quarta-feira, 27 de março de 2024

Conscientização - XXV

 

 

Estava em frente ao espelho observando cada pormenor do seu reflexo, desde os seus sapatos Gucci Elisabeth open toe, as suas calças de homem que acompanhavam de forma justa o contorno da sua anca e coxa, mas que caiam em seguida a direito mais compridas um pouco que a perna por forma a esconder parcialmente o sapato e criando a ilusão de que ela era ainda mais alta, sendo que, quando se mexia o tecido fino e solto tomava as suas formas criando mais fluidez no seu movimento, a camisa imaculadamente branca, de homem também, mas justa às suas formas vincadamente femininas e realçando-lhe o peito, a maquilhagem suave que apenas conferia alguma suavidade extra à sua pele e cujas sombras realçavam os seus traços e faziam sobressair o carregado batom rouge satin, bem como o intenso dos seus olhos, e se eles estavam intensos hoje, o seu cabelo comprido apanhado e escondido por um chapéu Fedora da Gucci também, e verificou que estava como se sentia,… De arrasar, completamente! E sentia-se bem por se sentir assim.

Esta tarde, enquanto ensaiava o número pediu a Andreia para parar, ver e lhe dar uma opinião no fim, uma vez que não estava muito segura em relação a toda a rotina. Entregou-se ao fazê-la, animada talvez pela sensibilidade que ainda sentia na pele, fruto da noite anterior, com César. Quando acabou olhou para Andreia e a expressão dela dizia tudo. Estava completamente afogueada e envergonhada. Não tinha dito nada em relação a isso à pobre moça, fingiu misericordiosamente que ela não transparecia tudo o que sentia e limitou-se a perguntar o que ela tinha achado, ao que recebeu um tímido “gostei muito” articulado numa voz insegura e trémula.

Ainda assim não tinha a certeza se faria este número hoje, mas a conversa com César, quando estavam quase a sair do carro, ao chegarem, tirou-lhe qualquer dúvida que tivesse.

- Tu hoje, simplesmente, usaste-me… – tinha-lhe dito em jeito de desabafo, como um pensamento solto que lhe saiu pela boca antes de ser registado pela mente.

- Desculpa?

- No jantar… Simplesmente, usaste-me. Ele sorriu.

- Sim, e é para isso que te pago.

- Apenas um meio para atingir um fim.

- Claro como qualquer outro funcionário meu, independentemente do que ele faça. Eu uso o jardineiro e pago-lhe para isso. Mas porquê essas perguntas? Julgava que isso estava devidamente contratado…

- E está, não ligues. Apenas lamento não me teres levado a jantar ali apenas porque sim…

César soltou uma gargalhada.

- Se eu estou a perceber bem, estás em… “chick mode”… – disse César, meio atrapalhado à procura de uma tradução.

- Modo de gaja. Sim, tens razão, esquece.

Cesar não respondeu, mas continuou com um sorriso divertido. Entretanto chegaram, ele estacionou o carro abriu a porta para sair, mas hesitou, voltou-se para ela e disse:

- Lembras-te de aqui há uns dias, antes de eu ir a L.A., da tasca pequenina onde jantamos aquele bacalhau com batatas e talos de couve?

- Sim, claro…

- Bem, esse sou eu. O jantar de hoje estava delicioso, mas o ambiente, o luxo… Não combinam com a minha personalidade.

- E dizes isso dentro de um SLS de trezentos mil euros. És um tipo coerente.

- Uma coisa é quem eu sou e outra bem diferente é quem eu mostro ser.

Saiu do carro deu a volta, abriu-lhe a porta, deu-lhe a mão para ela se apoiar enquanto saía e fê-la seguir à sua frente enquanto fechava a porta e trancava o carro e, alcançando-a logo em seguida, perguntou:

- Sinceramente e excluído o vinho, que era mesmo excepcional, gostaste mais do jantar de hoje ou do bacalhau com batatas?

A pergunta apanhou-a desprevenida.

- Gostei mesmo muito da refeição de hoje…

- Eu também. Estava tudo delicioso.

- Mas o bacalhau com batatas foi tão mais… Nem sei…

- Simples?

- Sim, é isso. Igualmente saboroso, acompanhado por aquelas azeitonas temperadas com orégãos e alho, e o molhar o pão alentejano no azeite… Simples.

- A simplicidade nunca é vulgar. Apenas não é ostentativa. Jamais te levaria a um restaurante daqueles sem ser por tua vontade expressa. Acho-te melhor do que isso.

- Melhor?

- Sim. O suficiente melhor para eu poder usufruir de ser eu na tua companhia.

Ela ficou muda.

Entretanto entraram, ele levou-a ao camarim, sem mais uma palavra. La chegados, ele virou-se para ela e disse:

- E agora vamos lá ser quem o mundo acha que eu devo ser por mais um bocadinho… – e piscou-lhe o olho e saiu porta fora deixando-a só com os seus pensamentos e com o eco das palavras dele a reverberar, apercebendo-se gradualmente do enorme elogio que ele acabara de lhe fazer, com uma elegância tal que quase nem dera por isso e sorriu. Decidiu nesse momento que hoje ele, depois do que lhe fizera ontem, merecia sofrer e ela fá-lo-ia sofrer com requintes de malvadez. Começou a preparar-se para fazer a sua actuação.

E ei-la aqui e agora, pronta para sair para o palco e com vontade de o fazer salivar e deixá-lo sedento.

Entrou no palco, caminhando de forma absolutamente felina, sem sequer olhar para o público e quando chegou ao centro, um local onde estava o único foco de luz do palco, parou, ergueu a cabeça e o braço direito, envolvendo o corpo com braço esquerdo, e deixou-se envolver pelo som do bandoneón de Piazolla deixando que o seu corpo se abandonasse ao ritmo e à melodia de Oblivion. Sentia-se a arder por dentro e passou toda a intensidade do que sentia para os seus movimentos, ora fluídos, ora abruptos e rígidos, entrando em simbiose com a música.

Quando a sua actuação acabou, junto com a música, sentia-se ofegante mas viva e olhou para o público, procurando a única pessoa que lhe interessava, viu-o, sério como sempre costumava estar, mas desta vez com uma expressão no olhar que ela ainda não lhe tinha visto. Ele levantou o copo que tinha na mão e fez-lhe um suave aceno da cabeça ao mesmo tempo que os seus lábios se redesenhavam num sorriso enigmático, mas que lhe dizia tanta coisa…

Ela sorriu também e devolveu o aceno. Depois saiu do palco com a mesma graça felina com que tinha entrado enquanto pensava para si “Touché, Mr. César”.

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