Uns dias depois houve uma noite em que cai num sono profundo, coisa que era
extremamente raro acontecer. Nem dei pela chuva que caiu durante a noite.
Acordei quando o telemóvel que tinha na mesa-de-cabeceira ao lado da cama
deu o sinal de mensagem recebida. Olhei para o visor.
Um Deus, uma lei, uma grei. Muitas leis, muitas greis, muitos Deuses. Não
há senão um. Unem-se pela proximidade. Não se devem separar pela diferença. Um
Deus único em cada um. Não matarás.
Olhei para a mensagem. Tentei fazer sentido dela, mas a verdade é que havia
demasiadas implicações nas várias frases. A mensagem era indubitavelmente de
índole religiosa, mas escapava-me o propósito.
Na dúvida, levantei-me e fui ao computador. Verifiquei a mensagem. Era
exacta.
Passei o resto da noite a matutar nela, mas sem conseguir chegar fosse a
que conclusão fosse. Uma parte em especial baralhava-me. “Um Deus único em cada
um”. Que queria isto dizer?
De manhã mostrei a mensagem ao Fernandes. Podia ser que ele conseguisse ver
algo que eu não tinha visto ainda. A reacção dele não foi muito diferente da
minha.
“O que é que isto quer dizer, pá?” perguntou.
“Não faço ideia. Quer dizer, faço demasiadas ideias e nenhuma delas é
clara. Portanto acabo por não fazer uma ideia concreta.”
“Pá, também ainda é de manhã, por isso pode ser que um café ajude a aclarar
as ideias…”
“Sim, pode ser que sim.”
Mas não aclarou, e durante o dia não tive qualquer pista que me pudesse dar
um significado. Apenas me veio ao espírito o facto de andar a adiar um encontro
com o Cardeal Patriarca de Lisboa há bastante tempo. Era obvio que a mensagem
teria de ser revelada, mas tinha algum receio de o fazer sem ter uma ideia
clara do que queria dizer.
Mas lembrei-me, e se não for suposto eu ter uma ideia clara e simplesmente
passa-la? Era algo que não me deixava muito confortável, mas a verdade é que
nada do que me acontecia à meses me deixava confortável. Eu tinha que fazer o
que era suposto, e mais nada.
Ainda assim, antes de revelar a mensagem ao mundo, achei por bem falar com
o cardeal. Podia ser que a visão dele me desse alguma pista e algum conforto.
Uma vez decidido, assim foi feito. Telefonei. O cardeal quis receber-me
nessa mesma tarde, ainda que tivesse já compromissos prévios. Eu tomei isso
como um sinal.
Chegar à Sé de Lisboa, por estes dias, era um autêntico pesadelo. Tinha
resistido e este terramoto, como ao de 1755, mas a verdade e que estava rodeada
de ruas fechadas ao trânsito. Decidi ir a pé, quando sai do trabalho. Podes
acreditar que não foi uma boa decisão.
Pelo caminho as pessoas vinham ter comigo. Se me tratavam com deferência, a
maior parte, a verdade é que algumas tratavam-me como se eu fosse uma estrela
do mundo do espectáculo. Vinham ter comigo, falavam, tocavam, riam…
…não foi mesmo uma boa decisão.
Mas lá consegui chegar à Sé, um pouco depois do que esperava. Entrei e
fiquei parado a observar o altar, de pé, no centro da nave. As poucas pessoas
que lá estavam espalhadas ficaram a olhar para mim com um misto de sentimentos,
que era óbvio. O facto de eu estar ali de pé, sem mostrar qualquer deferência
perante o altar, para aquelas pessoas devia ser quase uma heresia. Por outro
lado, reconheciam-me. Sei que para elas eu significava algo que vinha daquilo
que elas adoravam.
Mas tenho que te dizer que gostei do recolhimento que ali tive. Ninguém
veio ter comigo, sem dúvida em respeito ao sítio onde se encontravam. Foi uma
mudança agradável, depois do que se tinha passado no caminho.
Ao fim de algum tempo um homem idoso entrou pela lateral do altar e
dirigiu-se ao mesmo com qualquer coisa na mão. Olhou e viu-me. Veio ter comigo.
“Boa tarde. O Sr. deseja alguma coisa?”
“Estou aqui para falar com o Sr. Cardeal.”
“Com o Sr. Cardeal? E ele espera-o?”
“Sim, ele está à minha espera.”
“E o Sr. é…?”
“Gabriel Guerra.”
O homem olhou para mim com espanto e reconhecimento.
“Peço desculpa, não o reconheci, se bem que a sua cara não me parecia
estranha. Mas sabe, a idade não perdoa e a vista já não é o que era…”
“Não peça desculpa. Não tem qualquer obrigação de me reconhecer.”
“Venha comigo, por favor. Eu levo-o”
“Com certeza.”
Segui o homem. Ao chegarmos ao nosso destino ele fez questão de me
anunciar. Fez-me entrar em seguida para uma sala ampla onde o Cardeal estava
sentado por detrás de uma secretária de madeira maciça, antiga. Aliás, toda a
sala estava pesada com mobiliário antigo e tecidos vermelho vivo e dourado.
Tudo muito tradicional e sem grande espaço para a inovação. Não seria de
esperar outra coisa.
O Cardeal levantou-se para me cumprimentar calorosamente, com um sorriso
aberto.
“Sr. Gabriel, é um gosto conhecê-lo finalmente.” Disse.
Eu limitei-me a cumprimentá-lo. Ele continuou.
“Então o que o trás por cá?”
“Aparentemente a vossa vontade expressa de falar comigo.”
“Aparentemente?”
Esta pequena observação disse muita coisa. Claro que era apenas
aparentemente. Eu tinha os meus motivos para estar ali. Graças à minha frase
ele sabia-o neste momento. Era um homem inteligente e perspicaz. Tinha que ter
algum cuidado com o que dizia. Ele estava atento.
“Sim, o convite para uma conversa consigo partiu do seu bispo auxiliar. Mas
uma vez que não foi formulada por si, directamente, resta-me a dúvida.”
“Não há dúvida de espécie alguma. É verdade que queria falar consigo.”
“Posso então saber acerca do quê?”
“Claro, mas antes disso, deixe-me cumprir o meu papel de anfitrião. Deseja
tomar alguma coisa? Um café, um chá?”
“Aceito um chá verde, se for possível.”
Ele virou-se para a secretária, carregou num botão de um intercomunicador e
pediu para nos trazerem o chá. Depois voltou-se novamente para mim.
“Sentamo-nos?” indicando dois pequenos sofás que estavam de frente um para
o outro perto da janela. Sentámo-nos.
Já depois de sentados ele começou.
“Bem, Sr. Gabriel, o motivo pelo qual queria falar consigo prende-se com
alguma preocupação que há da parte da Igreja em relação a si.”
“A Igreja está preocupada comigo?”
“Claro. Perceba-nos, por favor, e não leve a mal a nossa intenção. Mas de
facto, quando o senhor apareceu com a previsão do terramoto nós perguntámo-nos
de imediato quem o senhor seria. Sabe, em alturas de tribulação as pessoas têm
tendência a olhar para os céus em busca de sinais. E o senhor apareceu e para
as pessoas foi um sinal. Mas o facto é que foi e é um sinal que se manteve
dúbio. É certo que nunca afirmou a proveniência das suas profecias…”
“…revelações!”
“…seja, mas a verdade é que para alguém temente a Deus elas só podem ter
uma proveniência.”
“Sim. Creio que sim.”
“E no entanto, na conversa que teve com D Martinho afirmou não professar
qualquer religião.”
“Verdade. Não professo qualquer religião.”
“Isso deve deixá-lo confuso em relação à proveniência das revelações, não?”
“Não. Não deixa. Não assumi automaticamente que viessem de Deus. Há muitas
hipóteses sobre a proveniência. Além disso o facto de eu não professar nenhuma
religião não quer dizer que eu não acredite em Deus.”
“Considera-se um crente?”
“Sim, mas aquilo que eu penso que é Deus apenas encaixa um pouco nas vossas
concepções. Creio ter uma visão diferente da natureza da divindade, de modo que
as opções de cada religião me parecem limitadas, tendo portanto apenas
parcialmente razão.”
“E qual é para si a natureza da divindade?” Pensei um pouco antes de lhe
responder. Ele acrescentou “Não acredita que Deus saberá distinguir os justos e
recompensá-los?”
“Acredito que não há distinções a fazer. Acredito que tudo é, foi e sempre
será. O próprio universo é divino e o determinismo impele-nos para a
divindade.”
“Acredita no destino?”
“Acredito que a cadeia de causas e efeitos que começou no princípio do
universo é de tal forma previsível que é inevitável estarmos aqui, e o facto de
estarmos é prova da causa primordial, bem como todas as acções que nós tomamos
e tomaremos no futuro o são, porque são todas consequências dessa causa
primordial.”
“E qual seria a causa primordial?”
“Deus, claro.”
“Mas aquilo que me disse quase reduz Deus a uma fórmula matemática…”
“Não, eleva-o a fórmula resolvente do universo.”
“Mas isso descaracteriza Deus…”
“Não, transforma-o em todas as possibilidades que existem no universo a
cada momento do tempo, unindo-as. O uno e indivisível.”
“Isso implicaria que Deus é tudo.”
“Claro, incluindo nós próprios. Nós somos Deus e a nossa vontade é também
vontade de Deus, junto com todas as outras vontades, criando um pensamento
único que é o próprio universo.”
“Compreende que essa é uma ideia extremamente perigosa…”
“Sim, mas eu não a partilho, porque acho que tive o meu caminho para chegar
a esta conclusão, e cada um terá de fazer o seu caminho e chegar à sua própria
conclusão. Falo agora disto consigo porque considero relevante.”
“Compreende que eu nunca poderia sancionar uma visão assim de Deus.”
“Não espero que o faça.”
“Não se sente então confuso em relação à origem das… revelações?”
“Não. Sinto-me curioso. Sobretudo devido à forma como elas chegam.”
“E posso saber de que maneira chegam elas?”
Respondi-lhe com um pequeno sorriso. Ele sorriu também e percebeu a
resposta.
O idoso que me tinha levado à sala interrompeu-nos trazendo um tabuleiro
com chá e algumas bolachas sortidas. Serviu-nos e depois retirou-se.
“Sabe, Sr. Gabriel, de alguma forma esta pequena conversa tranquilizou-me.”
“Posso saber o porquê?”
“Porque apesar de não ser um crente, é um homem de fé.”
Olhei para ele. Fé?
“Fé no sentido de acreditar em algo maior, seja lá o que for.” Continuou
ele quando percebeu a minha expressão.
Este homem era realmente perspicaz e não ocupava o cargo por um mero acaso.
“Sim, nesse sentido sou um homem de fé.”
Demos ambos um gole de chá. Ele pousou a chávena e olhou directamente para
mim.
“Há pouco a sua expressão não me escapou.”
“Que expressão?”
“O ‘aparentemente’ que usou no começo da nossa conversa. Há mais algum
motivo para a nossa conversa?”
Era uma altura tão boa como qualquer outra.
“Há.”
Passei-lhe um papel com a mensagem escrita.
Ele olhou, ficou parado longamente a olhar para as palavras, a tentar fazer
sentido delas.
“Presumo que esta seja uma nova revelação…”
“É.”
“E que quer isto dizer?”
“Não sei. Todas as outras mensagem me davam alguma pista, havia algo que me
apontava numa direcção, mas não esta.”
“Mas a mensagem pode querer dizer tantas coisas, algumas delas até bastante
contraditórias…”
“Sim, muitas. Mas é de índole claramente religiosa. Faz inclusivamente referência
a vários mandamentos.”
“Quais foram os seus pensamentos acerca desta mensagem?”
“A primeira parte parecia, logo à partida apelar a uma união de religiões.
‘Um Deus, uma lei, uma grei. Muitas leis, muitas greis, muitos Deuses. Não há
senão um’. Aliás, é uma coisa que até parece algo lógica tendo em conta que a
lei de Deus é ponto comum para o Judaísmo, Islamismo e cristianismo. Se há
apenas um Deus e uma lei, devia haver apenas uma nação.”
“Isso, para todas as religiões, é uma ideia extremamente perigosa.”
“Sim, e eu sei porque diz isso. Afinal o livro do Apocalipse refere que no
final dos tempos uma das bestas será um falso profeta que unificará todas as religiões.
Uma unificação das religiões seria um sinal certo do final dos tempos.”
“Exacto.”
“Mas depois vem ‘Unem-se pela proximidade. Não se devem separar pela
diferença’ o que, acredito, significa encetar um diálogo efectivo de forma a
achar os pontos de contacto de forma a conseguir coexistir sem atritos e numa
base de respeito.
“Mas a primeira frase pode ainda continuar a preconizar a união das
religiões.”
“Não creio que o sentido seja esse. Creio que seja mais no sentido de construir
uma aliança que permita que não haja conflitos religiosos.”
“Sim, é um ponto de vista…”
“Mas a seguir aparece ‘Um Deus único em cada um’ o que pode ser muita
coisa. Passou-me pela cabeça desde o desenvolver da consciência pessoal de cada
um, o que poderia e deveria ser o objectivo das religiões, por oposição e uma
entrega servil sem questionar nada a preceitos pré-existentes, até ao apontar
para uma dissolução pura e simples da religião. A quantidade de interpretações
no meio destes dois pontos de vista é tão grande, que não me atrevo a oferecer
uma delas como explicação.”
“E porque acha que está lá o sexto mandamento?”
“Olhando por base num entendimento entre religiões, o sexto mandamento tem
relevância. Afinal mata-se todos os dias em nome da religião. A própria jihad é uma violação do sexto
mandamento. ‘Não matarás’ é diferente de ‘Não matarás a não ser em meu nome’.
Não concorda?”
“Mas a igreja católica repudia o acto de matar…”
“Com todo o respeito deixe que lhe diga que não creio que esta mensagem
seja para si ou para a sua igreja. É para o mundo e será para o mundo. Além
disso, é capaz de me afirmar que não há pessoas a matar em nome do cristianismo
hoje em dia?”
Ele ficou em silêncio a olhar para mim. Claro que não o poderia afirmar.
Mentiria se o fizesse. Acabou por falar depois de reflectir um pouco.
“Tenciona revelar esta mensagem?”
“Sim. Mas estava inquieto acerca do seu teor, dai o querer partilhá-la
consigo. Podia ser que conseguisse distinguir o significado.”
“E conseguiu?”
“Não. Mas talvez não seja para eu entender. E eu sou apenas o mensageiro e
nada mais.”
“Posso pedir-lhe que adie um pouco a revelação? Que medite mais um pouco?”
“Pode. Tencionava fazê-lo na mesma. Tenho que pesar bem as consequências.”
“Agradeço.”
Acabamos de beber o chá. Sem mais motivo para ali estar levantei-me.
“Se me dá licença, vou indo.”
Ele levantou-se de imediato e cumprimentou-me.
“Foi um prazer falar consigo.”
Acompanhou-me à porta, abriu-a e eu comecei a sair. Parei na soleira, mesmo
à saída, virei-me para ele.
“As mensagens vêm na chuva.”
E segui o meu caminho.
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