João Saraiva sentiu uma vertigem
súbita,
como
se
o
chão
tivesse
desaparecido
de
debaixo
da
sua
cadeira
quando
viu
“Veronika”
a
seguir
na
direcção
da
sua
mesa.
Felizmente para ele até
a sua esposa, sentada ao seu lado, ficou suspensa nos movimentos felinos e na
graciosidade de “Veronika”, não reparando por isso que ele tinha ficado lívido,
como se o sangue lhe tivesse fugido por completo. César seguia logo atrás dela,
dando-lhe a primazia.
Chegados à mesa, João e a sua
esposa levantaram-se e César cumprimentou João cordialmente, enquanto este
tentava agir naturalmente.
- Espero que não tenham
esperado muito por nós. Apanhamos algum trânsito na entrada de Lisboa.
- Chegamos há pouco tempo,
também. – Disse João, sentindo uma nota tremula na sua voz – Permita-me que lhe
apresente a minha mulher, Ana. – E ela esticou de imediato a mão para Cesar,
num cumprimento formal.
César apertou-lhe a mão
enquanto a olhava nos olhos de uma forma que provocou um pequeno arrepio. Um
olhar firme e sério que pareceu trespassá-la. Para piorar a situação, César não
se limitou a apertar-lhe a mão, antes virou-lhe as costas da mão para cima e,
com uma vénia rápida, mas sem desviar os olhos dos dela, levou as costas da sua
mão aos lábios, beijando-a apenas muito superficialmente.
- Encantado. – Limitou-se a
dizer em seguida com um pequeno sorriso nos lábios. Depois, continuou ele com
as apresentações.
- Esta é a Veronika.
As duas mulheres
cumprimentaram-se encostando ambas as faces e soltando uma ameaça de beijo a
cada encosto e em seguida Céu estendeu a mão para João, que tentou
atabalhoadamente imitar o gesto de César, para óbvio divertimento dela.
João e Ana sentaram-se e César
ajeitou a cadeira de Céu, sentando-se em seguida.
Cesar voltou-se para João:
- Fico satisfeito por ter
aceitado o meu convite para jantar.
- Um convite seu seria
irrecusável – apressou-se João a responder.
- Já pediram?
- Não, estávamos à vossa
espera…
- Vamos pedir então. – Disse
Cesar fazendo um sinal que foi rapidamente entendido, aparecendo as ementas
quase de imediato.
Enquanto todos desfilavam os
olhos pela ementa, Céu reparava no quanto João tentava esconder-se dela e no
quanto Ana olhava por cima da ementa tentando observar César, que parecia
absolutamente compenetrado no facto de estar a escolher a sua refeição e alheio
a todo o resto.
A sua mente reviu rapidamente
a noite anterior e isso trouxe-lhe alguma irritação. Depois do que se tinha
passado, nem uma única palavra dele. Aliás, passou o dia inteiro sem o ver, uma
vez que ele saíra cedo, e só apareceu ao final da tarde, informando-a que iriam
jantar ao Feitoria com outro casal e dizendo-lhe para se preparar.
Mal teve tempo para o fazer,
resolvendo-se por um vestido leve em cores que ela sabia que a fariam realçar
naquela sala onde predominam as madeiras escuras e uns sapatos de salto a
condizer, maquilhando-se e prendendo graciosamente o cabelo.
Ainda assim, quando se viu ao
espelho não pôde deixar de dar um sorriso ao imaginar qual seria a reacção de
César. Estava um arraso e sabia disso. Mas, ao contrário daquilo que esperava,
César não teve qualquer reacção visível, ficando imperturbável quando a viu,
limitando-se a apressá-la para o carro. Abriu-lhe a porta e deu-lhe a mão para
ela entrar, como sempre fazia, uma vez que o Mercedes SLS é extremamente baixo,
dando a volta ao carro e entrando em seguida. Arrancaram sem uma palavra. César
ligou o rádio e vieram até Lisboa a ouvir música, sem trocarem uma palavra que
fosse até chegarem à mesa do restaurante.
Depois do que se tinha
passado, ela não esperava, de todo, esta reacção por parte dele! Mas pensando
bem, também não estava à espera que ele saísse da sala quando saiu, deixando-a
satisfeita, mas a querer mais, muito mais.
Ele era cada vez mais um
mistério para ela. Confundia-a, propositadamente ou não. E agora estava aqui
nesta sala magnífica e elegante com ele e com um casal em que o marido era já
um conhecido de longa data, cliente habitual do seu local de trabalho e a sua
mulher parecia ter ficado mesmerizada por César, sem ter a mínima ideia do
porque de aqui estar.
Todos se decidiram pelo que
queriam. Ana e João escolheram como entrada a salada de polvo com água de
tomate e coentros, vinagrete de miso e algas, Céu optou pela vieira corada com
puré de couve-flor e Cesar optou por um falso ravioli de camarão com dashi,
coentros, lótus e jasmim. Como prato principal Ana escolheu um tamboril
confitado em azeite negro de lúcia-lima, Céu pediu o robalo selvagem de mar
corado com cuscos de lingueirão e João e César pediram vão de vitela mirandesa
com dôme de batata e queijo Terrincho. César tomou a iniciativa de escolher os
vinhos e pediu duas garrafas de Esporão Private Selection, uma de branco e
outra de tinto, para acompanhar os peixes e as carnes, respectivamente.
Entretanto, João parecia já
refeito do choque inicial de ver “Veronika” ali, na sua mesa, e assim que os
menus foram levantados voltou-se para César:
- Sempre vai para a frente com
o seu projecto?
- Sim, tenho feito algumas
démarches nesse sentido. E sei que só terei uma produção em condições daqui a
algum tempo, mas quero assegurar-me da sua distribuição logo que a tenha.
- E é por isso que estamos
aqui?
- É. – Respondeu César
secamente, não deixando espaço para dúvidas. Aquele não era, de todo, um jantar
informal entre amigos. Era um jantar de negócios.
- E o que é que pretende de
mim? – Perguntou João, olhando-o meio de lado.
- A sua companhia. – Disse,
olhando fixamente para Ana, que ao ouvir estas palavras se encolheu um pouco na
cadeira. Céu olhou para César sub-repticiamente, perguntando-se o que estava
ele a fazer. César continuou – Quero comprar a sua empresa.
João olhou-o com um ar grave,
enquanto tentava perceber se o trocadilho de palavras que ele tinha usado era
intencional, pondo de lado esse pensamento de imediato. Aliás, bastava olhar
para “Veronika”, a mulher que ele próprio cobiçava há anos e, em todo esse
tempo, o mais perto que estivera dela era este momento, sentado a esta mesa.
- A minha empresa não está à
venda. – Respondeu com um ar sério.
- Tudo está à venda. Tudo tem
um preço.
- Acha mesmo isso? – Perguntou
Ana, curiosa.
- Acho. Claro que o preço não
tem sempre de ser traduzido em valor monetário. Há coisas mais importantes que
o dinheiro.
- Bem, a minha empresa não
está. – Apressou-se João a dizer.
As entradas chegaram,
interrompendo a conversa. Todos iniciaram a refeição, deliciando-se com os
sabores requintados que puseram a conversa em pausa. De qualquer forma, o
anuncio da intenção de César tinha deixado a atmosfera um pouco mais tensa do
que antes, pelo que as palavras que se foram trocando tinham mais a ver com a
comida do que com negócios. Quando terminaram as entradas, foram servidos os
pratos principais, continuando todos a deliciar-se, quer com a comida, quer com
os vinhos, absolutamente deliciosos.
Logo que terminaram, foram
pedidas as sobremesas. Ana escolheu um Parfait de Baunilha e alfazema, Céu
escolheu rosas, líchias, lima e amêndoa, João pediu toucinho-do-céu com
citrinos e César pediu a selecção de queijos nacionais.
César pediu um café, no que
foi imitado por todos, menos pela Céu e enquanto aguardava rodava o copo com o
que restava do vinho tinto por debaixo do nariz, soltando assim o seu aroma.
- João, sabe o quanto é raro
entrar num restaurante de luxo em L.A. e encontrar vinhos Portugueses nas
cartas? Não digo que eles não tenham lá bons vinhos, e Napa Valley tem
produções de excelente qualidade. Mas, há cá vinhos considerados medíocres que
são melhores do que o melhor de lá… Sabe, então, porque é que os nossos vinhos
não estão lá?
- Não… – respondeu João sendo
sincero.
- Porque ninguém em L.A. ouviu
falar de Portugal, e quando ouviu pensam que é uma cidade ou região espanhola.
Ou seja, para eles vinho Espanhol ou Português é a mesma coisa.
- Mas não é. Não tem nada a
ver… – disse João com uma ponta de indignação.
- Eu sei disso. Os Portugueses
que lá vivem também. Mas, de resto, mais ninguém sabe. E isso, para lhe ser
franco, chateia-me.
João assentiu com a cabeça,
concordando. César continuou:
- Quero a sua companhia para
integrar num grupo de empresas que detenho. Será expandida, criando mais postos
de trabalho. As minhas condições para si são simples: um ordenado que lhe
permitira manter ou até melhorar o seu estilo de vida actual e uma participação
nos lucros directos da sua empresa como bonificação anual. Eu tenho a vantagem
de poder controlar todo o processo desde a produção, armazenamento e
distribuição interna e externa e a sua empresa ganha uma posição única em
relação ao mercado internacional a que não pode almejar sozinha. Esta é a minha
proposta.
João ficou em silêncio
enquanto considerava o que César lhe tinha dito. Foi Ana quem se adiantou:
- E se não vendermos?
- Essa não é uma opção. – Disse
César calmamente com um sorriso nos lábios e uma certeza absoluta. Encarou Ana,
olhando-a firmemente nos olhos, com uma expressão suave, colocou uma mão na
perna de Céu e continuou, num tom de voz grave e carregado de assertividade –
Eu consigo sempre o que quero, seja de que maneira for. – E virou-se, olhando
para a Céu, profundamente nos olhos e perguntou – Não é?
Céu limitou-se a acenar com um
sorriso, fazendo o seu papel, que percebia agora perfeitamente qual era, não
sem uma pequena pontada de tristeza. César voltou de novo o seu olhar para Ana:
Se eu decidir comprar outra
empresa dentro da vossa área vou expandi-la como farei com a vossa se a
comprar, e vou começar a açambarcar o mercado, até chagar a um ponto em que
vocês estejam a lidar com lucros marginais e estejam sobredimensionados.
Portanto, ou ficam comigo e lucram com isso, ou escolhem não ficar e arriscam-se
a perder o que têm. No fundo é assim tão simples.
Ana, talvez pelo que foi dito,
pelo tom de voz absolutamente calmo e sedutor, pela expressão divertida de
César ou, se calhar e sobretudo, por causa da força que aquele olhar tinha
estava ligeiramente corada, e não era do vinho. Já João fazia os possíveis para
não olhar para a mão de César pousada um pouco acima do joelho de Céu.
- Mas não quero uma resposta
vossa hoje, nem vamos estragar a refeição pelo teor da conversa… além disso,
temos de ir. Tenho de levar a “Veronika” ao trabalho.
Ana ficou curiosa:
- A sério? A esta hora? O que
faz, Veronika? Céu sorriu.
- Sou bailarina.
- A sério? Ballet clássico?
- Não, mais contemporâneo.
- Que inveja. – Continuou Ana
com o rosto perfeitamente iluminado de admiração – Eu sempre quis ser
bailarina, mas nunca tive a oportunidade…
- Estamos sempre a tempo, ainda
que seja só para nós próprios. Há academias que lhe podem dar aulas. Nunca
chegará, de certeza, à categoria de uma profissional, mas pode sempre
aproveitar para se exercitar um pouco…
- E conhece algum sítio que
recomende?
- De certeza que lhe poderá dar
algumas referências para a próxima. – Interrompeu César de forma quase
indelicada. E virou-se para a Céu – Temos mesmo de ir.
Sim, temos. – Assentiu Céu,
levantando-se, no que foi imediatamente imitada por César e João. César afastou
a cadeira, cavalheiro como sempre, dando-lhe mais espaço para sair da mesa, ela
despediu-se de Ana, que continuou sentada e de João, tendo César feito o mesmo
em seguida, beijando as costas da mão de Ana, como tinha feito à chegada, e
selou o encontro com um aperto de mão a João.
Já no carro, Céu não se
conteve:
- Porque é que tenho a sensação
de ter passado a noite a ver dois miúdos a comparar o tamanho das pilas?
- Porque foi isso mesmo que
aconteceu.
- E o que é que achas que ficou
demonstrado?
- Que a minha era claramente
maior. Ele soube disso assim que te viu, e ela descobriu por ela própria.
- Estavas a seduzi-la?
- Não. – Respondeu César, o que
lhe valeu um olhar que dizia claramente não-brinques-comigo-que-eu-estava-lá-e-vi
– Mas quis que ela se sentisse seduzida, e acho que atingi o meu objectivo. Não
achas?
- Acho que se quisesses a
levavas para casa…
- Já tenho gente que chegue em
casa.
Céu sorriu. Sabia que ele
estava a ser sincero. Aliás, ele era sempre sincero com ela, tanto que às vezes
até doía.
- Achas que eles vão vender-te
a empresa que queres?
- Tenho a certeza. Vão preferir
ter algo certo a ficar na dúvida se ainda terão algo daqui a dois ou três anos.
- Deixa-me dizer-te uma coisa:
César Caetano, tu és um grande sacana!
- Eu sei… – respondeu César com
um sorriso.
Sem comentários:
Enviar um comentário
O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!