terça-feira, 26 de março de 2024

Conscientização - XXIV

 

 

João Saraiva sentiu uma vertigem súbita, como se o chão tivesse desaparecido de debaixo da sua cadeira quando viu Veronika” a seguir na direcção da sua mesa. Felizmente para ele até a sua esposa, sentada ao seu lado, ficou suspensa nos movimentos felinos e na graciosidade de “Veronika”, não reparando por isso que ele tinha ficado lívido, como se o sangue lhe tivesse fugido por completo. César seguia logo atrás dela, dando-lhe a primazia.

Chegados à mesa, João e a sua esposa levantaram-se e César cumprimentou João cordialmente, enquanto este tentava agir naturalmente.

- Espero que não tenham esperado muito por nós. Apanhamos algum trânsito na entrada de Lisboa.

- Chegamos há pouco tempo, também. – Disse João, sentindo uma nota tremula na sua voz – Permita-me que lhe apresente a minha mulher, Ana. – E ela esticou de imediato a mão para Cesar, num cumprimento formal.

César apertou-lhe a mão enquanto a olhava nos olhos de uma forma que provocou um pequeno arrepio. Um olhar firme e sério que pareceu trespassá-la. Para piorar a situação, César não se limitou a apertar-lhe a mão, antes virou-lhe as costas da mão para cima e, com uma vénia rápida, mas sem desviar os olhos dos dela, levou as costas da sua mão aos lábios, beijando-a apenas muito superficialmente.

- Encantado. – Limitou-se a dizer em seguida com um pequeno sorriso nos lábios. Depois, continuou ele com as apresentações.

- Esta é a Veronika.

As duas mulheres cumprimentaram-se encostando ambas as faces e soltando uma ameaça de beijo a cada encosto e em seguida Céu estendeu a mão para João, que tentou atabalhoadamente imitar o gesto de César, para óbvio divertimento dela.

João e Ana sentaram-se e César ajeitou a cadeira de Céu, sentando-se em seguida.

Cesar voltou-se para João:

- Fico satisfeito por ter aceitado o meu convite para jantar.

- Um convite seu seria irrecusável – apressou-se João a responder.

- Já pediram?

- Não, estávamos à vossa espera…

- Vamos pedir então. – Disse Cesar fazendo um sinal que foi rapidamente entendido, aparecendo as ementas quase de imediato.

Enquanto todos desfilavam os olhos pela ementa, Céu reparava no quanto João tentava esconder-se dela e no quanto Ana olhava por cima da ementa tentando observar César, que parecia absolutamente compenetrado no facto de estar a escolher a sua refeição e alheio a todo o resto.

A sua mente reviu rapidamente a noite anterior e isso trouxe-lhe alguma irritação. Depois do que se tinha passado, nem uma única palavra dele. Aliás, passou o dia inteiro sem o ver, uma vez que ele saíra cedo, e só apareceu ao final da tarde, informando-a que iriam jantar ao Feitoria com outro casal e dizendo-lhe para se preparar.

Mal teve tempo para o fazer, resolvendo-se por um vestido leve em cores que ela sabia que a fariam realçar naquela sala onde predominam as madeiras escuras e uns sapatos de salto a condizer, maquilhando-se e prendendo graciosamente o cabelo.

Ainda assim, quando se viu ao espelho não pôde deixar de dar um sorriso ao imaginar qual seria a reacção de César. Estava um arraso e sabia disso. Mas, ao contrário daquilo que esperava, César não teve qualquer reacção visível, ficando imperturbável quando a viu, limitando-se a apressá-la para o carro. Abriu-lhe a porta e deu-lhe a mão para ela entrar, como sempre fazia, uma vez que o Mercedes SLS é extremamente baixo, dando a volta ao carro e entrando em seguida. Arrancaram sem uma palavra. César ligou o rádio e vieram até Lisboa a ouvir música, sem trocarem uma palavra que fosse até chegarem à mesa do restaurante.

Depois do que se tinha passado, ela não esperava, de todo, esta reacção por parte dele! Mas pensando bem, também não estava à espera que ele saísse da sala quando saiu, deixando-a satisfeita, mas a querer mais, muito mais.

Ele era cada vez mais um mistério para ela. Confundia-a, propositadamente ou não. E agora estava aqui nesta sala magnífica e elegante com ele e com um casal em que o marido era já um conhecido de longa data, cliente habitual do seu local de trabalho e a sua mulher parecia ter ficado mesmerizada por César, sem ter a mínima ideia do porque de aqui estar.

Todos se decidiram pelo que queriam. Ana e João escolheram como entrada a salada de polvo com água de tomate e coentros, vinagrete de miso e algas, Céu optou pela vieira corada com puré de couve-flor e Cesar optou por um falso ravioli de camarão com dashi, coentros, lótus e jasmim. Como prato principal Ana escolheu um tamboril confitado em azeite negro de lúcia-lima, Céu pediu o robalo selvagem de mar corado com cuscos de lingueirão e João e César pediram vão de vitela mirandesa com dôme de batata e queijo Terrincho. César tomou a iniciativa de escolher os vinhos e pediu duas garrafas de Esporão Private Selection, uma de branco e outra de tinto, para acompanhar os peixes e as carnes, respectivamente.

Entretanto, João parecia já refeito do choque inicial de ver “Veronika” ali, na sua mesa, e assim que os menus foram levantados voltou-se para César:

- Sempre vai para a frente com o seu projecto?

- Sim, tenho feito algumas démarches nesse sentido. E sei que só terei uma produção em condições daqui a algum tempo, mas quero assegurar-me da sua distribuição logo que a tenha.

- E é por isso que estamos aqui?

- É. – Respondeu César secamente, não deixando espaço para dúvidas. Aquele não era, de todo, um jantar informal entre amigos. Era um jantar de negócios.

- E o que é que pretende de mim? – Perguntou João, olhando-o meio de lado.

- A sua companhia. – Disse, olhando fixamente para Ana, que ao ouvir estas palavras se encolheu um pouco na cadeira. Céu olhou para César sub-repticiamente, perguntando-se o que estava ele a fazer. César continuou – Quero comprar a sua empresa.

João olhou-o com um ar grave, enquanto tentava perceber se o trocadilho de palavras que ele tinha usado era intencional, pondo de lado esse pensamento de imediato. Aliás, bastava olhar para “Veronika”, a mulher que ele próprio cobiçava há anos e, em todo esse tempo, o mais perto que estivera dela era este momento, sentado a esta mesa.

- A minha empresa não está à venda. – Respondeu com um ar sério.

- Tudo está à venda. Tudo tem um preço.

- Acha mesmo isso? – Perguntou Ana, curiosa.

- Acho. Claro que o preço não tem sempre de ser traduzido em valor monetário. Há coisas mais importantes que o dinheiro.

- Bem, a minha empresa não está. – Apressou-se João a dizer.

As entradas chegaram, interrompendo a conversa. Todos iniciaram a refeição, deliciando-se com os sabores requintados que puseram a conversa em pausa. De qualquer forma, o anuncio da intenção de César tinha deixado a atmosfera um pouco mais tensa do que antes, pelo que as palavras que se foram trocando tinham mais a ver com a comida do que com negócios. Quando terminaram as entradas, foram servidos os pratos principais, continuando todos a deliciar-se, quer com a comida, quer com os vinhos, absolutamente deliciosos.

Logo que terminaram, foram pedidas as sobremesas. Ana escolheu um Parfait de Baunilha e alfazema, Céu escolheu rosas, líchias, lima e amêndoa, João pediu toucinho-do-céu com citrinos e César pediu a selecção de queijos nacionais.

César pediu um café, no que foi imitado por todos, menos pela Céu e enquanto aguardava rodava o copo com o que restava do vinho tinto por debaixo do nariz, soltando assim o seu aroma.

- João, sabe o quanto é raro entrar num restaurante de luxo em L.A. e encontrar vinhos Portugueses nas cartas? Não digo que eles não tenham lá bons vinhos, e Napa Valley tem produções de excelente qualidade. Mas, há cá vinhos considerados medíocres que são melhores do que o melhor de lá… Sabe, então, porque é que os nossos vinhos não estão lá?

- Não… – respondeu João sendo sincero.

- Porque ninguém em L.A. ouviu falar de Portugal, e quando ouviu pensam que é uma cidade ou região espanhola. Ou seja, para eles vinho Espanhol ou Português é a mesma coisa.

- Mas não é. Não tem nada a ver… – disse João com uma ponta de indignação.

- Eu sei disso. Os Portugueses que lá vivem também. Mas, de resto, mais ninguém sabe. E isso, para lhe ser franco, chateia-me.

João assentiu com a cabeça, concordando. César continuou:

- Quero a sua companhia para integrar num grupo de empresas que detenho. Será expandida, criando mais postos de trabalho. As minhas condições para si são simples: um ordenado que lhe permitira manter ou até melhorar o seu estilo de vida actual e uma participação nos lucros directos da sua empresa como bonificação anual. Eu tenho a vantagem de poder controlar todo o processo desde a produção, armazenamento e distribuição interna e externa e a sua empresa ganha uma posição única em relação ao mercado internacional a que não pode almejar sozinha. Esta é a minha proposta.

João ficou em silêncio enquanto considerava o que César lhe tinha dito. Foi Ana quem se adiantou:

- E se não vendermos?

- Essa não é uma opção. – Disse César calmamente com um sorriso nos lábios e uma certeza absoluta. Encarou Ana, olhando-a firmemente nos olhos, com uma expressão suave, colocou uma mão na perna de Céu e continuou, num tom de voz grave e carregado de assertividade – Eu consigo sempre o que quero, seja de que maneira for. – E virou-se, olhando para a Céu, profundamente nos olhos e perguntou – Não é?

Céu limitou-se a acenar com um sorriso, fazendo o seu papel, que percebia agora perfeitamente qual era, não sem uma pequena pontada de tristeza. César voltou de novo o seu olhar para Ana:

Se eu decidir comprar outra empresa dentro da vossa área vou expandi-la como farei com a vossa se a comprar, e vou começar a açambarcar o mercado, até chagar a um ponto em que vocês estejam a lidar com lucros marginais e estejam sobredimensionados. Portanto, ou ficam comigo e lucram com isso, ou escolhem não ficar e arriscam-se a perder o que têm. No fundo é assim tão simples.

Ana, talvez pelo que foi dito, pelo tom de voz absolutamente calmo e sedutor, pela expressão divertida de César ou, se calhar e sobretudo, por causa da força que aquele olhar tinha estava ligeiramente corada, e não era do vinho. Já João fazia os possíveis para não olhar para a mão de César pousada um pouco acima do joelho de Céu.

- Mas não quero uma resposta vossa hoje, nem vamos estragar a refeição pelo teor da conversa… além disso, temos de ir. Tenho de levar a “Veronika” ao trabalho.

Ana ficou curiosa:

- A sério? A esta hora? O que faz, Veronika? Céu sorriu.

- Sou bailarina.

- A sério? Ballet clássico?

- Não, mais contemporâneo.

- Que inveja. – Continuou Ana com o rosto perfeitamente iluminado de admiração – Eu sempre quis ser bailarina, mas nunca tive a oportunidade…

- Estamos sempre a tempo, ainda que seja só para nós próprios. Há academias que lhe podem dar aulas. Nunca chegará, de certeza, à categoria de uma profissional, mas pode sempre aproveitar para se exercitar um pouco…

- E conhece algum sítio que recomende?

- De certeza que lhe poderá dar algumas referências para a próxima. – Interrompeu César de forma quase indelicada. E virou-se para a Céu – Temos mesmo de ir.

Sim, temos. – Assentiu Céu, levantando-se, no que foi imediatamente imitada por César e João. César afastou a cadeira, cavalheiro como sempre, dando-lhe mais espaço para sair da mesa, ela despediu-se de Ana, que continuou sentada e de João, tendo César feito o mesmo em seguida, beijando as costas da mão de Ana, como tinha feito à chegada, e selou o encontro com um aperto de mão a João.

Já no carro, Céu não se conteve:

- Porque é que tenho a sensação de ter passado a noite a ver dois miúdos a comparar o tamanho das pilas?

- Porque foi isso mesmo que aconteceu.

- E o que é que achas que ficou demonstrado?

- Que a minha era claramente maior. Ele soube disso assim que te viu, e ela descobriu por ela própria.

- Estavas a seduzi-la?

- Não. – Respondeu César, o que lhe valeu um olhar que dizia claramente não-brinques-comigo-que-eu-estava-lá-e-vi – Mas quis que ela se sentisse seduzida, e acho que atingi o meu objectivo. Não achas?

- Acho que se quisesses a levavas para casa…

- Já tenho gente que chegue em casa.

Céu sorriu. Sabia que ele estava a ser sincero. Aliás, ele era sempre sincero com ela, tanto que às vezes até doía.

- Achas que eles vão vender-te a empresa que queres?

- Tenho a certeza. Vão preferir ter algo certo a ficar na dúvida se ainda terão algo daqui a dois ou três anos.

- Deixa-me dizer-te uma coisa: César Caetano, tu és um grande sacana!

- Eu sei… – respondeu César com um sorriso.


 

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