terça-feira, 5 de março de 2024

Conscientização - Prólogo

     Sentou-se e resolveu, numa atitude inédita até então da sua parte, desistir de tudo!

 

Só depois parou para pensar no que seria “tudo”. O que é que seria dele na realidade? O conjunto das suas experiências, a tralha que tinha acumulado ao longo de anos e que não servia para nada? As sensações? Os sentimentos? Os afectos?

Afinal de contas, quem seria ele?

Não estaria ele a desistir de algo que desconhecia? E que lógica tinha isso, sendo que aquilo que ele desconhecia era, afinal, ele próprio?

 

Meditou por momentos.

 

Levantou-se e dirigiu-se à varanda. Viu as árvores e as pessoas, pequeninas da altura a que as via. O mundo era estranho, visto assim do alto, cheio de criaturas minúsculas que seguem umas atrás das outras com um aparente propósito definido, numa rotina estabelecida, dia após dia. Para que é que servia afinal a nossa suposta inteligência? Seríamos algo mais do que uma quinta de formigas aos olhos de Deus?

Sentia-se desconfortável, e era a primeira vez na sua vida que sentia e pensava neste tipo de desconforto. Não era um desconforto físico, mas antes um desconforto da alma.

Acendeu um cigarro, puxou uma baforada lenta e deixou que os seus pensamentos vagueassem ao sabor dos arabescos que o fumo que expelia dos pulmões fazia no ar.

 

Desde há algum tempo que sentia este desconforto estranho mas só neste momento se apercebia finalmente disso. Era como se o que via da sua varanda fosse uma sinfonia cheia de melodias e contra melodias, mas, ligando tudo, houvesse apenas uma nota grave, quase inaudível que fazia tudo ressoar. O desconforto era o de saber que essa nota lá estava, mas não a conseguir distinguir, e no entanto senti-la por debaixo de todos os ruídos desta cidade que se estendia até onde o horizonte alcançava e que parecia querer continuar para além dele.

Esta súbita realização fez com que a sua vontade inicial voltasse atrás. Não desistiria, pelo menos, não para já. Havia algo para descobrir que poderia dar ainda um sentido ao que parecia não o ter.

 

Deixou-se ficar ali enquanto acabava o seu cigarro e o sol baixava no horizonte. Junto com a noite começava a cair uma ligeira humidade. Ele gostava.

 

Permaneceu em silêncio durante algum tempo enquanto o crepúsculo se extinguia e as luzes da cidade se iam acendendo. Continuava a intuir a rotina, a ordem, os mesmos movimentos, que eram, tais como os seus, repetidos dia após dia, sempre com a mesma cadência imposta por algo de externo, sempre os mesmos ciclos, mês após mês, ano após ano, era após era. Fechou os olhos e deixou que esses ritmos chegassem até si, sentindo-se pulsar junto com eles. Mas continuava a haver algo que não encaixava.

Estava aborrecido, e uma vez que não ia desistir de nada, levantou-se, vestiu uma camisa imaculadamente branca, enfiou-se dentro de um dos seus fatos feitos por medida, vestiu uma capa, porque a noite se adivinhava fria e talvez chuvosa, e enfiou-se no elevador até à cave onde o seu carro o esperava.

Meditou acerca do seu destino no elevador. Ainda não se decidira para onde ir. Só sabia que o seu apartamento lhe parecia claustrofóbico. Precisava de espaço, queria ir à procura daquilo que intuía.

Estava perdido nos seus pensamentos quando a porta do elevador se abriu. Assim que saiu sentiu o ar fresco da cave. Dirigiu-se para o seu carro. Ainda se lembrava do gozo que lhe dera comprá-lo, da sensação de quando lho entregaram à porta do concessionário. Era um carro com personalidade, um Corvette Stingray de 1982, azul meia-noite metalizado. Agora olhava para trás e via a futilidade de tudo aquilo.

 

Entrou no carro e tomou uma decisão. Uma vez que não havia nada, pelo menos que ele conhecesse, que se parecesse com um restaurante Português por aqui, resolveu ir ao Dan Tana's comer qualquer coisa italiana. Pelo menos teria um sabor mediterrânico, que tanta saudade lhe causava.

O ronronar quase surdo do motor do carro, enquanto ele o deixava aquecer quase lhe causou um torpor de adormecimento. Um leve toque no acelerador fez despertar a besta, e arrancou calmamente, saindo da cave do prédio directamente para uma avenida cheia de confusão. Era como se, de repente, tivesse entrado noutro mundo.

Seguiu calmamente até ao seu destino por entre ruas repletas de aparências. Estava na capital mundial das aparências. Nada aqui era perfeito, mas tudo tinha que parecê-lo. Cada mulher tinha que aparentar ser perfeita, cada homem tinha que aparentar ser charmoso. Mas era tudo tão artificial…

Chegou ao restaurante, entregou a chave do carro ao arrumador junto com uma nota de vinte dólares, e entrou.

- Good evening Mr. Cesar. – Dirigiu-se-lhe o chefe de sala do restaurante solicitamente como de costume.

- Good evening, Tony. – Devolveu ele num inglês carregado com um sotaque britânico impecável. Detestava a maneira descuidada como os americanos falavam, sem estilo e sem requinte.

- Vai desejar a sua mesa do costume?

- Sim, Tony, por favor.

- Com certeza Mr. Cesar. Siga-me, por favor.

Entregou a sua capa a um outro empregado e entrou no salão, seguindo o chefe de sala. Foi levado até uma mesa de canto onde gostava de se sentar e de onde conseguia ver quase todas as mesas.

- Tony, há algum vinho Português? – Perguntou ao mestre de sala.

- Não tenho a certeza, Mr. Cesar. Mas mando-lhe já alguém em seguida.

- Obrigado Tony.

O chefe de sala deixou-o e foi imediatamente rodeado por dois outros empregados com a ementa e a carta de vinhos. Dispensou a ementa, voltando-se para o empregado e pedindo de imediato:

- Quero Spaghetti a la Bolognese e uma salada verde, por favor. – E virando-se para o empregado com a carta de vinho repetiu a pergunta que antes tinha feito ao chefe de sala – Têm algum vinho Português?

- Não tenho de memória, mas posso averiguar.

- Agradeço que o faça.

- Com certeza. – E afastou-se rapidamente.

Ficou só na mesa e apreciou o ambiente à sua volta. Tudo ali parecia querer fazer lembrar Itália, mas de uma forma artificial e falsa, como tudo o resto naquela cidade. E o desconforto não o abandonava.

- Mr. Cesar…

- Sim? – Respondeu ao empregado que o fez emergir dos seus pensamentos.

- Temos um Cartuxa Tinto Reserva de 1995. – Disse o empregado mostrando-lhe a garrafa.

- Pode ser.

O empregado abriu a garrafa e afastou-se, deixando o vinho a respirar.

Algumas pessoas olhavam para ele, a única pessoa sozinha numa mesa, com alguma curiosidade. Ele sabia-se observado mas não dava atenção a isso. Limitava-se a olhar para a rua através da janela e a tentar sacudir as sensações que o invadiam.

Ao fim de algum tempo o empregado voltou e despejou um pouco de vinho no fundo do copo. Agarrou o copo e aproximou-o do nariz, deixando-se invadir pelo aroma suave do vinho, carregado de sugestões de frutos e aromas familiares, levando-o para um lugar que ele tinha deixado há já tanto tempo… De repente parecia que todo o seu ritmo se alterara e teve um vislumbre, e o significado da tal nota tornou-se claro, mas apenas por um instante.

A sua refeição foi finamente servida, com o requinte habitual. Queria desfrutar da sua refeição, mas nesta terra parecia que tudo sabia ao mesmo, tudo era padronizado. A intensidade que ele procurava, não a teria aqui, e a pequena sensação provocada pelo vinho já se desvanecia.

Acabou a refeição, entregou o cartão de crédito para pagar e pediu para levar a garrafa de vinho da qual tinha apenas bebido um copo.

À saída foi-lhe entregue a sua capa e o mestre de sala interpelou-o.

- Mr. Cesar, espero que tudo estivesse do seu agrado.

- Soberbo como sempre, Tony.

- Então o resto de uma boa noite.

- Para ti também, Tony, para ti também.

Saiu e tinha já o seu carro à espera. Entrou. Para onde iria agora? Decidiu que iria até ao Vanguard. Queria ritmo, queria estar rodeado de gente.

Lá chegado foi levado directamente para a área VIP, onde se sentou numa poltrona confortável. Lá em baixo uma mole humana agitava-se ao som altíssimo e ritmado que saía das colunas. A batida forte e constante marcava o ritmo dos corpos que se libertavam assim dos ritmos impostos durante o resto do tempo. Ele entendia este excesso, esta vontade de mudança, mas mesmo esta era, para a maior parte destas pessoas, ritualizada, sendo não mais do que um hábito criado semana após semana. Desceu até à pista, em busca de algo, que não sabia bem o quê. Foi atravessando através dos corpos que se agitavam com uma calma que contrastava e que chamava a atenção.

E foi só aí, no meio de uma multidão em delírios ritmados e alguns mesmo psicogénicos que se apercebeu que estava profundamente só.

Com esta realização veio a vontade de sair dali. A sua presença ali não fazia sentido.

 

Foi até ao cimo de Mulholland Drive, estacionou no meio de carros cuja humidade nos vidros denunciava claramente o que se passava no interior, voltou a abrir a garrafa de vinho cujo aroma invadiu de imediato o carro, tirou um cigarro de erva perfeitamente enrolado da sua cigarreira de prata e deixou que a sua alma se diluísse no horizonte longínquo enquadrada por todas aquelas filas paralelas de luzes, com o sabor e aroma de memórias que pareciam esquecidas mas que se atreviam agora a voltar com um sentido de urgência e de falta.

 


 

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