A meio do número
até
Andreia
pôde
perceber
claramente
que
aquela
dança
era
direccionada.
Era
um
acto
de
exibição
para
uma
pessoa
na
sala,
em
detrimento
de
todos
os outros: César.
Aqui, mais de perto, na
primeira fila, tornou-se ainda mais óbvio o porquê da fascinação que aquela
mulher parecia incutir em quem a via. O seu corpo, de proporções
extraordinariamente equilibradas, perfeitamente definido, esguio mas
curvilíneo, executava movimentos de quase contorcionismo, demonstrando uma
elasticidade incrível, ao nível de uma ginasta de topo, mas com uma fluidez de
movimentos e um controle tal que, por vezes, mais fazia lembrar uma bailarina
clássica, o que era acentuado pelo som que lhes chegava, uma orquestra
carregada de erotismo que veio Andreia a saber mais tarde, interpretava Adágio
em sol menor de Albinoni, conferindo um toque de intemporalidade aos movimentos
e tornando-a intocável. Conseguia, sem se perceber bem como, subir o varão
enquanto se girava nele, embandeirava-se, demonstrando uma força enorme,
executando espargatas com o corpo paralelo ao chão, e executava movimentos
acrobáticos sublimes, com a confiança e convicção de quem sabe o que está a
fazer, conseguindo, além da precisão, uma suavidade nas transições de
movimentos feitos em força, mas sem esforço aparente, que se tornava
mesmerizantemente sensual, com as peças de roupa a desaparecerem, como se
saíssem do corpo dela por vontade própria, desnudando-a e revelando-a a uma
plateia de olhos ávidos por vê-la gloriosamente nua enquanto ela,
deliberadamente geria as expectativas, sempre artística, sempre sublime, nunca
oferecida, nunca vulgar.
E apesar de toda a actuação
ser claramente, pelo menos para Andreia, direccionada a César, a verdade é que
também ela parecia ser o centro das atenções da mulher que a olhava de forma
carregada, como se a quisesse afastar, sem ela saber bem de quê. Ela e César já
se deviam conhecer.
Já este continuava a observar
a actuação com um ar absolutamente neutro, o mesmo que tinha quando ela
experimentara o vestido transparente, à tarde, ou quando lhe disse o que devia
alterar na sua apresentação mais cedo nessa noite e Andreia perguntava-se se
aquele ar viria de uma pura indiferença, como parecia, ou se, por outro lado,
seria uma máscara que lhe permitia ocultar os seus próprios sentimentos,
dando-lhe sempre uma impressão de ser superior a tudo, até aos encantos daquela
mulher sublime que neste momento ela invejava profundamente.
Apesar da sua timidez, a
verdade é que lhe soubera bem a maneira como fora observada quando entraram. O
ambiente pareceu parar para a ver, e não era pelo facto de ser um caso raro
ali. Ao contrário da noite anterior, hoje era sexta-feira e estavam bastantes
casais espalhados pela sala que claramente tinham ali jantado. Ainda assim,
quando entrou, o tempo pareceu ficar em suspenso por momentos e viu o desejo a
queimar nos olhos dos homens, sentindo-se o centro das atenções e ela, que
nunca se considerara atraente, sentiu que, de repente, irradiava luz. Ainda
assim, a sua timidez veio ao de cima e teve de se lembrar das palavras de
César, no carro, à ida para lá:
- Tenha
atenção à postura, costas direitas, queixo erguido, passos lentos mas seguros,
que a pressa é inimiga da perfeição mas, acima de tudo, enfrente os olhares sem
demonstrar receio e não tenha medo de mostrar o seu desagrado. Aliás, aquilo
que não pode mesmo, nunca, é demostrar medo ou deixar de enfrentar um olhar,
encolhendo-se. Vamos para um covil de lobos, e os lobos só atacam em matilha ou
quando sentem medo. Além disso, eu estarei lá consigo, portanto, aparte os
olhares, ninguém a virá incomodar.
No entanto, ela não sabia se
tinha tido muito sucesso. Sentia-se insegura cada vez que se sentia mais
observada. Mas enquanto o número decorria podia relaxar porque todas, mas mesmo
todas as atenções estavam concentradas por baixo das luzes que coloriam o corpo
dela de um encarnado quase vivo, quase ofuscante.
O número acabou, sendo
ovacionado de forma vigorosa. Ela agradeceu e retirou-se. César voltou-se para
Andreia:
- Então,
gostou?
- Bastante.
Ontem estávamos mais longe e já tinha gostado, mas hoje foi espectacular. E a
música também ajudou…
- Sim,
não esperava por isto. A música de Albinoni emprestou ainda mais dramatismo a
todo o número. Mas reforçou ainda mais a minha convicção acerca do que vamos
fazer a seguir… – e deixou finalmente escapar um sorriso que lhe pareceu
iluminar a face.
Andreia ficou apreensiva.
Cesar levantou-se e deu-lhe a mão para que ela se levantasse também, tendo-a
encaminhado em seguida para um corredor lateral. Lá chegado trocou impressões
com o segurança que os levou pelo corredor fora. Pararam a uma porta. O
segurança bateu e, tendo ouvido uma confirmação de dentro, entrou sozinho.
Alguns segundos depois saiu, deixando a porta aberta e voltou para o sítio onde
estava antes. César colocou a mão nas costas de Andreia impelindo-a para entrar
à sua frente, seguindo-a e fechando a porta.
A bailarina estava sentada em
frente ao espelho, a tirar a maquilhagem, vestida apenas com um robe leve
completamente aberto de forma despudorada. Claro que o pudor não fazia sentido,
pensou Andreia, depois de se ter exposto por completo no palco.
Após ter limpo a maquilhagem,
levantou-se, dirigiu-se a um lavatório e passou a cara por água, enxugando-a em
seguida e só então lhes deu atenção. Olhou para César, ignorando por completo a
presença de Andreia, como se esta nem estivesse presente na sala.
- Olá.
– Disse César com um tom de voz absolutamente calmo.
- Olá.
Eu quero mesmo tomar um duche, por isso, se pudermos despachar o que tens para
me dizer…
- Vim
fazer-te uma proposta. – Disse César.
- Uma
proposta… Que bom. O que vai ser desta vez? Deixa-me adivinhar: Queres que eu
tire os três a essa semi-virgem que vem contigo…
Andreia sentiu-se ruborizar e
se pudesse tinha saído dali naquele instante. César riu.
Não. Nada disso. A minha
proposta é muito menos altruísta… Fez um sinal a Andreia que abriu a bolsa e
retirou o contrato, passando-lho em seguida para a mão.
- Já
agora, … – continuou César – Esta é a minha secretária pessoal, Andreia
Rodrigues.
A bailarina levou o olhar para
ela, observou-a minuciosamente. Depois encolheu os ombros. César passou-lhe os
papéis para a mão, ela olhou, deu uma passagem rápida pelas folhas e encarou
César de uma maneira inquiridora.
- Isto
é um contrato de trabalho? Queres que eu trabalhe para ti?
- Nos
termos que aí estão, sim.
Ela largou as folhas para cima
de uma mesa de apoio.
- Já
tenho um trabalho.
Eu sei, e quero que o
mantenhas. No entanto, era bom leres esse contrato com muito cuidado. Não quero
uma resposta hoje. Se achares os termos e compensações aceitáveis, ou se
tiveres dúvidas acerca dele e quiseres esclarecê-las, vais aparecer aqui… –
tirou uma caneta e um papel do bolso e escreveu rapidamente a morada da casa de
Sintra – …ao princípio da tarde de segunda-feira, uma vez que presumo que durmas
durante a manhã. E se apareceres a horas decentes para almoçar, almoças
connosco. Caso não apareças, vou assumir que não estavas interessada e,… amigos
como antes.
Ela observava-o, como se
procurasse algo nele que nem ela sabia bem o quê. César virou-se em direcção à
porta.
- E
agora, que já fizemos o que tínhamos a fazer aqui, deixo-te ao teu merecido
duche. – Abriu a porta a Andreia, deixando-a passar e quando já ia a sair
virou-se – Já agora, o teu número de hoje foi de cortar a respiração, muito bom,
mesmo! Posso saber o teu nome? O teu nome mesmo, que não me parece que te
chames Veronika com “k”…
- Maria
do Céu.
- Céu.
Realmente, não é um nome muito artístico. Mas a verdade é que não é o nome que
faz a pessoa, é mais a pessoa que faz o nome, não é? Fico à tua espera na
segunda-feira.
Saiu, fechando a porta atrás
de si. Céu virou-se para ir tomar o seu duche mas parou, olhou para os papéis,
pegou neles e começou a ler cuidadosamente.
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