Sentou-se e resolveu, numa atitude inédita até então da sua parte, desistir de tudo!
Só depois parou para pensar no
que seria “tudo”. O que é que seria dele na realidade? O conjunto das suas
experiências, a tralha que tinha acumulado ao longo de anos e que não servia
para nada? As sensações? Os sentimentos? Os afectos?
Afinal de contas, quem seria
ele?
Não estaria ele a desistir de
algo que desconhecia? E que lógica tinha isso, sendo que aquilo que ele desconhecia
era, afinal, ele próprio?
Meditou por momentos.
Levantou-se e dirigiu-se à
varanda. Viu as árvores e as pessoas, pequeninas da altura a que as via. O
mundo era estranho, visto assim do alto, cheio de criaturas minúsculas que
seguem umas atrás das outras com um aparente propósito definido, numa rotina
estabelecida, dia após dia. Para que é que servia afinal a nossa suposta
inteligência? Seríamos algo mais do que uma quinta de formigas aos olhos de
Deus?
Sentia-se desconfortável, e
era a primeira vez na sua vida que sentia e pensava neste tipo de desconforto.
Não era um desconforto físico, mas antes um desconforto da alma.
Acendeu um cigarro, puxou uma
baforada lenta e deixou que os seus pensamentos vagueassem ao sabor dos
arabescos que o fumo que expelia dos pulmões fazia no ar.
Desde há algum tempo que
sentia este desconforto estranho mas só neste momento se apercebia finalmente
disso. Era como se o que via da sua varanda fosse uma sinfonia cheia de
melodias e contra melodias, mas, ligando tudo, houvesse apenas uma nota grave,
quase inaudível que fazia tudo ressoar. O desconforto era o de saber que essa
nota lá estava, mas não a conseguir distinguir, e no entanto senti-la por
debaixo de todos os ruídos desta cidade que se estendia até onde o horizonte
alcançava e que parecia querer continuar para além dele.
Esta súbita realização fez com
que a sua vontade inicial voltasse atrás. Não desistiria, pelo menos, não para
já. Havia algo para descobrir que poderia dar ainda um sentido ao que parecia
não o ter.
Deixou-se ficar ali enquanto
acabava o seu cigarro e o sol baixava no horizonte. Junto com a noite começava
a cair uma ligeira humidade. Ele gostava.
Permaneceu em silêncio durante
algum tempo enquanto o crepúsculo se extinguia e as luzes da cidade se iam
acendendo. Continuava a intuir a rotina, a ordem, os mesmos movimentos, que
eram, tais como os seus, repetidos dia após dia, sempre com a mesma cadência
imposta por algo de externo, sempre os mesmos ciclos, mês após mês, ano após
ano, era após era. Fechou os olhos e deixou que esses ritmos chegassem até si,
sentindo-se pulsar junto com eles. Mas continuava a haver algo que não
encaixava.
Estava aborrecido, e uma vez
que não ia desistir de nada, levantou-se, vestiu uma camisa imaculadamente
branca, enfiou-se dentro de um dos seus fatos feitos por medida, vestiu uma
capa, porque a noite se adivinhava fria e talvez chuvosa, e enfiou-se no
elevador até à cave onde o seu carro o esperava.
Meditou acerca do seu destino
no elevador. Ainda não se decidira para onde ir. Só sabia que o seu apartamento
lhe parecia claustrofóbico. Precisava de espaço, queria ir à procura daquilo
que intuía.
Estava perdido nos seus
pensamentos quando a porta do elevador se abriu. Assim que saiu sentiu o ar
fresco da cave. Dirigiu-se para o seu carro. Ainda se lembrava do gozo que lhe
dera comprá-lo, da sensação de quando lho entregaram à porta do concessionário.
Era um carro com personalidade, um Corvette Stingray de 1982, azul meia-noite
metalizado. Agora olhava para trás e via a futilidade de tudo aquilo.
Entrou no carro e tomou uma
decisão. Uma vez que não havia nada, pelo menos que ele conhecesse, que se
parecesse com um restaurante Português por aqui, resolveu ir ao Dan Tana's
comer qualquer coisa italiana. Pelo menos teria um sabor mediterrânico, que
tanta saudade lhe causava.
O ronronar quase surdo do
motor do carro, enquanto ele o deixava aquecer quase lhe causou um torpor de
adormecimento. Um leve toque no acelerador fez despertar a besta, e arrancou
calmamente, saindo da cave do prédio directamente para uma avenida cheia de
confusão. Era como se, de repente, tivesse entrado noutro mundo.
Seguiu calmamente até ao seu
destino por entre ruas repletas de aparências. Estava na capital mundial das
aparências. Nada aqui era perfeito, mas tudo tinha que parecê-lo. Cada mulher
tinha que aparentar ser perfeita, cada homem tinha que aparentar ser charmoso.
Mas era tudo tão artificial…
Chegou ao restaurante,
entregou a chave do carro ao arrumador junto com uma nota de vinte dólares, e entrou.
- Good evening Mr. Cesar. –
Dirigiu-se-lhe o chefe de sala do restaurante solicitamente como de costume.
- Good
evening, Tony. – Devolveu ele num inglês carregado com um sotaque britânico
impecável. Detestava a maneira descuidada como os americanos falavam, sem
estilo e sem requinte.
- Vai
desejar a sua mesa do costume?
- Sim,
Tony, por favor.
- Com
certeza Mr. Cesar. Siga-me, por favor.
Entregou a sua capa a um outro
empregado e entrou no salão, seguindo o chefe de sala. Foi levado até uma mesa
de canto onde gostava de se sentar e de onde conseguia ver quase todas as
mesas.
- Tony,
há algum vinho Português? – Perguntou ao mestre de sala.
- Não
tenho a certeza, Mr. Cesar. Mas mando-lhe já alguém em seguida.
- Obrigado
Tony.
O chefe de sala deixou-o e foi
imediatamente rodeado por dois outros empregados com a ementa e a carta de
vinhos. Dispensou a ementa, voltando-se para o empregado e pedindo de imediato:
- Quero
Spaghetti a la Bolognese e uma salada verde, por favor. – E virando-se para o
empregado com a carta de vinho repetiu a pergunta que antes tinha feito ao
chefe de sala – Têm algum vinho Português?
- Não
tenho de memória, mas posso averiguar.
- Agradeço
que o faça.
- Com
certeza. – E afastou-se rapidamente.
Ficou só na mesa e apreciou o
ambiente à sua volta. Tudo ali parecia querer fazer lembrar Itália, mas de uma
forma artificial e falsa, como tudo o resto naquela cidade. E o desconforto não
o abandonava.
- Mr.
Cesar…
- Sim?
– Respondeu ao empregado que o fez emergir dos seus pensamentos.
- Temos
um Cartuxa Tinto Reserva de 1995. – Disse o empregado mostrando-lhe a garrafa.
- Pode
ser.
O empregado abriu a garrafa e
afastou-se, deixando o vinho a respirar.
Algumas pessoas olhavam para
ele, a única pessoa sozinha numa mesa, com alguma curiosidade. Ele sabia-se
observado mas não dava atenção a isso. Limitava-se a olhar para a rua através
da janela e a tentar sacudir as sensações que o invadiam.
Ao fim de algum tempo o
empregado voltou e despejou um pouco de vinho no fundo do copo. Agarrou o copo
e aproximou-o do nariz, deixando-se invadir pelo aroma suave do vinho,
carregado de sugestões de frutos e aromas familiares, levando-o para um lugar
que ele tinha deixado há já tanto tempo… De repente parecia que todo o seu
ritmo se alterara e teve um vislumbre, e o significado da tal nota tornou-se
claro, mas apenas por um instante.
A sua refeição foi finamente
servida, com o requinte habitual. Queria desfrutar da sua refeição, mas nesta
terra parecia que tudo sabia ao mesmo, tudo era padronizado. A intensidade que
ele procurava, não a teria aqui, e a pequena sensação provocada pelo vinho já
se desvanecia.
Acabou a refeição, entregou o
cartão de crédito para pagar e pediu para levar a garrafa de vinho da qual
tinha apenas bebido um copo.
À saída foi-lhe entregue a sua
capa e o mestre de sala interpelou-o.
- Mr.
Cesar, espero que tudo estivesse do seu agrado.
- Soberbo
como sempre, Tony.
- Então
o resto de uma boa noite.
- Para
ti também, Tony, para ti também.
Saiu e tinha já o seu carro à
espera. Entrou. Para onde iria agora? Decidiu que iria até ao Vanguard. Queria
ritmo, queria estar rodeado de gente.
Lá chegado foi levado
directamente para a área VIP, onde se sentou numa poltrona confortável. Lá em
baixo uma mole humana agitava-se ao som altíssimo e ritmado que saía das
colunas. A batida forte e constante marcava o ritmo dos corpos que se
libertavam assim dos ritmos impostos durante o resto do tempo. Ele entendia
este excesso, esta vontade de mudança, mas mesmo esta era, para a maior parte
destas pessoas, ritualizada, sendo não mais do que um hábito criado semana após
semana. Desceu até à pista, em busca de algo, que não sabia bem o quê. Foi
atravessando através dos corpos que se agitavam com uma calma que contrastava e
que chamava a atenção.
E foi só aí, no meio de uma
multidão em delírios ritmados e alguns mesmo psicogénicos que se apercebeu que
estava profundamente só.
Com esta realização veio a
vontade de sair dali. A sua presença ali não fazia sentido.
Foi até ao cimo de Mulholland
Drive, estacionou no meio de carros cuja humidade nos vidros denunciava
claramente o que se passava no interior, voltou a abrir a garrafa de vinho cujo
aroma invadiu de imediato o carro, tirou um cigarro de erva perfeitamente
enrolado da sua cigarreira de prata e deixou que a sua alma se diluísse no
horizonte longínquo enquadrada por todas aquelas filas paralelas de luzes, com
o sabor e aroma de memórias que pareciam esquecidas mas que se atreviam agora a
voltar com um sentido de urgência e de falta.
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