Uma da manhã.
Estávamos já no meu refúgio.
O caminho de volta tinha sido feito no mais
absoluto silêncio. Continuava a pensar e a rever o que se tinha passado vezes
sem conta, tentava perceber. Havia algo que me escapava. Cada vez que olhava
para ela, sentia que a resposta estava ali, à distância de um toque. No
entanto, como até aqui, mas sobretudo agora, não conseguia tocar-lhe.
Durante o caminho o olhar dela vagueava sempre
para longe de mim. Se no meu silêncio não lhe fazia perguntas, acredito que os
meus olhos estivessem carregados delas.
Quando entrámos ela encheu um copo com vinho e
saiu para o terraço. Eu fiquei. Havia algo nela de diferente. Sentia-me verdadeiramente
intimidado e sem ter a mínima ideia de como lidar com ela. Ela podia ou não ser
quem afirmava, mas era, com toda a certeza, alguém muito especial, alguém
diferente.
Ao fim de algum tempo, decidi ir ter com ela.
Olhava para o mar. Estava frio, mas isso não parecia incomodá-la minimamente.
Não fazia a mínima ideia de como a abordar.
– Estás bem? – Acabei por perguntar.
Ela continuou de costas para mim, sem me dar
resposta. Acabei por me sentar e esperei. Ao fim de algum tempo ela virou-se,
finalmente.
– Desculpa – disse.
– Por…
– Por te fazer ver aquilo.
– Então porque o fizeste?
– Porque a tua curiosidade acerca de mim era pelo
que vês, uma mulher, pela graciosidade, pelo meu porte. Era pelas pequenas
histórias e indícios que te dei até agora. Mas eu quero mais do que isso,
sabes. Eu quero que ouças o que te vou dizer, não com uma curiosidade infantil,
quase, mas sim com ouvidos de ouvir. Quero que tenhas atenção às palavras e não
te disperses. Quero que percebas que o que te vou dizer pode ser a verdade, e
se for vais ser a primeira pessoa a ouvi-la em muito tempo. Quero que a
escrevas, quero que a passes adiante.
– Era isso que querias dizer quando me disseste
que a tua presença não era isenta de interesses?
– Era.
– E porquê?
Ela respirou fundo antes de continuar. Virou-se de
novo para o mar. Encostei-me ao corrimão ao seu lado. Ela sorveu mais um
pequeno gole do vinho e continuou.
– Sabes, estou cansada. Cansada de ver o meu nome
a ser apagado, de tentarem fazer com que eu não exista, de ser considerada um
demónio, uma assassina de crianças. Antes divertia-me, sabes? Mas já não. Já
chega.
Mantive o meu silêncio sem saber o que lhe dizer.
Sentia a sua tristeza a apenas conseguia ficar ali, solidário. A minha presença
era o sinal de que a respeitava e de que estava com ela, quer acreditasse ou
não. E sabia que o facto de eu acreditar não era importante para ela. Já a presença
parecia ser.
Sentia a humidade da noite entranhar-se-me na pele
até aos ossos, e ela estava ali apenas com um vestido leve. Tirei o casaco para
lho pôr pelas costas. Ela aproveitou o meu movimento e aninhou‑se nos meus
braços.
– Não penses… – disse –, não perguntes, abraça-me,
só.
Toquei-a pela primeira vez, senti o seu corpo
contra o meu, envolvi-a, e a sensação mais estranha apoderou-se de mim. Uma
sensação de que algo em mim se completou, uma plenitude, uma paz indescritível.
Pela primeira vez tive vontade de acreditar nela e com isto apetecia-me
prostrar-me aos pés dela e prestar-lhe homenagem.
Apertei-a ainda mais contra mim, olhei para ela.
As lágrimas corriam-lhe soltas pelo rosto e eu senti a sua dor dentro de mim.
Ao fim de pouco tempo saiu dos meus braços, limpou as lágrimas, respirou fundo,
recuperou toda a sua altivez e eu fiquei com a sensação de ter presenciado algo
de raro e precioso. Um momento de fraqueza de uma deusa.
– Vamos para dentro – disse-me –, este frio ainda
te faz mal – dirigiu-se para o interior. – Anda, vem – e agarrou-me pela mão.
Eu segui-a.
Sentou-se no sofá e fez-me sentar ao seu lado.
– Eu sei que tens muitas perguntas, sei o que me
ias pedir, mas agora faço-te um pedido, pode ser?
– O que quiseres e que eu possa.
– Isto podes. Por hoje, por agora, sê apenas meu
amigo. Faz-me companhia. Sem perguntas, sem deuses nem demónios, sem mundo.
Fazes isso?
– Faço.
E com isto ela deitou-se ao comprido no sofá,
aninhando-se no meu colo.
– Obrigada – disse.
Fui-lhe acariciando os cabelos enquanto ela
deslizava para o sono.
Ao fim de algum tempo senti-me também quase a
adormecer. Consegui, com algum cuidado, levantá-la e levá-la ao colo até ao
quarto onde a deitei, na minha cama.
Depois fui até ao terraço. Fumei um cigarro e
deixei que as minhas questões se diluíssem no fumo. Por fim, deitei-me no sofá
e senti o torpor do sono a invadir-me.
Olá, Gil!
ResponderEliminarAcho que este conto já passou por aqui há uns anos atrás. Verdade?
Há partes que me são conhecidas, e outras não!
Provavelmente não li os episódios todos quando por cá andou.
Tu o dirás!
Beijo e que tenhas uma boa semana.
Para te ser franco, não sei se andou por aqui... Andou por outros lados mais antigos, mas esses já não existem... :) Beijos :)
EliminarLido mais um episódio. Contrariamente à Janita eu nunca li esta história. Penso que se isso acontecesse me lembraria.
ResponderEliminarAbraço e saúde
Elvira, como eu disse à Janita, creio que andou por outros sitios mais antigos, mas não creio que neste. Espero que esteja a gostar da história (que ainda agora vai no começo). Enorme abraço
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