terça-feira, 19 de março de 2024

Conscientiação - XVII

  

A meio do número até Andreia pôde perceber claramente que aquela dança era direccionada. Era um acto de exibição para uma pessoa na sala, em detrimento de todos os outros: César.

Aqui, mais de perto, na primeira fila, tornou-se ainda mais óbvio o porquê da fascinação que aquela mulher parecia incutir em quem a via. O seu corpo, de proporções extraordinariamente equilibradas, perfeitamente definido, esguio mas curvilíneo, executava movimentos de quase contorcionismo, demonstrando uma elasticidade incrível, ao nível de uma ginasta de topo, mas com uma fluidez de movimentos e um controle tal que, por vezes, mais fazia lembrar uma bailarina clássica, o que era acentuado pelo som que lhes chegava, uma orquestra carregada de erotismo que veio Andreia a saber mais tarde, interpretava Adágio em sol menor de Albinoni, conferindo um toque de intemporalidade aos movimentos e tornando-a intocável. Conseguia, sem se perceber bem como, subir o varão enquanto se girava nele, embandeirava-se, demonstrando uma força enorme, executando espargatas com o corpo paralelo ao chão, e executava movimentos acrobáticos sublimes, com a confiança e convicção de quem sabe o que está a fazer, conseguindo, além da precisão, uma suavidade nas transições de movimentos feitos em força, mas sem esforço aparente, que se tornava mesmerizantemente sensual, com as peças de roupa a desaparecerem, como se saíssem do corpo dela por vontade própria, desnudando-a e revelando-a a uma plateia de olhos ávidos por vê-la gloriosamente nua enquanto ela, deliberadamente geria as expectativas, sempre artística, sempre sublime, nunca oferecida, nunca vulgar.

E apesar de toda a actuação ser claramente, pelo menos para Andreia, direccionada a César, a verdade é que também ela parecia ser o centro das atenções da mulher que a olhava de forma carregada, como se a quisesse afastar, sem ela saber bem de quê. Ela e César já se deviam conhecer.

Já este continuava a observar a actuação com um ar absolutamente neutro, o mesmo que tinha quando ela experimentara o vestido transparente, à tarde, ou quando lhe disse o que devia alterar na sua apresentação mais cedo nessa noite e Andreia perguntava-se se aquele ar viria de uma pura indiferença, como parecia, ou se, por outro lado, seria uma máscara que lhe permitia ocultar os seus próprios sentimentos, dando-lhe sempre uma impressão de ser superior a tudo, até aos encantos daquela mulher sublime que neste momento ela invejava profundamente.

Apesar da sua timidez, a verdade é que lhe soubera bem a maneira como fora observada quando entraram. O ambiente pareceu parar para a ver, e não era pelo facto de ser um caso raro ali. Ao contrário da noite anterior, hoje era sexta-feira e estavam bastantes casais espalhados pela sala que claramente tinham ali jantado. Ainda assim, quando entrou, o tempo pareceu ficar em suspenso por momentos e viu o desejo a queimar nos olhos dos homens, sentindo-se o centro das atenções e ela, que nunca se considerara atraente, sentiu que, de repente, irradiava luz. Ainda assim, a sua timidez veio ao de cima e teve de se lembrar das palavras de César, no carro, à ida para lá:

- Tenha atenção à postura, costas direitas, queixo erguido, passos lentos mas seguros, que a pressa é inimiga da perfeição mas, acima de tudo, enfrente os olhares sem demonstrar receio e não tenha medo de mostrar o seu desagrado. Aliás, aquilo que não pode mesmo, nunca, é demostrar medo ou deixar de enfrentar um olhar, encolhendo-se. Vamos para um covil de lobos, e os lobos só atacam em matilha ou quando sentem medo. Além disso, eu estarei lá consigo, portanto, aparte os olhares, ninguém a virá incomodar.

No entanto, ela não sabia se tinha tido muito sucesso. Sentia-se insegura cada vez que se sentia mais observada. Mas enquanto o número decorria podia relaxar porque todas, mas mesmo todas as atenções estavam concentradas por baixo das luzes que coloriam o corpo dela de um encarnado quase vivo, quase ofuscante.

O número acabou, sendo ovacionado de forma vigorosa. Ela agradeceu e retirou-se. César voltou-se para Andreia:

- Então, gostou?

- Bastante. Ontem estávamos mais longe e já tinha gostado, mas hoje foi espectacular. E a música também ajudou…

- Sim, não esperava por isto. A música de Albinoni emprestou ainda mais dramatismo a todo o número. Mas reforçou ainda mais a minha convicção acerca do que vamos fazer a seguir… – e deixou finalmente escapar um sorriso que lhe pareceu iluminar a face.

Andreia ficou apreensiva. Cesar levantou-se e deu-lhe a mão para que ela se levantasse também, tendo-a encaminhado em seguida para um corredor lateral. Lá chegado trocou impressões com o segurança que os levou pelo corredor fora. Pararam a uma porta. O segurança bateu e, tendo ouvido uma confirmação de dentro, entrou sozinho. Alguns segundos depois saiu, deixando a porta aberta e voltou para o sítio onde estava antes. César colocou a mão nas costas de Andreia impelindo-a para entrar à sua frente, seguindo-a e fechando a porta.

A bailarina estava sentada em frente ao espelho, a tirar a maquilhagem, vestida apenas com um robe leve completamente aberto de forma despudorada. Claro que o pudor não fazia sentido, pensou Andreia, depois de se ter exposto por completo no palco.

Após ter limpo a maquilhagem, levantou-se, dirigiu-se a um lavatório e passou a cara por água, enxugando-a em seguida e só então lhes deu atenção. Olhou para César, ignorando por completo a presença de Andreia, como se esta nem estivesse presente na sala.

- Olá. – Disse César com um tom de voz absolutamente calmo.

- Olá. Eu quero mesmo tomar um duche, por isso, se pudermos despachar o que tens para me dizer…

- Vim fazer-te uma proposta. – Disse César.

- Uma proposta… Que bom. O que vai ser desta vez? Deixa-me adivinhar: Queres que eu tire os três a essa semi-virgem que vem contigo…

Andreia sentiu-se ruborizar e se pudesse tinha saído dali naquele instante. César riu.

Não. Nada disso. A minha proposta é muito menos altruísta… Fez um sinal a Andreia que abriu a bolsa e retirou o contrato, passando-lho em seguida para a mão.

- Já agora, … – continuou César – Esta é a minha secretária pessoal, Andreia Rodrigues.

A bailarina levou o olhar para ela, observou-a minuciosamente. Depois encolheu os ombros. César passou-lhe os papéis para a mão, ela olhou, deu uma passagem rápida pelas folhas e encarou César de uma maneira inquiridora.

- Isto é um contrato de trabalho? Queres que eu trabalhe para ti?

- Nos termos que aí estão, sim.

Ela largou as folhas para cima de uma mesa de apoio.

- Já tenho um trabalho.

Eu sei, e quero que o mantenhas. No entanto, era bom leres esse contrato com muito cuidado. Não quero uma resposta hoje. Se achares os termos e compensações aceitáveis, ou se tiveres dúvidas acerca dele e quiseres esclarecê-las, vais aparecer aqui… – tirou uma caneta e um papel do bolso e escreveu rapidamente a morada da casa de Sintra – …ao princípio da tarde de segunda-feira, uma vez que presumo que durmas durante a manhã. E se apareceres a horas decentes para almoçar, almoças connosco. Caso não apareças, vou assumir que não estavas interessada e,… amigos como antes.

Ela observava-o, como se procurasse algo nele que nem ela sabia bem o quê. César virou-se em direcção à porta.

- E agora, que já fizemos o que tínhamos a fazer aqui, deixo-te ao teu merecido duche. – Abriu a porta a Andreia, deixando-a passar e quando já ia a sair virou-se – Já agora, o teu número de hoje foi de cortar a respiração, muito bom, mesmo! Posso saber o teu nome? O teu nome mesmo, que não me parece que te chames Veronika com “k”…

- Maria do Céu.

- Céu. Realmente, não é um nome muito artístico. Mas a verdade é que não é o nome que faz a pessoa, é mais a pessoa que faz o nome, não é? Fico à tua espera na segunda-feira.

Saiu, fechando a porta atrás de si. Céu virou-se para ir tomar o seu duche mas parou, olhou para os papéis, pegou neles e começou a ler cuidadosamente.


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