quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Chuva - LIV

 

Escusado será dizer que assim que entrei pela porta o Fernandes veio direito a mim.

“Mas tu perdeste completamente o juízo?”

“Se calhar… Mas tinha de me defender.”

“Mas ao dizeres que a mensagem está codificada na chuva… Vai pôr toda a gente a olhar para o céu, à espera que chova.”

“É provável. Mas olha, aquilo que sei é que temos de tirar o sensor daqui. E temos de tirar os programas do computador, também.”

“E o que é que vais fazer agora?”

“Tudo tem uma solução. Há algum cibercafé por aqui?”

“Pá, conheço um na parede…”

“Levas-me lá?”

“Claro… mas porquê?”

“Já vais ver.”

Fui directo ao meu computador, gravei tudo o que me interessava para um DVD e saímos. Aluguei um PC por meia hora, arranjei espaço num servidor de internet e carreguei o conteúdo do DVD. Programei as coisas de modo a que o acesso pudesse ser feito até por telemóvel. Só tinha de aceder, mediante palavra passe, mandar os dados em bruto e o programa traduziria a mensagem.

Dei a palavra passe ao Fernandes.

“Mas para que é que eu quero isto?”

“Para o caso de acontecer alguma coisa estranha.”

“Mas não podias ter feito isto de casa?”

“Podia, mas assim ninguém vai saber onde está. O computador pode ficar em tua casa, bem como o sensor. Só lá vai estar parte. A outra parte, a mais importante, a chave, vai estar aqui. E só nos dois é que temos acesso.”

“Mas porquê aqui?”

“Porque vai estar à vista de toda a gente. É um sitio onde dificilmente vão procurar, até porque o acesso foi feito de um sitio publico.”

“Percebi. Mas já viste a responsabilidade que me estás a pôr em cima?”

“Tu vais saber lidar com ela.”

Voltámos a casa. O primeiro problema estava resolvido.

De manhã descobri que a mensagem era manchete de quase todos os jornais. Os noticiários televisivos falavam exaustivamente nela. Os jornalistas tentavam arrancar reacções aos líderes locais dos diferentes credos, mas as religiões remetiam-se ao silêncio, coisa que achei normal, a princípio. Mas depois o tempo foi passando e o silêncio manteve-se.

Entretanto, mudei o sensor de sítio. Havia um servidor velho no edifício onde trabalhava, mas que ainda estava ligado, embora tivesse já pouco uso. Foi a ele que liguei o sensor. Fiz um software de raiz para gravar os padrões e fazer o envio dos mesmos para uma conta de e-mail anónima. Programei-o de maneira a ser quase como um vírus, e a ficar dissimulado no sistema, sem estar à vista de ninguém.

Ao fim de uma semana, ao chegarmos a casa, descobrimos que esta tinha sido assaltada. Curiosamente, embora tudo estivesse revolvido, apenas faltava o material informático.

Fizemos a participação do roubo. Os agentes policiais que apareceram não quiseram levar a queixa muito a sério. Também não me preocupei. Apenas levaram um computador desactualizado e que neste momento não tinha nada lá dentro a não ser o sistema operativo.

Entretanto a opinião pública de muitos países começou a questionar o silêncio. Primeiro na Europa e nos Estados Unidos, mas aos poucos foi-se espalhando, contagiando Israel e os países islâmicos.

O Dalai Lama foi o primeiro líder religioso que se pronunciou, lembras-te? Francamente não o esperava. Afinal ele não tinha por que se rever naquela mensagem.

“A mensagem está de acordo com os preceitos budistas da universalidade da paz e do autoconhecimento.”

O facto de ele se disponibilizar, enquanto líder religioso isento da polémica, para servir de mediador para o começo de um diálogo foi algo de extraordinário.

Mas ainda assim o silêncio mantinha-se.

Foram as pessoas que começaram a forçar esse silêncio, a pedir explicações, a perguntar quais eram as visões de cada uma das fés visadas. Os debates sucederam-se, com ideias completamente validas misturadas com os mais completos disparates. Mas ainda assim evoluía a inquietação.

Depois veio o primeiro sinal. Um encontro de igrejas cristãs. Católicos, Ortodoxos e Luteranos juntaram-se numa cimeira com vista à um dialogo ecuménico. Não teve conclusões espectaculares, mas permitiu que algumas das divergências fossem esbatidas e eliminadas outras que já não faziam sentido à luz dos tempos actuais.

Mas aquilo que mais me tocou directamente foi quando o Ayatollah Ali Shirazi , de visita a Lisboa, pediu expressamente para falar comigo.

Cheguei a considerar se falar com ele traria alguma coisa de útil a toda a discussão que havia na altura. Afinal, continuava a querer resguardar-me. Mas depois decidi falar e encontrei um homem afável e preocupado.

Achei curioso o facto de se aproximar de mim com algum receio. Falamos imenso, durante uma tarde inteira.

Quando partiu disse-me algo que foi um prenúncio do que veio depois.

“Sabe Gabriel, apesar dos meus receios você é um homem com uma visão curiosa do mundo. Não é realmente nenhum profeta, portanto não entra em colisão com as palavras de Maomé. Esse sim foi o último profeta. Mas é um homem a quem foi dada uma compreensão diferente. Talvez seja um sinal de Deus…”

Foi ele o primeiro dentro do Islão a dizer que as Jihads não tinham justificação se implicassem tomar uma vida, uma vez que contrariavam directamente a lei de Deus. Que tirar uma vida era errado, por mais nobre que fosse o motivo. Que havia sempre outra via, e que a via da violência apenas podia levar a mais violência. Foi seguido por outros.

E já viste onde as coisas estão agora?

Existe de facto um diálogo alargado. Os mais distantes e cépticos são os Judeus, mas seria de esperar que o fossem, sitiados como estava o estado de Israel. Mas o reconhecimento pelos estados islâmicos foi o primeiro passo. A deposição de armas e o abandono unilateral da luta armada foi outro, e qualquer acção de Israel se tornou insustentável. E já viste onde se está agora, desde que Jerusalém foi convertida numa cidade estado, à semelhança do Vaticano, com um governo repartido pelas fés que consideram a cidade sagrada? Até possibilitou o reconhecimento da palestina enquanto pais, por parte de Israel. E finalmente vê-se um prenúncio de paz.

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