sexta-feira, 1 de março de 2024

Chuva - LV

 

Mantive-me à margem tanto quanto foi possível, e vi de longe a evolução.

A verdade é que não queria interferir. Queria deixar que a mensagem fosse absorvida e que os destinatários a tratassem como achavam que deviam tratar.

Foram dois meses quase sem chatices, sabes. No começo ainda vinham ter comigo para tentar saber as minhas opiniões acerca do que ia passando, mas conforme foram vendo que eu me desmarcava e não estava interessado em comentar, foram deixando de me procurar.

“Deves estar orgulhoso…” dizia o Fernandes.

“Porquê?”

“Porque o que está a acontecer é por tua causa. Já pensaste nisso? Aconteça o que acontecer o teu nome vai ficar marcado nos anais da história.”

“E achas que isso me enche de orgulho? Eu nem sequer sei o porquê…”

Ele ria-se.

“É porque tinha de ser, Gabriel. Não mates a cabeça com isso.”

Não matava. Aliás, já não matava.

Claro que houve coisas curiosas, como por exemplo aparecerem em casa do Fernandes com uma ordem judicial para apreender material informático por suspeita de uso de software ilegal.

Ainda me lembro da cara do Fernandes para o polícia.

“Então, vêm apreender o computador que foi roubado durante o assalto? Ou encontraram-no e vêm devolvê-lo?”

Fora estes pequenos percalços não se passou grande coisa. Entretanto, a investigação que os Estados Unidos começaram a fazer à indústria farmacêutica começou a dar frutos. Começaram a descobrir investigações que se mantinham ocultas, mas pior ainda, investigações ilegais onde eram usadas populações de países do terceiro mundo, sobretudo de África, como cobaias humanas. Os responsáveis começaram a ser trazidos à justiça. Outros países encetaram as suas próprias investigações. Ainda duram até hoje.

Eu sei que não sou ninguém para dizer isto, mas já viste a falta de…

…humanidade?

Alguns justificaram-se dizendo que os fins justificam os meios, mas a verdade é que raramente isso acontece. E quando os fins são sempre e apenas o lucro desmedido, então não há justificação possível.

Mas, dizia-te, foram dois meses.

Ao longo desse tempo não houve qualquer mensagem. Claro que choveu na mesma, mas nunca houve nada discernível.

Lembras-te do dia? Parecia que os céus se tinham aberto e caiu um dilúvio, com muito poucas intermitências. Cada vez que parava de chover eu verificava se havia alguma mensagem. Acho que de alguma forma já esperava algo. E o que eu esperava acabou por chegar.

 

Em sete dias as casas do poder que foram feitas de palha ruirão sob o seu próprio peso. A palavra é revolução.

 

Olhei, atónito, para a mensagem.

Telefonei de imediato ao Fernandes.

“Tenho uma mensagem nova.”

“E então?”

“E então, acho que temos de nos preparar. Achas que consegues sacar tudo o que tens no banco ainda hoje?”

“Pá, talvez, mas porquê?”

Disse-lhe a mensagem. Ele ficou em silêncio por algum tempo.

“Até tenho medo de perguntar, mas o que é que isso quer dizer?”

“Acho que o mundo vai virar do avesso.”

“Porquê?”

“As casas do poder construídas em palha. Fernandes, acho que isto anuncia uma revolução global.”

“Gabriel, ouve-me, tu não brinques. Em sete dias?”

“Aparentemente.”

“Mas como?”

“Não sei.”

“Gabriel, sabes o que é que vai acontecer quando divulgares a mensagem?”

“Faço uma ideia. Caos.”

“Absoluto, Gabriel. Esta é uma mensagem que tens de pensar se deves passar.”

“Tens razão.”

Sabes, o resto do dia foi passado nisto, dividido entre o passar ou não a mensagem. Tentei ver todos os ângulos possíveis das duas hipóteses. Mas havia uma coisa era verdade, se não fosse para passar qual era o objectivo.

Revi tudo e cheguei a conclusão de que até agora todas as mensagens tinham trazido benefícios. Esta não seria diferente, com toda a certeza.

À tarde, quando ele me veio buscar foi a primeira coisa que perguntou.

“Já sabes o que queres fazer?”

“Já. Ponderei muito, mas vou passar a mensagem. Foste ao banco?”

“Fui. Trago aqui uma mala com dinheiro vivo dentro do carro. Para te ser franco não me sinto nada confortável a andar com isto de um lado para o outro.”

“Mas fizeste bem. Vais ver que esse dinheiro vivo vai ser algo que vai dar muito jeito.”

“Então e como é que vais passar a mensagem? Vais dar a cara, como da última vez?”

“Não. Acho que não. Que é que tu achas?”

“Acho que é uma decisão tua.”

“Então acho que vou telefonar ao Rafael e dar-lhe a mensagem.”

“Tens noção de que se a mensagem for ainda hoje divulgada, amanhã o mundo já vai estar um pandemónio?”

“Tenho. Tanta que meti duas semanas de férias. Não quero ter de sair de um cantinho.”

“Não acredito que consigas, mas não custa tentar…”

“Pois, não custa tentar.”

Ainda íamos no caminho para Sassoeiros quando liguei ao Rafael.

“Estou?”

“Rafael? É o Gabriel.”

Como sempre que lhe ligava algo acontecia, o tom de voz dele foi normal e a pergunta nada descabida.

“Uma nova mensagem?”

“Sim. Uma nova mensagem.”

“Tão dúbia como a outra?”

“Não. Nada dúbia. Acho que nem tenho de a explicar.”

“Então?”

Disse-lhe a mensagem. Silêncio do outro lado.

“Gabriel, isso é mesmo muito grave.”

“Eu sei.”

“Tem noção das consequências?”

“Tenho.”

“Então quero pedir-lhe uma coisa. Posso adiar a divulgação? Só até por volta das nove da manhã…”

Percebi-o. Tal como tinha dito ao Fernandes, ele queria salvaguardar-se.

“Acho que não fará grande mal. Mas não mais do que isso. Afinal, pelo que a mensagem diz, o tempo é bastante curto.”

“Obrigado, Gabriel. Por tudo. E seja o que Deus quiser…”

Sim. O que Deus ou fosse quem fosse quisesse.

Acabamos por não ir directo para casa. Passamos por um supermercado e açambarcamos a secção de enlatados. Depois tratamos de nos enfiar em casa e esperamos.

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