Vinte e uma horas.
Se até aqui me sentia fascinado por ela, neste
momento o meu fascínio ia além dela, passava pela história que me contava. Já
não estava interessado em julgá-la verdadeira ou falsa, mas via que fazia
sentido. Já tinha lido várias vezes as passagens que ela me mostrava e, no
entanto, nunca tinha olhado para elas desta maneira e, de certa forma,
observando a frio, com distância, o que ela dizia encaixava perfeitamente no
texto.
– Tenho uma pergunta e um pedido para te fazer.
– Diz.
– Primeiro a pergunta. Em lado nenhum dos textos
que me apontaste apareces tu. Apontaste-me incongruências, mas não há aqui o
teu nome, não está aqui nenhuma Lilith. Já li por alto como chegaram à tua
existência aqui, mas gostava que me explicasses por tuas palavras.
– É justo. Tudo bem, eu conto. Em toda a Bíblia apenas aparecia uma referência ao
meu nome, no «Livro de Isaías», no capítulo 34, versículo 14. Mas escusas de
procurar aí, porque as traduções encarregaram-se de me fazer desaparecer.
Sabes, não me quero escusar a responder-te, nem o vou fazer, mas temos tempo e
eu estou aborrecida. E se fôssemos a um lado qualquer e continuássemos a
conversa mais logo?
Fiquei despontado e não fingi o contrário. Ela
riu.
– Não faças essa carinha de amuado – disse. –
Temos todo o tempo do mundo. E quem sabe até acontece alguma coisa de interessante…
Resignei-me.
– E queres ir onde?
– A um sítio movimentado, com gente. Quero um
sítio com gente bonita, por mais artificial que seja. Vamos a Lisboa.
– Mas isso é a uma hora e tal daqui…
– Eu sei, mas tu por acaso tens mais alguma coisa
planeada para esta noite?
E fomos.
A viagem foi rápida; no que pareceu um instante, estávamos
em Lisboa. Todas as minhas tentativas de reatar a conversa foram infrutíferas.
Ela desviava sempre a conversa para outro lado, ou interrompia-me com uma
música qualquer que estava a passar na rádio na altura.
Na ponte sobre o Tejo falámos acerca de onde
iríamos e acabámos por nos decidir, por escolha e quase imposição dela, por um
dos sítios mais badalados da noite lisboeta.
Não me agradavam muito estes ambientes e não via
muito bem o propósito de estarmos ali. Continuava com os meus compromissos editoriais
em mente e pensava no tempo que perdia. Enquanto remoía tudo isto em silêncio,
ela voltou-se para mim e disse:
– Relaxa. Aprecia. Não podes escrever sem viver,
senão vais escrever acerca de quê? Tens tempo, acredita.
Escolhemos uma mesa, sentámo-nos, pedimos bebidas
e em seguida ela levantou-se.
– Apetece-me dançar – disse, e dirigiu-se à pista
de dança, sem esperar por mim.
Deixei-me ficar sentado. O ritmo da música de
dança não combina com os meus gostos pessoais. Fiquei a vê-la no meio da multidão
que se apinhava e que abandonava os corpos à batida forte. Fui bebendo e
apreciando o espaço e as pessoas, o glamour,
as mulheres e os homens a tentarem parecer mais do que são na realidade, os
mini-jogos de sedução, as trocas de olhares, a exibição. Estava farto destes
jogos há tanto tempo! Já não tinha paciência para tentar impingir-me a alguém.
Ela voltou ao fim de uma meia hora e sentou-se.
Pegou de novo na sua bebida.
– Então? Divertido?
– Nem por isso…
– Mas podias estar, se quisesses.
– Talvez…
– Bastava quereres.
– Porque é que achas isso?
– Queres mesmo que te diga?
– Quero.
– À tua direita, junto ao bar, está uma mesa com
três mulheres. Nessa mesa está uma morena. Não olhes de repente. Olha, mas
disfarçadamente. Vês a morena?
– Vejo.
– Estás a intrigá-la e ela quase não tirou os
olhos de ti desde que chegámos.
– E como é que sabes isso, se quase desde que
chegámos tens estado lá em baixo?
– Pura e simplesmente, sei. E quando eu te disser
vais olhar directamente para ela e ela vai olhar directamente para ti e vai
sorrir, como se fosse um convite.
– Deixa-te de coisas…
– Faz o que eu te digo. – Aguardou um momento. –
Olha agora.
Olhei. A morena olhou para mim e cruzámos o olhar.
Ela sorriu de uma maneira que era um convite explícito, quase inequívoco.
– Agora olha para trás de mim, para a pista de
dança. Vês a loura platinada com um vestido branco curto? Tem estado a observar-te
também. Vais olhar para ela por um bocadinho de tempo e vais ver o que
acontece.
Fiz o que ela me disse. A loura estava lá tal como
ela me disse, e quando fixei o meu olhar nela, ela olhou-me, sorriu, e dançou
de uma forma algo mais sensual, como se fosse um convite a que me juntasse a
ela.
– Vês? Só não estás divertido porque não queres.
Há mais por aí, mas depois podias começar a ficar convencido…
– Deixa-te de coisas – disse-lhe. – Coincidências…
– Sabes, no mundo não há coincidências. E eu
trouxe-te aqui por um motivo.
– Que é…?
– Posso dizer-te mil coisas para te descrever quem
sou, mas às vezes é mais simples mostrar-te. E sei que se o mostrar vais prestar
mais atenção ao que tenho para te dizer. A questão é: estás curioso ao ponto de
quereres que te mostre?
A verdade é que ainda que não estivesse, neste
momento a minha curiosidade estava ao rubro.
– Estou.
– Pois, muito bem, então. Estão aqui centenas de
pessoas. Podia dizer-te para escolheres qualquer uma. Mas para tornar tudo ainda
mais difícil vou-te dizer para escolheres uma mulher. Mas atenção, quero que
escolhas uma que notoriamente goste de homens, que esteja com um e a ser
admirada por mais uns quantos. Escolhe bem e com cuidado.
Deixei o meu olhar vaguear pela sala em busca de
alguém que se enquadrasse no perfil que ela tinha pedido. Havia algumas, mas
uma em particular chamou-me a atenção. Uma ruiva magnífica, linda, voluptuosa,
abraçada a um homem daqueles que chamam mesmo a atenção, cheio de classe e
charme. Podia-se ver na expressão dela que estava completamente caída por ele.
Mas isso não impedia que todos os homens que estavam nas mesas em volta dessem
tudo para estar na pele dele. Era realmente um magnífico exemplar do género
feminino.
– Aquela – limitei-me a dizer-lhe.
Ela olhou.
– Boa escolha.
Dito isto, levantou-se e o tempo pareceu abrandar
e era como se tudo de repente começasse a andar em câmara lenta. Nesse instante,
toda a sala notou a sua presença. Podia ver nos olhos de quase toda a gente
algum espanto, admiração e mesmo desejo. Todos os jogos de sedução pararam.
Todos os olhares a acompanharam. Com aquele andar que eu já não estranhava,
cheio de certeza, de leveza, com uma graça felina, atravessou a sala com o
olhar fixo na mulher que eu tinha indicado. Esta estava ainda abraçada ao
homem, mas o seu olhar estava cativo naquela mulher que quase flutuava na sua
direcção, quase como se estivesse encantada.
Lilith chegou-se ao pé dela, bem perto, e parou.
Levantou o braço na direcção dela. Ela largou o homem com quem estava,
entregou-se nos braços de Lilith como se esta fosse alguém a quem sempre
procurara. Abraçaram-se. As suas bocas colaram-se num beijo e o tempo pareceu
atrasar ainda mais. Aquele beijo pareceu durar uma eternidade e via o abandono
com que a mulher se entregou. Quando o beijo acabou, Lilith largou-a, virou-lhe
as costas e começou a afastar-se. A mulher fez uma expressão de dor, como se a
tivessem ferido de alguma maneira.
– NÃÃÃÃÃO! – Gritou com um tom de desespero.
Lilith voltou-se para ela novamente e limitou-se a
olhá-la. A mulher caiu de joelhos no chão e as lágrimas começaram a escorrer-lhe
pelo rosto, como se lhe tivessem arrancado um pedaço. Como se naquele momento o
seu coração se tivesse partido. Como se tivesse encontrado o amor da sua vida e
o tivesse perdido.
O homem que acompanhava a mulher estava atónito a
olhar para ela, sem saber o que fazer.
Lilith afastou-se no mesmo passo seguro, de volta
na minha direcção.
– Vamos. Já fizemos tudo o que tínhamos de fazer
aqui – disse-me quando chegou ao pé de mim. Segui-a, completamente estupefacto
pelo que tinha presenciado.
O tempo voltou ao normal.
Estive outra vez aflita dos olhos e por isso não tenho vindo. Já li este episódio. Vou tentar ler os outros mas não sei até onde consigo ir.
ResponderEliminarAinda não me mandou a sua morada. O meu email é : elviracarvalho328@gmail.com
Abraço e saúde
Agora já mandei :) Abraço :)
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