Uma e vinte e quatro da manhã.
Da varanda do meu quarto
conseguia ver a cidade a estender-se em direcção ao rio. Tinha chovido há pouco
e havia um brilho no ar, quase surreal, fruto da humidade no ar e do reflexo
das luzes no alcatrão molhado.
Fumava o meu cigarro e
pensava na cadeia de acasos e na improbabilidade da mesma. Ria-me por dentro.
Sabia perfeitamente que ela me arrastara para Lisboa para isto, para destruir
em mim a imagem daquela mulher que tantas sequelas deixara. Era curioso como
num espaço tão curto de tempo ela passara a ser apenas um caso caricato, por
oposição a uma história de vida. Lilith operara em mim uma catarse.
No entanto, não deixava de
ver com estranheza as coincidências e estas não paravam de vir ao meu
pensamento, criando-me inquietação e desassossego. Com quem é que eu estava a
lidar afinal?
Ela chegou à varanda,
tirou-me o cigarro da mão e deu uma passa longa e devolveu-o em seguida. Expirou
lentamente o fumo e disse:
– Um cêntimo pelos teus
pensamentos.
– Não valem assim tanto…
– Então oferece-mos…
– Pensava simplesmente em
quem és tu na realidade. Se és quem afirmas, se não és. E ainda que o sejas,
como é que te posso distinguir de entre as lendas à tua volta?
– Podes fazê-lo conhecendo
as lendas primeiro e depois ouvindo‑me para teres a minha versão dos factos. No
fim escolhes em quem acreditar. Sabes, a lenda bíblica não é a mais antiga
escrita sobre mim.
– Não?
– Não. É talvez a que
chegue mais perto em termos concretos, mas não é a mais antiga. Anda comigo.
Segui-a até à sala onde
estava o portátil. Ela abriu-o, fez uma pesquisa rápida na internet e virou o
portátil para mim.
– Aqui tens. És fluente em
inglês, por isso não vais ter problemas em ler isto.
– E isto é?
– A mais antiga lenda
sobre mim. O mito sumério.
Sem mais, dediquei-me a
ler.
«Antes
de as estrelas terem nascido
Antes de as
pessoas terem construído grandes cidades
A grande
montanha de Atlen (paraíso) tremeu
E sangrou
sangue ígneo
E deu à luz
Lilitu
A terra em
toda a volta ardeu
Muitos animais
e pessoas morreram
Quando Lilitu
abriu os olhos
Viu as cinzas
do seu nascimento
E chorou
lágrimas como chuva
As lágrimas de
Lilitu tornaram-se rios e ribeiros
Flores
cresciam onde Lilitu andava
Árvores
cresciam onde Lilitu se sentava
As cinzas
tornaram-se solo fértil
E um pomar
tornou-se a sua casa
No pomar de
Lilitu muitos animais são
Pessoas vieram
viver no paraíso
Lilitu
deu-lhes grão e ensinou-os a semear e colher
Lilitu fez pão
e cerveja
As pessoas
rejubilaram, comeram e beberam
Um dia um
grande príncipe chegou à terra de Atlen
Ele viu Lilitu
e galanteou-a
Mas Lilitu
rejeitou-o e desprezou-o
O grande
príncipe ficou muito irado
Ele emboscou
dois leões e matou-os
Lilitu chorou
pelos leões
Embalou as
cabeças deles nos seus braços
Os leões
despertaram às lágrimas dela
Lamberam as
lágrimas da sua face e ficaram fortes
Ficaram amigos
leais de Lilitu
O grande
príncipe viu isto
E novamente a
galanteou
Mas ela
transformou-se num pássaro
E voou para
longe dele
Irado, o
príncipe começou a caçar pássaros
Lilitu viu
isto e ficou perturbada
Para ofender o
príncipe ela cuspiu-lhe
E acasalou com
uma serpente
Lilitu deu à
luz muito depressa
A criança dela
era como nenhuma outra
A criança
tinha seis braços
A criança
tinha o rabo de uma serpente
A criança era
muito forte
Lilitu chamou
à criança um Marilitu
O Marilitu
atacou o grande príncipe
O grande
príncipe e o Marilitu lutaram
Lutaram dia e
noite
Noite após
noite
E dia após dia
Mas nenhum dos
dois podia ganhar a luta
Lilitu viu
isto e acasalou novamente
Outro Marilitu
nasceu
E outro e
outro
Duzentos e
dezasseis nasceram
Temeroso o
grande príncipe fugiu
As pessoas do
pomar rejubilaram
Os Marilitus
cultivaram a terra
Os Marilitus
protegeram as pessoas
Mas o grande
príncipe jurou vingança
E amaldiçoou a
montanha Atlen e sua terra
Atlen ficou
irado com esta maldição
A montanha e a
terra tremeram
Atlen tremeu e
sangrou e chorou
Seu sangue
ígneo fez fogos
E suas
lágrimas fizeram inundações
Lilitu
amedrontada transformou-se num grande pássaro
Agarrou as
pessoas nos pés
Levou os
animais nas suas costas
Os Marilitus e
os leões também levaram pessoas
Juntos fugiram
da terra de Atlen
Lilitu foi a
ocidente e a oriente
Lilitu foi a
norte e a sul
Finalmente ela
veio para terra seca
As pessoas
agradeceram grandemente a Lilitu
As pessoas
construíram estátuas em honra dela
Lilitu chorou
sua casa perdida
As lágrimas
dela formaram dois rios
Os rios
uniram-se
E fluíram para
o oceano
As pessoas
cultivaram grão nas margens do rio
As pessoas
cultivaram grandes pomares
Eles
construíram edifícios e torres de pedra
As pessoas
cresceram saudáveis e a terra rica
Comerciantes
vieram de sítios distantes
Notícias da
riqueza da terra cresceram
O grande
príncipe ouviu falar da terra
Ele enviou os
seus arautos para indagar de sua senhora
Mas Lilitu
alimentou seus leões com os arautos
O grande
príncipe enviou um exército
Mas os
Marilitus destruíram o exército dele
Finalmente o
grande príncipe foi
Quando ele viu
os pomares lindos
Quando ele viu
os Marilitus de seis braços
O grande
príncipe soube que a senhora era Lilitu
Temeroso
disfarçou-se de mulher
O grande
príncipe foi ao templo de Lilitu
O seu disfarce
enganou as pessoas
Mas os leões
conheciam o seu cheiro
Os dois leões
advertiram Lilitu
E ela preparou
uma armadilha
Lilitu chamou
trinta e seis homens jovens
Encheu uma
sala com trinta e seis travessas prateadas
Ordenou a
morte de trinta e seis animais
E quando
estava pronta
Convidou as
pessoas ao banquete
Pessoas vieram
de toda a terra
O grande
príncipe também veio
O grande
príncipe chegou disfarçado
Mas Lilitu
conheceu-o
E deu-lhe as
boas-vindas como um convidado honrado
O grande
príncipe aceitou a hospitalidade dela
Sentou-se
diante de todas as pessoas
Os trinta e
seis homens jovens foram chamados
«Por favor
escolha um homem», Lilitu ordenou
Não querendo
ser rude o grande príncipe escolheu um
Lilitu pediu
ao grande príncipe para sentar ao lado do jovem
As travessas
prateadas foram trazidas
As pessoas
festejaram na carne dos trinta e seis animais
Grandes
presentes foram trazidos
Lilitu deu-os
ao grande príncipe
Confundido o
grande príncipe aceitou
Então o
banquete acabou finalmente
Curioso, o
grande príncipe questionou Lilitu
«Você dá
sempre tais grandiosos presentes a estranhos?»
«Só no seu
casamento», Lilitu respondeu
Ao perceber o
que tinha acontecido o grande príncipe ficou irado
Tirou o
disfarce
Empunhou a
espada e o punhal
«Por que me
fez casar com este homem?» perguntou
«Para que
nunca possa casar-se comigo», respondeu Lilitu
Enfurecido o
grande príncipe atacou Lilitu
Os dois
lutaram incansavelmente pois Lilitu era muito forte
Sempre que o
príncipe se tornava mais ousado
Lilitu
transformava-se num pássaro
O grande
príncipe caiu ao chão e chorou em desespero
O grande
príncipe professou o seu amor por ela
Prometeu que
nunca a deixaria
Preparou-se
para cortar a sua própria garganta
Finalmente
Lilitu cansou-se deste jogo
Sentia piedade
pelo grande príncipe
«Eu
conceder-lhe-ei um beijo», declarou Lilitu
Desesperado o
grande príncipe aceitou
E no momento
em que o beijo foi dado
O corpo dele
inundou-se de vida e depois morte
Tão grande foi
o prazer de um beijo que ele morreu
Lilitu chorou
o grande príncipe
Mas o grande
príncipe permaneceu morto
Lilitu
entristecida soube que nunca poderia amar
Nenhum homem
mortal poderia provar o beijo dela e viver
As suas
lágrimas trouxeram vida, mas o seu beijo trouxe morte.»
Vim pôr a leitura em dia.
ResponderEliminarVou para o seguinte.
Está melhor?
Abraço e saúde.