Uma dor aguda parecia percorrer o
corpo de Andreia, desde a virilha até ao topo da sua cabeça,
como
se
algo
de
afiado estivesse
espetado a atravessar o seu tendão enquanto se esforçava por fazer
alongamentos com a perna elevada sobre a barra e observava a maneira fácil
como
Céu
fazia
o
mesmo
à
sua
frente.
Todos os dias, desde há um
mês, a esta hora, por volta das quatro da tarde, Andreia se via submetida a um
suplício de duas horas. Pensou, ao princípio que melhoraria em pouco tempo,
assim que o seu corpo se habituasse a fazer algo que nunca lhe tinha sido
solicitado, mas esse seu corpo continuava a rebelar-se determinantemente contra
o exercício provocando-lhe dores musculares que aliviava em banhos de imersão
com sais em água quase a ferver.
Apesar de lidarem uma com a
outra várias horas por dia, não haviam desenvolvido uma amizade e havia pouca
intimidade entre ambas, isto apesar de, quase todos os dias, Andreia ter
direito um espectáculo privado de Strip enquanto fazia os seus exercícios. Céu,
quando ensaiava e executava as suas rotinas, fazia-as integralmente, vestindo
as roupas que pretendia usar e ensaiando a maneira de as despir de forma fluída
como parte dos movimentos acrobáticos, sendo que, quando aperfeiçoava o número,
a roupa parecia sair do corpo dela como que por vontade própria. Ver a Céu a
dançar fazia elevar a arte algo que é visto, por vezes, de maneira tão vulgar.
Enquanto naquele lugar era Céu
quem decidia, Andreia ficava feliz quando o exercício acabava e voltava às suas
tarefas, tornando-se a Céu sua subalterna. Havia algum pequeno prazer sádico,
uma ligeira vingança, quando atribuía a Céu alguma tarefa que estaria além dos
seus conhecimentos. No entanto esta nunca se intimidara, mostrara-se sempre
curiosa e, quando não sabia algo não se coibia de perguntar, completando
sempre, com maior ou menor dificuldade, as tarefas que lhe eram atribuídas.
Andreia sentia-se pequena diante dela, e agia sempre de forma tímida.
Já Céu encarava esta timidez
de Andreia e a sua aparente relutância como alguma forma de leve repulsa a que
tanto estava habituada
por parte das pessoas que
sabiam o que ela fazia e dizia para si que isso já não a afectava, mas a
verdade é que esta sensação era sempre como um espinho espetado no calcanhar.
Não por vir da parte de Andreia, mas porque ao longo dos anos vinha de toda a
gente. Mesmo Diogo, o dono do ginásio onde ela costumava treinar e amigo
colorido de longa data, tinha por vezes sombras de recriminação nos olhos
quando estava com ela. Talvez tenha sido esta sensação que a foi afastando das
pessoas e a fez perder a fé.
Não lhe passava, claro, pela
cabeça que Andreia a pudesse admirar. Se bem que até a própria Andreia tivesse
dificuldade em admiti-lo, se fosse confrontada com isso. Assim sendo, Céu
erguia para com Andreia a muralha que erguera para o resto do mundo.
Esta frieza de Céu fazia com
que ela fosse exigente para com Andreia. Passara um mês a puxar por ela no
ginásio, fazendo com que o seu corpo ficasse, a pouco e pouco, mais flexível e
tonificado, e embora esta se continuasse a queixar, estava claramente mais
resistente.
Céu fez sinal a Andreia para
que esta acabasse com os alongamentos, algo que esta agradeceu interiormente.
- Vamos
experimentar uma coisa diferente. – Anunciou Céu. Andreia deixou-se ficar a
olhar para ela num silêncio interrogativo. Céu pegou no comando, carregou num
botão e, pelo sistema de som, apareceu no ar a mais cliché de todas as músicas
usadas para números de Strip. A voz rouca de Joe Cocker anunciava calmamente
quais as peças de roupa que deviam ser tiradas, excepção, claro, ao chapéu.
- Vais
dançar para mim.
- Eu?!
- Sim.
- Mas…
- O
César paga-me para te ensinar. Mas tu ainda não tocaste no varão… Não que eu
achasse, até agora, que te conseguirias segurar sem cair. Mas agora já não
estás em tão mau estado, por isso… – e apontou para um dos varões, sentando-se
em seguida no colchão de ginástica, no chão e ficando à espera.
- Eu,…
– gaguejou Andreia, completamente corada – …eu não tenho jeito…
Céu deixou-se ficar a olhar
para ela de forma carregada, não lhe respondendo e fazendo-a sentir que não
merecia resposta. Sentiu-se como se tivesse ficado sem ossos nas pernas, tal o
esforço que lhe parecia necessário apenas para se manter de pé. Numa situação
normal já seria difícil fazer algo do género fosse frente a quem fosse, mas
aqui, tendo a observá-la alguém que, estava agora convencida, encarava o que
fazia com seriedade e como quase uma arte, mais difícil se tornava.
Respirou fundo, tentou
lembrar-se dos movimentos dela, os mais simples, e dedicou-se, de forma rude, a
fazer uma imitação pouco convincente. A música, para seu alívio, durou pouco
tempo e os gritos do Joe e do seu coro extinguiram-se num “fade out” lento, e
ela parou, olhou para a Céu completamente corada, envergonhada da figura que
acabara de fazer. Céu manteve o olhar colado nela em silêncio por um longo
tempo. Por fim, quebrou-o:
- Existem
três motivos para se fazer a dança do varão. O mais óbvio é o dinheiro. E se se
quer ganhar algum dinheiro tem de se investir tempo a treinar, para ir além do
óbvio. Mesmo alguns dos movimentos mais usados são difíceis de executar se não
houver um mínimo de prática. Depois, outro dos motivos é algo exibicionista, o
facto de conseguirmos ser o foco das atenções de alguém ainda que por breves
instantes. Mas há uma falsa satisfação nisto, uma vez que sabemos à partida que
quem vai assistir quer ver-nos a exibirmo-nos e paga para isso. Assim sendo,
ser o foco da atenção de alguém, nestas circunstâncias, acaba por não ter nada
de extraordinário. Mas, tu já te sentiste alguma vez desejada e o foco único de
alguém, sem ser num momento absolutamente íntimo?
Andreia tentou lembrar-se, mas
nunca se sentiu assim tão notada. Aliás, durante a sua vida sempre fizera todos
os possíveis por não o ser. Tinha-se feito sempre desvanecer no cinzento e
mesmo com os poucos namorados que tivera, alguns, a maioria, namoros
completamente inconsequentes, tendo apenas um ou outro chegado mais longe,
nunca sentira, a não ser em momentos mais ardentes, que fosse o foco único da
atenção de alguém. Passava sempre despercebida.
- Não.
– Confessou.
Isso percebe-se. De certa
forma não deixa de ser curioso… Andreia olhou para Céu, curiosa com aquelas
palavras que pareciam ocultar um pensamento qualquer. Acabou por não conter a
curiosidade.
- Porquê?
- Porque
tu até és gira, e tens um corpo bem feito. Nota-se mais agora, depois de um mês
de exercício, mas não estavas nada mal. Só estavas menos tonificada.
Andreia corou perante algo que
ela percebeu não serem elogios, mas sim meras constatações, o que dava àquelas
palavras um peso ainda maior. Achou que a sua melhor fuga seria para a frente.
- E
o terceiro motivo? Céu sorriu.
- O
terceiro motivo tem a ver com o gostarmos mesmo de o fazer, independentemente
dos outros dois. Não temos de ganhar dinheiro nem fazê-lo para mostrar a
alguém. Fazemo-lo, em primeiro lugar por nós, para nos desafiarmos,
precisamente porque é muito difícil, e quanto maior o grau de exigência, mais
difícil se torna. Vencermos o nosso corpo, desafiarmos a gravidade…
- E
é este o teu motivo?
- Não
descarto os outros dois, não me entendas mal. Gosto que vejam o meu trabalho e
gosto de me sentir apreciada. Mas sei que não o sou meramente pelo meu corpo
mas sim por um trabalho artístico. É isso que acaba por marcar a diferença e é
por isso que pagam para me ver, e é por isso que me querem ter.
Andreia olhava para ela
completamente sem expressão, atónita.
- Nunca
olhaste para um homem que te chamasse a atenção e desejaste secretamente que
ele olhasse para ti e perdesse o seu olhar no teu? Que te desejasse, nem que
por apenas um momento, e dares-lhe a sentir o teu desejo?
Andreia não conseguia
lembrar-se de nenhuma situação em concreto, nenhuma cara, mas sentiu presente
essa sensação associada a alguns lugares. Lembrou-se, por exemplo, de um bar
onde, na sua primeira vez lá, cruzou o olhar com um estranho de quem já não
conseguia ter presente as feições, e de como lá voltou algumas vezes apenas na
esperança de eventualmente se voltar a cruzar com ele, o que nunca aconteceu,
embora soubesse no seu íntimo que, ainda que se tivessem cruzado, provavelmente
nunca se permitiria que algo acontecesse.
- Então
imagina que tens cem homens a olhar para ti e, embora não os desejes,
deseja-los ali, e tens de os cativar, mas ao mesmo tempo sentes o desejo deles
por ti.
Andreia não o conseguia
imaginar.
- Sentes
poder, ali, naquele instante e sabes que alguns deles fariam tudo para serem o
foco único da tua atenção. E acredita quando te digo que uma mulher não precisa
de ser absolutamente linda e escultural para conseguir provocar esta sensação.
Basta-lhe saber que o pode fazer e não ir pelo caminho mais fácil.
- O
caminho mais fácil?
- Sim.
Ser vulgar.
- Tu
não és vulgar. – Constatou Andreia.
Céu olhou-a de forma séria,
como se quisesse assegurar-se da maneira como as palavras foram ditas.
- Se
o fosse, não estaria aqui, acho eu. Andreia assentiu, concordando.
- Tu,
neste momento, em relação ao varão estás no motivo número um. – Andreia ia para
argumentar, mas Céu continuou, impedindo-a de falar – Estás aqui porque o teu
patrão te exige que aqui estejas, ou seja, estás aqui porque ele te paga. Vamos
ver se conseguimos passar para o terceiro motivo e começas a gostar de dançar
no varão. E, quem sabe, daqui a algum tempo o segundo motivo até te pode
parecer apelativo… – concluiu com um sorriso malandro.
Andreia sorriu também.
Duvidava, no seu íntimo, que isso alguma vez acontecesse.
- Vou
fazer uma rotina muito simples, ao som desta música, e depois de te mostrar
vou-te ensinar os movimentos e vamos fazer devagar. Agora senta-te e olha. –
Disse enquanto se levantava, carregando num botão do comando da aparelhagem que
fez a música jorrar das colunas e lançando-o em seguida para cima do colchão
enquanto Andreia se sentava.
Céu começou a dançar e Andreia
tentava tomar atenção a todos os movimentos e detalhes sabendo que iria ter de
tentar fazê-los em seguida. Mas deu por si presa nos movimentos graciosos de
Céu e na maneira, fingida ou não, parte do número ou não, como esta lhe lançava
o olhar e teve a sensação de que ela, naquele instante, se exibia para si,
apenas para si, e sentiu-se privilegiada.
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