No dia seguinte ainda toda a gente estava na expectativa. A mensagem falava
em sete dias e para o mundo tinham passado apenas seis. Acho que o mundo estava
à espera de um acto divino que derrubasse os governos…
…mas não aconteceu nada.
Salvo pequenas escaramuças que foram sendo contidas pelos exércitos e pelas
forças policiais, o mundo começava a reordenar-se.
E o dia chegou, e acabou, e os serviços noticiosos começaram a dar conta de
que a mensagem tinha falhado. As casas do poder continuavam intactas.
Como podes calcular, eu também estava sem saber qual o objectivo daquilo
tudo. Afinal tinha lançado o caos no mundo inteiro sem qualquer propósito. Para
ser franco, acho que se não fosse tão desprendido me sentiria mal…
…mas não sentia. Estava confuso.
Dois dias depois um polícia bateu à porta de casa. O Fernandes não estava.
Fui à porta.
“Sim?”
“Senhor Gabriel Guerra?”
“O próprio.”
“Venho pedir-lhe que me acompanhe à esquadra para depor…”
“Posso perguntar o porquê?”
“Existe uma queixa contra si.”
“Uma queixa? Mas porque motivo?
“Esclarecem-no melhor na esquadra. Faça o favor de me acompanhar.”
“Com certeza. Não se importa que eu faça um telefonema a dar conta do meu
paradeiro?”
“Claro que não. Mas se é de telemóvel até a pode fazer pelo caminho.
Vamos?”
Sem qualquer hipótese de escolha, como é evidente, fui. Era claro porque
era a queixa. Não sabia era os termos dela. Naquele momento eu era o único culpado
de tudo o que tinha acontecido e não me iam deixar impune.
Avisei o Fernandes da situação. Ele foi ter à esquadra, tentou falar com os
responsáveis, mas sem sucesso.
Na esquadra disseram-me qual era as acusações. Atentado à ordem pública,
incentivo à violência. Incitação ao pânico… Os termos não são estes mas era
disto que me acusavam. Ouviram-me durante algum tempo e finalmente levaram-me
diante de um juiz. Apesar de o Fernandes se ter responsabilizado por mim foi-me
decretada a prisão preventiva.
Ainda assim o juiz não me enfiou numa prisão junto com a população
prisional. Achava que seria um risco para mim, e como tal, à falta de outra
solução, enfiaram-me na solitária.
Sabes, acho que consideravam isto também um castigo, mas eu, finalmente,
tive paz. Durante os três meses que estive preso pude tirar a mascara, pôr de
lado o que tinha de fazer e ser eu próprio. Alem disso tive todo o tempo do
mundo para pensar. Nada do que tinha acontecido fazia sentido para mim.
Apesar disso, os três meses não foram isentos de surpresas. Ao fim do
segundo mês vieram buscar-me. Tinha uma visita. As visitas do Fernandes eram
frequentes, por isso não me surpreendi. Surpreendi-me sim, quando entrei na
sala.
“Olá Gabriel Guerra.” disse, puxando em seguida uma longa baforada da
cigarrilha que trazia.
“Olá John.”
“Perguntava-lhe se está surpreendido por me ver, mas sei que a pergunta é
irrelevante…”
“É. Sabe que sim. Não sabia que se podia fumar aqui…”
“As palavras certas conseguem-nos sempre alguns privilégios…”
“…sobretudo se forem acompanhadas com algo de mais sonante.”
“É verdade!”
“Mas isto é só uma visita de cortesia?”
“Não Gabriel, não é.”
“Então?”
“Sabe Gabriel, no fundo acho que me relaciono consigo. Somos tão iguais que
é impossível isso não acontecer.”
“Pois, já eu em relação a si, tenho muita pena, mas não.”
“Gabriel, eu compreendo-o. Acredite. Além disso você conseguiu causar mais
caos em um ano do que eu numa vida inteira. Isso não lhe dá um certo gozo?”
“Não. Confunde-me.”
“Mas admita, não estava à espera que o sistema politico ruísse em sete
dias, pois não?”
“Para ser franco, esperava.”
“Pois, afinal há um traço de humanidade em si.”
“Há?”
“Claro que há. Chama-se fé.”
“É capaz de ter razão, mas creio que mesmo esse traço, à vista do que
aconteceu, se está a desvanecer rapidamente.”
“Pois, acredito. Afinal ainda procura uma saída, um motivo para tudo o que
aconteceu, não é? Ainda tenta encontrar a lógica…”
“Tento.”
“Pare de tentar. Não há lógica. Houve oito mensagens. Por acaso acertou em
sete…”
“Acredite, o acaso não teve nada a ver com isto.”
“Pode ser que não, mas se há de facto algo de maior porque raio está aqui?”
“É a isso que ainda não consegui responder. Mas veio aqui para me apontar
os pontos fracos da minha lógica?”
“Não. Vim aqui avisá-lo. Gabriel, neste momento não tenho qualquer
propósito contra si. As pessoas que eu representava desapareceram, caíram em
desgraça, suicidaram-se… De qualquer forma, a verdade é que não represento
ninguém a não ser eu próprio. Mas sabe que deixou muita gente descontente, não
sabe?”
“Não é obvio? Basta olhar para onde estou…”
“Não falo destes, Gabriel, nem falo das pessoas que são carneirinhos em
busca de um prado onde possam pastar alegremente e sem preocupações. Falo dos
lobos, Gabriel. São os lobos quem tem a força e o poder. Nenhum lobo gosta de
ser enjaulado. Quem está habituado a caviar beluga não se contenta com uma
treta qualquer. Quem está habituado a andar de Ferrari não se contenta com um Fiat.”
“E acha que os lobos estão atrás de mim?”
“Mas é claro. Sabe, até aqui eles têm mantido o rebanho coeso. Dão uma
mordiscadela aqui e outra ali. O rebanho às vezes exalta-se, mas eles arranjam
um novo prado com erva verde e está tudo bem outra vez. Você apareceu e
lixou-lhes o esquema. Apontou as armas aos lobos e disparou, deu cabo da
maioria. Os que sobraram tem sede do seu sangue.”
“Mas se eu estou entre o pastor e os lobos…”
“Você é o pastor, Gabriel.”
Nunca tinha olhado para as coisas neste termos. Ele continuou.
“Gabriel, os que o mantêm aqui estão no lado dos carneiros. Ao fim ao cabo,
que é que lhe podem fazer? Inclusivamente com um sistema penal como o vosso? Vinte
e cinco anos de cadeia? Mais indultos e recursos, daqui a dez anos está cá
fora. Mas eles até o querem manter vivo. Têm de o manter vivo. Sim que há gente
com pena que já não exista a santa inquisição para o atarem a um poste e
queimar vivo numa fogueira. O problema são os que estão lá fora. Esses são os
lobos, Gabriel, e vão atirar-se à sua garganta à primeira oportunidade.”
Esta era a verdade. E foi nesse mesmo momento que percebi que quando
pusesse os pés fora daqui estaria morto.
“Tudo isso é verdade, mas não explica o porquê de estar aqui…”
“Homens como nós não devem gratidão a ninguém. Sabemos que as pessoas
fizeram o que tinham de fazer num determinado momento independentemente da sua
vontade. Mas sabe, Gabriel, eu também não faço parte da matilha, mas também não
sou um carneiro. Estamos ambos a mais neste jogo. Só que eu não o sabia até
ficar livre e sem ninguém a quem representar. E agora sei-o graças a si. Por
isso, caro Gabriel, entre outras coisas também me soube bem ser o arauto da sua
morte. Não que a perspectiva de morrer o incomode. Mas talvez o incomode morrer
sem qualquer razão…”
“Não. Apenas se morre. As razões para isso são ilusórias.”
Ele ofereceu-me uma cigarrilha. Recusei.
“Faz mal. São cubanas. Não são fáceis de arranjar e tem um sabor único.
Devia experimentar… sinta só o cheiro…”
Agarrei a cigarrilha e passei-a junto ao nariz. O odor suave invadiu-me. Pus
a cigarrilha na boca. Ele acendeu-ma.
“Sinta só o sabor, não tente travar.”
Senti o sabor intenso na língua, pequenas picadas, sem dúvida da nicotina e
deixei o fumo sair suavemente da minha boca.
“Mas vim aqui para lhe dizer que podemos vir a precisar um do outro no
futuro. Por isso…” disse ele tirando um cartão “quando sair, não hesite em
ligar-me.”
Em seguida ele levantou-se, virou as costas e saiu. Dei mais uma baforada
na cigarrilha. Veio um guarda e levou-me para a cela.
E foi naquele preciso momento que eu percebi…
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