Escusado será dizer que assim que entrei pela porta o Fernandes veio
direito a mim.
“Mas tu perdeste completamente o juízo?”
“Se calhar… Mas tinha de me defender.”
“Mas ao dizeres que a mensagem está codificada na chuva… Vai pôr toda a
gente a olhar para o céu, à espera que chova.”
“É provável. Mas olha, aquilo que sei é que temos de tirar o sensor daqui.
E temos de tirar os programas do computador, também.”
“E o que é que vais fazer agora?”
“Tudo tem uma solução. Há algum cibercafé por aqui?”
“Pá, conheço um na parede…”
“Levas-me lá?”
“Claro… mas porquê?”
“Já vais ver.”
Fui directo ao meu computador, gravei tudo o que me interessava para um DVD
e saímos. Aluguei um PC por meia hora, arranjei espaço num servidor de internet
e carreguei o conteúdo do DVD. Programei as coisas de modo a que o acesso
pudesse ser feito até por telemóvel. Só tinha de aceder, mediante palavra
passe, mandar os dados em bruto e o programa traduziria a mensagem.
Dei a palavra passe ao Fernandes.
“Mas para que é que eu quero isto?”
“Para o caso de acontecer alguma coisa estranha.”
“Mas não podias ter feito isto de casa?”
“Podia, mas assim ninguém vai saber onde está. O computador pode ficar em
tua casa, bem como o sensor. Só lá vai estar parte. A outra parte, a mais
importante, a chave, vai estar aqui. E só nos dois é que temos acesso.”
“Mas porquê aqui?”
“Porque vai estar à vista de toda a gente. É um sitio onde dificilmente vão
procurar, até porque o acesso foi feito de um sitio publico.”
“Percebi. Mas já viste a responsabilidade que me estás a pôr em cima?”
“Tu vais saber lidar com ela.”
Voltámos a casa. O primeiro problema estava resolvido.
De manhã descobri que a mensagem era manchete de quase todos os jornais. Os
noticiários televisivos falavam exaustivamente nela. Os jornalistas tentavam
arrancar reacções aos líderes locais dos diferentes credos, mas as religiões
remetiam-se ao silêncio, coisa que achei normal, a princípio. Mas depois o
tempo foi passando e o silêncio manteve-se.
Entretanto, mudei o sensor de sítio. Havia um servidor velho no edifício
onde trabalhava, mas que ainda estava ligado, embora tivesse já pouco uso. Foi
a ele que liguei o sensor. Fiz um software de raiz para gravar os padrões e
fazer o envio dos mesmos para uma conta de e-mail anónima. Programei-o de
maneira a ser quase como um vírus, e a ficar dissimulado no sistema, sem estar
à vista de ninguém.
Ao fim de uma semana, ao chegarmos a casa, descobrimos que esta tinha sido
assaltada. Curiosamente, embora tudo estivesse revolvido, apenas faltava o
material informático.
Fizemos a participação do roubo. Os agentes policiais que apareceram não
quiseram levar a queixa muito a sério. Também não me preocupei. Apenas levaram
um computador desactualizado e que neste momento não tinha nada lá dentro a não
ser o sistema operativo.
Entretanto a opinião pública de muitos países começou a questionar o
silêncio. Primeiro na Europa e nos Estados Unidos, mas aos poucos foi-se
espalhando, contagiando Israel e os países islâmicos.
O Dalai Lama foi o primeiro líder religioso que se pronunciou, lembras-te?
Francamente não o esperava. Afinal ele não tinha por que se rever naquela
mensagem.
“A mensagem está de acordo com os preceitos budistas da universalidade da
paz e do autoconhecimento.”
O facto de ele se disponibilizar, enquanto líder religioso isento da
polémica, para servir de mediador para o começo de um diálogo foi algo de
extraordinário.
Mas ainda assim o silêncio mantinha-se.
Foram as pessoas que começaram a forçar esse silêncio, a pedir explicações,
a perguntar quais eram as visões de cada uma das fés visadas. Os debates
sucederam-se, com ideias completamente validas misturadas com os mais completos
disparates. Mas ainda assim evoluía a inquietação.
Depois veio o primeiro sinal. Um encontro de igrejas cristãs. Católicos,
Ortodoxos e Luteranos juntaram-se numa cimeira com vista à um dialogo
ecuménico. Não teve conclusões espectaculares, mas permitiu que algumas das
divergências fossem esbatidas e eliminadas outras que já não faziam sentido à
luz dos tempos actuais.
Mas aquilo que mais me tocou directamente foi quando o Ayatollah Ali
Shirazi , de visita a Lisboa, pediu expressamente para falar comigo.
Cheguei a considerar se falar com ele traria alguma coisa de útil a toda a
discussão que havia na altura. Afinal, continuava a querer resguardar-me. Mas
depois decidi falar e encontrei um homem afável e preocupado.
Achei curioso o facto de se aproximar de mim com algum receio. Falamos
imenso, durante uma tarde inteira.
Quando partiu disse-me algo que foi um prenúncio do que veio depois.
“Sabe Gabriel, apesar dos meus receios você é um homem com uma visão
curiosa do mundo. Não é realmente nenhum profeta, portanto não entra em colisão
com as palavras de Maomé. Esse sim foi o último profeta. Mas é um homem a quem
foi dada uma compreensão diferente. Talvez seja um sinal de Deus…”
Foi ele o primeiro dentro do Islão a dizer que as Jihads não tinham
justificação se implicassem tomar uma vida, uma vez que contrariavam
directamente a lei de Deus. Que tirar uma vida era errado, por mais nobre que
fosse o motivo. Que havia sempre outra via, e que a via da violência apenas
podia levar a mais violência. Foi seguido por outros.
E já viste onde as coisas estão agora?
Existe de facto um diálogo alargado. Os mais distantes e cépticos são os
Judeus, mas seria de esperar que o fossem, sitiados como estava o estado de
Israel. Mas o reconhecimento pelos estados islâmicos foi o primeiro passo. A
deposição de armas e o abandono unilateral da luta armada foi outro, e qualquer
acção de Israel se tornou insustentável. E já viste onde se está agora, desde
que Jerusalém foi convertida numa cidade estado, à semelhança do Vaticano, com
um governo repartido pelas fés que consideram a cidade sagrada? Até
possibilitou o reconhecimento da palestina enquanto pais, por parte de Israel. E
finalmente vê-se um prenúncio de paz.
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