo a comer essas porcarias?
– Bem, preguiça e uma certa inaptidão para a
cozinha…
– Típico, sem dúvida. Onde é que podemos comer uma
refeição decente nas redondezas?
– Creio que se pode arranjar qualquer coisa na
vila, a uns dez quilómetros daqui.
– Então, vamos.
– Mas tenho o frigorífico cheio, qual é a
necessidade?
– Despacha lá a tua preguiça e deixa a curiosidade
de lado por um bocadinho. Vamos comer comida decente. Eu detesto comida pré‑cozinhada.
E aproveitamos e passamos por um supermercado qualquer e compramos comida de
gente.
– Estás a pensar mudar-te para cá?
– Por uns tempos… – E dito isto, lançou-me um
olhar capaz de derreter o mais empedernido dos homens – Porquê? Não queres?
Depois da maneira como ela me olhou, era
impossível qualquer homem dizer que não. Acho que naquele instante, naquele
preciso momento, consegui perceber o poder que esta mulher tinha. Se ela queria
uma coisa, era impossível negar-lha.
– Tenho alguma hipótese de refutar? – Perguntei eu
num tom entre o vou-fingir-que-me-resigno-à-tua-presença-como-se-me-importasse
e um espicaçar para obter uma resposta dela.
– Não.
Um não resoluto e simples e com isto a relação
entre nós estava normalizada.
Arrancámos para a vila. Por onde quer que
passássemos, havia sempre olhares com um misto de emoções. Em primeiro lugar,
quando a olhavam e reparavam que ela usava um vestido leve, de Verão, muito
solto em pleno Inverno. Andava assim no meio de gente agasalhada com camisolas
de lã de gola alta e blusões impermeáveis.
Claro que, além disto, havia não só o corpo que se
notava, mas uma imponência, uma altivez que fazia com que ela estivesse num
patamar acima de qualquer um dos outros mortais. Curiosamente, o desejo que eu
não sentia por ela era patente nos rostos de todos os homens, sem excepção, com
quem nos cruzávamos, e no de algumas mulheres também. As que não sentiam desejo
ficavam com os olhos inflamados de inveja.
Apercebi-me pela primeira vez da anormalidade da
situação. Também eu devia olhar para ela assim. Era a criatura mais bela que eu
já tinha visto e, no entanto, para lá da admiração pela pessoa e da apreciação
do lado estético, nada mais havia.
Chegámos a um restaurante
comigo ainda a pensar nisto. Sentámo-nos.
O empregado veio, solícito
e meio atrapalhado. Anotou os pedidos e retirou-se. Não me contive.
– Posso fazer-te uma
pergunta?
– Bem, uma vez que isso
era uma, já fizeste. Devias ter perguntado se podias fazer duas – disse com uma
gargalhada – Mas podes, sim, diz.
– Vejo a maneira como
todos os homens te olham e acho perfeitamente natural.
– Eu também.
– Mas também acharia
natural eu olhar para ti dessa forma.
– Mas não olhas.
– Certo. Porquê?
– Porque temos algo para
fazer e não te podes distrair com essas coisas. Era mau. Atrasava-nos.
– Mas então porque é que
todos olham para ti deste modo? Aliás, indo mais longe, o que levou a que
aquela mulher te beijasse daquela maneira e tivesse aquela atitude?
– Ainda não percebeste?
– Francamente, não.
Ela respirou fundo.
Olhou-me fixamente.
– Queres perceber?
– Quero. É algo que me faz
confusão.
– Está bem.
E conforme ela disse isto,
o mundo pareceu desaparecer à minha volta, restando apenas ela à minha frente.
Aquela presença que eu admirava tornou-se avassaladora. O resto do mundo deixou
de importar. Só havia ela e era linda, sublime. Apercebi-me de que naquele
instante me apaixonara por ela, mas com uma força e intensidade que eu julgava
não possuir. Todas as outras mulheres que eu amei se tornaram pequenas, ali,
naquele momento. E esta sensação fez-me sentir pleno. Cheio. Capaz de mover o
mundo ao seu pedido. Se ela me tivesse pedido a vida naquele instante, eu
dava-lha de bom grado e sentir-me-ia gratificado por isso.
E de repente, tal como a
sensação apareceu, desapareceu em seguida, deixando-me com algo parecido com
uma recordação quente e doce de um amor esquecido. Mas ela já não era gigante e
o mundo tinha voltado ao seu lugar.
– Percebeste? – Perguntou-me.
– Senti, mas não consigo
racionalizar.
– Eu digo-te. Eu sou a
parte que se perdeu de Adão. O feminino que vem de Eva é feminino só no sentido
de que também Adão tinha uma parte feminina, assim como eu tenho uma parte masculina.
Mas eu sou o verdadeiro feminino. E quando to demonstrei, tu sentiste-te
finalmente completo, não foi?
Esta constatação
atingiu-me com a força de uma parede ao cair. Ela continuou.
– Sabes, a grande busca da
humanidade é por mim. Não por mim enquanto pessoa, mas por aquilo que eu sou. E
é para tentar preencher este vazio que as pessoas se voltam para todo o lado,
se enchem de espiritualismo ou de bens materiais ou seja lá o que for. Mas o
vazio nunca é preenchido, as pessoas nunca se sentem plenas. E querem sempre
mais e mais, numa tentativa de me encontrar. Mas não encontram. Procuram no
sítio errado.
Compreendi-a
perfeitamente. Era fácil tentarmos, cada vez mais, atulhar as nossas vidas com
ideologias, algumas delas decadentes, ou objectos sem nexo, na busca de um
conforto que nunca encontrávamos, mesmo no meio do mais fausto luxo. E ainda
assim, não conhecendo a alternativa, persistíamos. Entendi a reacção da mulher
que a beijou, quando ela a largou. Teve, por um momento, um vislumbre da sua
própria totalidade, só para se sentir dilacerada a seguir, e a sua vida não
seria, nunca mais, a mesma.
Mesmo a minha, apenas por
estes breves instantes, parecia ter ganho qualquer coisa, como se houvesse algo
diferente em mim, uma segurança que começava a instalar-se.
E pela primeira vez surgiu
com clareza a pergunta:
- E se esta mulher for
quem na verdade afirma ser?
mais um lido. Vou em frente
ResponderEliminarAbraço e saúde