Dezanove horas.
Bateram à porta. Desta vez abri com confiança e
não estranhei vê‑la ali. Ela olhou para mim e sorriu.
– Trouxe vinho – disse, num tom jovial. –
Convidas-me para jantar?
– Bem, se trouxeste o vinho…
Fomos até à cozinha. Ela caminhou com a mesma
graça, com a mesma leveza.
– Espero que sejas um bom cozinheiro… – disse-me.
– Tenho um microondas – respondi.
– Tens noção de que isso não é muito
impressionante?
– Tens noção de que não estou a tentar
impressionar-te?
– Será?
– É.
– Acredito em ti.
Tirei a comida das formas de alumínio para os
pratos que pus a aquecer no microondas enquanto abria a garrafa para deixar o
vinho respirar.
– Tenho muitas perguntas para te fazer –
disse-lhe.
– Calculo que sim, mas primeiro jantamos. Vais ver
que o vinho até ajuda e pelo menos não te dá a dor de cabeça que aquele whisky te deu.
Olhei para ela. Apetecia-me perguntar-lhe como é
que ela sabia disso, mas resolvi seguir a sua indicação e deixar as perguntas
para depois do jantar.
Jantámos cedo e fomos falando de trivialidades.
Depois saímos para o terraço com os copos de vinho na mão e sentámo-nos apreciando
o princípio da noite, que estava amena.
Apetecia-me bombardeá-la com perguntas, mas
contive-me. Foi ela que iniciou as hostilidades.
– Então? – Começou. – Encontraste-me?
– Depende. – Fiz uma pausa para organizar as
ideias. – Sabes, toda a razão me diz que é impossível aquilo que me contaste,
logo não posso acreditar que sejas quem afirmas ser.
– E no entanto, bem lá no fundo, subsiste a dúvida
que te deixa curioso, não é? E se eu for mesmo? Como é que posso saber que o whisky te deixou com dor de cabeça, como
é que podia saber no meio de centenas de livros onde estava aquele, especificamente,
como é que sabia que tinhas escrito meia dúzia de linhas depois de me veres na
praia? Aliás, como é que eu sabia que me tinhas visto? Isto tudo são perguntas
para as quais não tens resposta e que te deixam a dúvida. Mas eu não estou aqui
para te dar certezas. Acreditas no que quiseres acreditar.
Assenti.
– Também tens que perceber que, caso sejas quem
afirmas, nada do que li acerca de ti é muito elogioso.
Ela riu.
– Claro que não é. Não se pode dizer que tenha uma
personalidade muito fácil…
– Personalidade difícil até compreendo, mas
súcubo? Demónio da noite? É um pouquinho mais à frente…
– Sabes, quando olha, hoje em dia, para uma mulher
totalmente independente e livre ainda o fazes com desconfiança. Agora transpõe
isso para há sete mil anos atrás em sociedades totalmente controladas por
homens e diz-me o que achas que seria normal acontecer. E olha bem para mim.
Pareço-te alguém que anda a roubar os espíritos de criancinhas na noite?
– Dizem que o diabo é charmoso.
– Seria, se existisse.
– E não existe?
– Não.
– Mas Deus existe.
– Claro que sim.
– E foi ele que te criou…
– De certa forma, sim.
– De certa forma? Disseste-me que acordaste e
viste Yahvé, e disseste que era um pai para ti…
– Era, não. É. Mas não te disse que ele era Deus.
Nem sequer ele alguma vez me disse que era Deus. Ele disse-me que era o criador.
– Então quem é Deus?
– Isso é uma pergunta para a qual ninguém tem uma
resposta. Nem mesmo Yahvé. Que é para ti Deus?
– Para mim? Bem, Deus é uma força eterna,
omnipresente, omnipotente…
– Pois, mas isso não diz grande coisa acerca
d’Ele, pois não? Não revela propriamente traços de personalidade.
– É verdade.
– Então digo-te isto. Deus é tudo. E nessa
capacidade também tu e eu e o ar que nos rodeia e o mais e os micróbios e os
átomos e as estrelas e o universo inteiro são Deus. Quer isto dizer que, à partida,
és divino por natureza e por inerência. Não precisas de fazer nada para o ser.
Simplesmente és, tal como Deus simplesmente é.
– Então quem é Yahvé?
– É o criador.
– E o criador não é Deus?
– Não. Ser chamado de Deus não implica que O seja.
Fiquei um bocado a remoer na lógica disto tudo.
Sem dúvida que havia coerência no que ela me dizia e uma certeza dada pelas
suas respostas rápidas que não deixava de me surpreender. Ela não precisava de
pensar para me responder, simplesmente respondia com a certeza que só é dada
pelo conhecimento.
– Ainda tens a Bíblia
à mão? Vai buscar. Quero mostrar-te uma coisa.
Fui e voltei rapidamente. Ela pegou-lhe e abriu-a
precisamente na página que procurava.
– Lê o versículo 22.
O livro aberto era novamente o «Génesis», e o
versículo indicado rezava:
«Então disse o SENHOR Deus: Eis que o homem é como
um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome
também da árvore da vida, e coma e viva eternamente, …»
Olhei-a.
– Agora lê o versículo 11.
Li.
«E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu?
Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?»
Ela olhou-me.
– O que é que achas de estranho?
– Bem, se queres que te seja franco, nada.
– Então olha e lê. Se Deus no versículo 11 fala na
primeira pessoa, porque é que em 20 fala no plural? A não ser que fale com
alguém igual a ele, não é? «Eis que o homem é como um de nós.»
– Queres dizer que há mais do que um Deus?
– Não, quero dizer que há mais do que um criador.
E este também já está.
ResponderEliminarAbraço e saúde
...e já há mais um... Bom dia, Elvira :)
ResponderEliminar