Seguiam a uma velocidade
relativamente elevada pela auto-estrada e ele continuava com aquele mesmo
sorriso meio enigmático no rosto, o mesmo desde o final da sua actuação, quando ele leva a mão ao bolso interior do
casaco, tira a sua cigarreira de prata e lha passa para a mão.
- Não te importas de acender
um? Não dava jeito distrair-me a esta velocidade…
Ela abriu a cigarreira e o
cheiro da erva invadiu as suas narinas, junto com o resto do carro.
- Tens o isqueiro no bolso de
fora do casaco… – e ela leva lá a mão tirando um elegantíssimo isqueiro em
metal dourado. Acendeu o cigarro e deu uma passa demorada, engolindo o fumo e prendendo-o
por um pouco, expelindo-o em seguida, enquanto olhava com curiosidade para o
isqueiro.
- É um Zippo Blu. – Disse ele,
esclarecendo-a.
Ela deu mais uma passa e
passou-lhe o cigarro, que ele agarrou com a mão esquerda e levou de imediato
aos lábios, puxando uma passa enquanto abria uma fresta do vidro do carro de
modo a dissipar o fumo no interior. Ela colocou de novo o isqueiro no bolso
dele.
Ela encostou-se no banco,
recostou-se, aninhou-se, fechou os olhos e sentiu-se a vaguear por um momento.
Sentia uma vontade enorme de saber o que lhe ia na cabeça, mas conteve-se. Ele
deu mais uma passa e travou, passando-lhe o cigarro novamente.
- Quando é a tua próxima folga?
- Porquê? Tens alguns planos?
- Posso vir a ter. Não está
nada certo…
Ainda bem que falas nisso.
Estava para te dizer que precisava ir a casa nesse dia. Tenho lá algumas coisas
que quero ir buscar, e dava-me jeito ir directo para lá, quando sair, se não te
importares, claro.
- Não, claro que não me
importo, mas quando é?
- Daqui a três dias.
- Mas se aparecer alguma coisa
para o fim do dia…?
- Claro que não há problema.
Era mais para me dispensares da tarde com a Andreia…
- Não há problema. Acho que a
Andreia até vai gostar da folga. Ela sorriu.
- Acho que sim, vai.
Ela passou-lhe o cigarro de
volta. Ele deu uma passa longa.
- Ela está diferente… disse
ele.
- A Andreia?
- Sim.
- Pois, com a ginástica começa
a ter o corpo mais firme, tem mais postura…
- Não era nisso que estava a
falar…
- Então?
- Está muito mais assertiva. Já
consegue manter uma posição firme em relação às outras pessoas. Não se intimida
com tanta facilidade. Tenho-a visto a lidar com as tarefas que lhe dou com uma
confiança muito grande. Não estava à espera de uma evolução tão grande em tão
pouco tempo…
Ela viu ali a sua oportunidade
de puxar a conversa para onde queria.
- Sim, é verdade. Tenho
reparado nisso também. Ainda assim, só queria que visses a cara dela esta tarde
quando me viu a ensaiar o número desta noite.
Ele levantou o sobrolho, não
tirando os olhos da estrada, mas não fez qualquer comentário, ao contrário do
que ela esperava. “Que sacana de um raio” pensou e como que em resposta aos
seus pensamentos o sorriso dele ficou mais… trocista?!
“Estas mesmo a provocar-me!”
pensou. “Mas olha que este jogo é para jogar a dois.” E com este pensamento,
tirou a mala de cima das pernas e cruzou-as, passando a esquerda por cima da
direita, deixando-se depois descair até encostar a cabeça no vidro expondo todo
o seu lado e pondo em evidência a sua coxa e as suas pernas magnificamente
desenhadas. Ele ligou o pisca, anunciando a saída da auto-estrada e levantou o
pé, fazendo a velocidade diminuir, saindo depois pela rampa lateral. Já a andar
bem devagar, abriu o cinzeiro do carro e apagou o cigarro, passando subtilmente
a vista pela visão que lhe era oferecida, mas a sua expressão manteve-se
inalterada enquanto conduzia devagar na estrada secundária.
Para sua desilusão ele
manteve-se em silêncio o resto do caminho, sem que no entanto o sorriso lhe
deixasse os lábios.
Saíram do carro na garagem e
sentiram de imediato o ar quente e abafado da noite, puro contrate com a
temperatura controlada dentro do SLS. Dirigiram-se à porta das traseiras e
quando estavam prestes a entrar ele perguntou:
- Estás cansada e queres ir
deitar-te já ou queres beber alguma coisa?
- Não, estou bem. Um bocado “lá
em cima” mas estou bem. Posso fazer-te companhia.
- Não quero que te sintas
obrigada a ficar.
- Não, não sinto. Ele sorriu.
- E o que vais querer? –
Perguntou ele enquanto ela pousava a mala numa cadeira e se sentava numa
espreguiçadeira.
- Aquilo que tu fores beber.
- E queres correr novamente
esse risco?
Ela pausou um pouco, tentando
fazer um ar pensativo mas divertido.
- Ontem acabei por não me dar
assim muito mal, que me lembre. Ele franziu o sobrolho, divertido também.
- Como queiras. – Disse, retirando-se,
e deixando-a esticar-se na espreguiçadeira. Ela, fazendo jus ao nome da peça de
mobília, espreguiçou-se como uma gata com cio, o que não andava muito longe da
verdade.
Ele voltou, já sem casaco, com
as mãos cheias pela mesma garrafa de whisky de ontem, um balde com gelo, e dois
copos. Pousou tudo na mesa ao lado dela, arrastou uma espreguiçadeira para o
outro lado da mesa, serviu dois copos, entregando-lhe um a ela, tirou a
cigarreira e o isqueiro do bolso das calças, que pousou na mesa, esticou-se na
espreguiçadeira, soltou a camisa das calças, desabotoando-a em seguida, bebeu
um gole da bebida, abriu a cigarreira, tirou um cigarro que acendeu com uma
passa longa, e deixou-se ficar. Depois deu outra passa e esticou o braço para
ela, passando-lhe o cigarro.
Enquanto ela dava uma passa
ele perguntou:
- Acreditas em Deus?
Ela virou-se de imediato para
ele, tentando perceber o sentido da pergunta, de tal forma inesperada que ela
ficou alguns segundos sem reacção.
- Sim. Não é que seja
religiosa, ou assim, mas acredito em algo…
- Gostavas de o conhecer?
- Deus?
- Sim.
- Mas estas a falar do quê,
mais concretamente?
- Daquilo que acabei de dizer.
Gostavas de conhecer Deus?
- Hipoteticamente?
- Sim, claro.
- Acho que sim. Dás-te bem com
Ele? – Perguntou passando o cigarro de volta.
- Tenho dias… – disse ele com o
seu ar a tornar-se um pouco mais grave num breve vislumbre, num lampejo,
voltando o sorriso que tinha estado no seu rosto a noite toda quase de imediato
enquanto recebia o cigarro e o levava aos lábios dando uma passa profunda.
- Como é que ficou a miúda
quando te viu esta tarde?
“Irra… até que enfim!” pensou
ela, sentindo-se secretamente satisfeita com a sua pequena vitoria e decidiu
provoca-lo mais um pouco, adiando a resposta.
- Tens noção que já me podias
ter feito essa pergunta há meia hora atrás…
- Tenho, mas qual seria a
piada? Afinal, não és tu quem gosta de dançar o Tango?
Ela fez uma cara irritada,
fingiu-se furiosa, virou-se para o lado e anunciou:
- Nem me digno a responder-te.
- Porquê?
- Porque estas a provocar-me e
isso não se faz a uma senhora.
- Pois não. Nisso tens razão. –
Respondeu ele com um desinteresse notável.
Fez-se um silêncio em que era
óbvio que ela esperava que ele cedesse. Ainda não se tinha decidido se a ultima
resposta dele era a sério, a brincar, ou um misto das duas. Mas ele parecia
absolutamente indiferente à decisão dela. Ia para lhe passar o cigarro
novamente, mas ela recusou. Ele deu mais uma passa, bebeu o resto da sua bebida
de um trago.
- Como preferes continuar a
dança, eu aproveito para me retirar graciosamente. – Disse com um sorriso,
deixando o rosto dela grave de desapontamento. Ele virou as costas e começou a
caminhar para a casa. Ouviu-a dizer:
- Ficou afogueada.
Ele parou, virou-se com um
sorriso quase malévolo estampado no rosto e assentiu em aprovação. Depois
continuou, deixando-a sem saber o que pensar na espreguiçadeira.
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