Estava em frente ao espelho
observando cada pormenor do seu reflexo, desde os seus sapatos Gucci Elisabeth
open toe, as suas calças de homem que acompanhavam de forma justa o contorno da sua anca e coxa, mas que
caiam em seguida a direito mais compridas um pouco que a perna por forma a
esconder parcialmente o sapato e criando a ilusão de que ela era ainda mais alta, sendo que, quando se mexia o tecido fino e solto tomava as suas formas criando
mais
fluidez
no
seu
movimento,
a camisa imaculadamente
branca, de homem também, mas justa às suas formas vincadamente femininas e realçando-lhe
o
peito,
a
maquilhagem
suave
que
apenas
conferia
alguma
suavidade
extra
à
sua
pele
e
cujas
sombras
realçavam
os
seus
traços
e
faziam
sobressair o carregado
batom rouge satin, bem como o intenso dos seus olhos, e se eles estavam
intensos hoje, o seu cabelo comprido apanhado e escondido por um chapéu
Fedora
da
Gucci
também,
e
verificou
que
estava
como
se
sentia,…
De
arrasar,
completamente!
E sentia-se bem por se
sentir assim.
Esta tarde, enquanto ensaiava
o número pediu a Andreia para parar, ver e lhe dar uma opinião no fim, uma vez
que não estava muito segura em relação a toda a rotina. Entregou-se ao fazê-la,
animada talvez pela sensibilidade que ainda sentia na pele, fruto da noite
anterior, com César. Quando acabou olhou para Andreia e a expressão dela dizia
tudo. Estava completamente afogueada e envergonhada. Não tinha dito nada em
relação a isso à pobre moça, fingiu misericordiosamente que ela não
transparecia tudo o que sentia e limitou-se a perguntar o que ela tinha achado,
ao que recebeu um tímido “gostei muito” articulado numa voz insegura e trémula.
Ainda assim não tinha a
certeza se faria este número hoje, mas a conversa com César, quando estavam
quase a sair do carro, ao chegarem, tirou-lhe qualquer dúvida que tivesse.
- Tu hoje, simplesmente,
usaste-me… – tinha-lhe dito em jeito de desabafo, como um pensamento solto que
lhe saiu pela boca antes de ser registado pela mente.
- Desculpa?
- No jantar… Simplesmente,
usaste-me. Ele sorriu.
- Sim, e é para isso que te
pago.
- Apenas um meio para atingir
um fim.
- Claro como qualquer outro
funcionário meu, independentemente do que ele faça. Eu uso o jardineiro e
pago-lhe para isso. Mas porquê essas perguntas? Julgava que isso estava
devidamente contratado…
- E está, não ligues. Apenas
lamento não me teres levado a jantar ali apenas porque sim…
César soltou uma gargalhada.
- Se eu estou a perceber bem,
estás em… “chick mode”… – disse César, meio atrapalhado à procura de uma
tradução.
- Modo de gaja. Sim, tens
razão, esquece.
Cesar não respondeu, mas
continuou com um sorriso divertido. Entretanto chegaram, ele estacionou o carro
abriu a porta para sair, mas hesitou, voltou-se para ela e disse:
- Lembras-te de aqui há uns
dias, antes de eu ir a L.A., da tasca pequenina onde jantamos aquele bacalhau
com batatas e talos de couve?
- Sim, claro…
- Bem, esse sou eu. O jantar de
hoje estava delicioso, mas o ambiente, o luxo… Não combinam com a minha
personalidade.
- E dizes isso dentro de um SLS
de trezentos mil euros. És um tipo coerente.
- Uma coisa é quem eu sou e
outra bem diferente é quem eu mostro ser.
Saiu do carro deu a volta,
abriu-lhe a porta, deu-lhe a mão para ela se apoiar enquanto saía e fê-la
seguir à sua frente enquanto fechava a porta e trancava o carro e, alcançando-a
logo em seguida, perguntou:
- Sinceramente e excluído o
vinho, que era mesmo excepcional, gostaste mais do jantar de hoje ou do
bacalhau com batatas?
A pergunta apanhou-a desprevenida.
- Gostei mesmo muito da
refeição de hoje…
- Eu também. Estava tudo
delicioso.
- Mas o bacalhau com batatas
foi tão mais… Nem sei…
- Simples?
- Sim, é isso. Igualmente
saboroso, acompanhado por aquelas azeitonas temperadas com orégãos e alho, e o
molhar o pão alentejano no azeite… Simples.
- A simplicidade nunca é
vulgar. Apenas não é ostentativa. Jamais te levaria a um restaurante daqueles
sem ser por tua vontade expressa. Acho-te melhor do que isso.
- Melhor?
- Sim. O suficiente melhor para
eu poder usufruir de ser eu na tua companhia.
Ela ficou muda.
Entretanto entraram, ele
levou-a ao camarim, sem mais uma palavra. La chegados, ele virou-se para ela e
disse:
- E agora vamos lá ser quem o
mundo acha que eu devo ser por mais um bocadinho… – e piscou-lhe o olho e saiu
porta fora deixando-a só com os seus pensamentos e com o eco das palavras dele
a reverberar, apercebendo-se gradualmente do enorme elogio que ele acabara de
lhe fazer, com uma elegância tal que quase nem dera por isso e sorriu. Decidiu
nesse momento que hoje ele, depois do que lhe fizera ontem, merecia sofrer e
ela fá-lo-ia sofrer com requintes de malvadez. Começou a preparar-se para fazer
a sua actuação.
E ei-la aqui e agora, pronta
para sair para o palco e com vontade de o fazer salivar e deixá-lo sedento.
Entrou no palco, caminhando de
forma absolutamente felina, sem sequer olhar para o público e quando chegou ao
centro, um local onde estava o único foco de luz do palco, parou, ergueu a
cabeça e o braço direito, envolvendo o corpo com braço esquerdo, e deixou-se
envolver pelo som do bandoneón de Piazolla deixando que o seu corpo se
abandonasse ao ritmo e à melodia de Oblivion. Sentia-se a arder por dentro e
passou toda a intensidade do que sentia para os seus movimentos, ora fluídos,
ora abruptos e rígidos, entrando em simbiose com a música.
Quando a sua actuação acabou,
junto com a música, sentia-se ofegante mas viva e olhou para o público,
procurando a única pessoa que lhe interessava, viu-o, sério como sempre
costumava estar, mas desta vez com uma expressão no olhar que ela ainda não lhe
tinha visto. Ele levantou o copo que tinha na mão e fez-lhe um suave aceno da
cabeça ao mesmo tempo que os seus lábios se redesenhavam num sorriso
enigmático, mas que lhe dizia tanta coisa…
Ela sorriu também e devolveu o
aceno. Depois saiu do palco com a mesma graça felina com que tinha entrado
enquanto pensava para si “Touché, Mr. César”.
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