Eram nove da noite quando o programa foi para o ar e a entrevista começou.
Viste a entrevista, na altura? Não? Ouviste falar, pelo menos, não é?
Para te situar melhor, digo-te que a encarei mesmo quase como uma conversa
informal.
Ela começou por me apresentar e depois fez a primeira pergunta.
“O Gabriel tornou-se conhecido das pessoas, pelo menos de uma forma mais
alargada quando deu a previsão do terramoto em Lisboa. No entanto já tinham
existido mensagens prévias, não é verdade?”
“É, é verdade. Três mensagens, para ser exacto.”
“Uma delas é conhecida, que foi a que o levou à serra da Lousã onde
descobriu o pequeno Artur num sítio onde era improvável que estivesse. A
mensagem dizia-lhe concretamente o lugar?”
“Não, não trazia coordenadas de GPS. Mas as mensagens, até agora, contêm
sempre uma indicação, apontam numa direcção. Foi o caso dessa. Dizia ‘segue o
sol’, que foi o que eu fiz, tomando a direcção contrária às buscas.”
“E as outras?”
“Bem, a primeira falava numa mulher que estaria só e a chorar no meio de
uma multidão e dava-me uma frase que eu lhe teria de dizer.”
“Podemos saber a frase?”
“Sim, claro. A frase era ‘A remissão dar-se-á’. Encontrei uma senhora numa
paragem de autocarro a chorar, sozinha, e disse-lhe a frase.”
“Tão simples como isso.”
“Exacto.”
“E depois?”
“Depois recebi a segunda mensagem que dizia que a remissão se tinha dado e
dar-se-ia novamente com uma indicação. Quarto vinte e dois. A tal senhora
encontrou-me na mesma paragem de autocarro e veio agradecer-me. E pareceu-me
lógico dar-lhe a nova mensagem.”
“Mas tinha alguma ideia do que falavam as mensagens?”
“Não, nenhuma. Só uns dias depois, quando fui abordado novamente pela
senhora e por um médico do IPO, soube do que se tratava.”
“E do que tratavam essas duas mensagens?”
“De duas remissões completas de cancro.”
“Quer isso dizer que as mensagens anunciavam que duas pessoas ficariam
curadas…”
“Sim, e ficaram.”
“Depois disso veio a mensagem do terramoto…”
“Sim, veio.”
“O que achou quando se viu na posse da mensagem?”
“Para ser franco, que ninguém me levaria a sério. Era normal que não
levassem.”
“Mas previu o terramoto ao minuto…”
“Sim, mas já tanta gente tinha previsto terramotos em Lisboa… Aliás, é uma
previsão fácil de fazer. Posso garantir desde já que vai haver mais.”
“Vai?”
“Claro que sim. Não sei é quando.”
“Mas isso é uma previsão que qualquer um faz…”
“Claro. Se eu disser que no ano que vem vai haver um terramoto em Lisboa
não devo falhar.”
“Mas não ficou, ainda assim, desiludido com o facto de não o terem levado a
sério?”
“Como lhe disse, não. Achei normal que não levassem. Aliás, disse isso
mesmo na altura.”
“Sim, disse. E em relação a mensagem que falava da cura da SIDA?”
“Bem, essa mensagem apareceu numa altura em que as pessoas me levariam a
sério. Afinal a previsão do terramoto tinha sido correcta, e como tal a
mensagem teve mais força.”
“Mas não temeu represálias ao divulgá-la?”
“Temi. Mas não se pode viver mergulhado no medo, não é?”
“Mas, a ser verdade que a descoberta tinha sido feita e estava escondida,
afrontou um lóbi poderoso, o da indústria farmacêutica.”
“Repare numa coisa, estar escondida não diz o porquê de o estar. O
laboratório visado veio a público explicar as suas razões.”
“Ainda assim corre neste momento, nos Estados Unidos da América, uma
investigação à indústria farmacêutica e aos laboratórios de pesquisa médica…”
“Sim, mas eu não dei qualquer indicação que levasse a isso.”
“É verdade. E a mensagem seguinte? Nunca foi publicamente divulgada, mas
teve uma menção do presidente dos Estados Unidos, bem como um agradecimento
numa conferência de imprensa.”
“Sim teve.”
“E podemos saber qual era a mensagem?”
“Sim, creio que não há qualquer problema em revelá-la agora. Era ‘Fé mal
direccionada fará negras as águas límpidas. Amanhã. Ele fará o que é certo’.”
“Foi esta mensagem que levou a que os danos do ataque à plataforma
petrolífera fossem contidos?”
“Sim. Creio que graças a ela os ataques puderam ser antecipados. De
qualquer forma seria impossível, ou praticamente impossível pará-los. Existem
mais de seis mil plataformas naquela área.”
“Já agora, a parte do ‘ele fará o que é certo’ referia-se, claro, ao
presidente dos Estados Unidos, não?”
“Por acaso creio que não. Creio que se referia à pessoa a quem eu passei a
informação.”
“Podemos saber quem é essa pessoa?”
“Não.”
Ela fez um pequeno sorriso. Esperava que eu fosse mais diplomático, talvez.
Sabes, acho que não estava habituada a que as pessoas que entrevistava tivessem
a distinta lata de sonegar informações sem uma justificação.
“Mas talvez fosse importante saber a identidade dessa pessoa a quem passou
a informação.”
“Talvez, mas não tenciono mesmo falar nessa pessoa.”
“E quando é que recebeu a mensagem?”
“Bem, na véspera.”
“Então a informação teve de ser passada bastante depressa…”
“Sim.”
“Isso torna ainda mais relevante a identidade da pessoa…”
“Como já lhe disse, não vou falar nisso.”
“Muito bem. Gabriel, durante este tempo todo tem-se resguardado, e tem
mantido o estilo de vida que tinha até à primeira mensagem, não é verdade?”
“Quase. Acho que a vida de todas as pessoas que vivem em Lisboa e arredores
teve algumas adaptações. No entanto, na medida do possível, sim. Quanto ao
resguardar-me, nunca gostei muito de ter ou de chamar as atenções para mim.”
“E no entanto, como calcula, há uma curiosidade em torno de si, coisa que
seria expectável, não?”
“Claro. Compreendo essa curiosidade, mas não creio que alterar a minha vida
fizesse alguma coisa. Sempre me senti confortável na vida que levo e sempre
cumpri o meu trabalho com gosto e brio.”
“Mas de certeza que teve ofertas e houve tentativas de desvendar a sua vida
particular.”
“Houve algumas.”
“Não se sentiu tentado a buscar o reconhecimento das pessoas?”
“Não, minimamente.”
“Mas, no entanto, obteve-o. Numa sondagem recente o seu nome aparece no
topo da lista enquanto pessoa em que a população em geral confia, à frente de
nomes consagrados da política Portuguesa…”
“Não me surpreende. Sabe, sempre fiz os possíveis por não elevar as
expectativas das pessoas. A única coisa que faço é transmitir mensagens acerca
de algo que vai acontecer, e até agora aquilo que aparece nas mensagens tem
sido exacto. Todas as expectativas que haja em torno de mim são criadas pelas
pessoas sem que eu dê azo a elas, logo nunca caí em incumprimento. As pessoas
têm tendência para acreditar em mim.”
“Mas tem noção do peso que as suas palavras têm actualmente, a nível, não
só nacional, mas internacional, senão mundial?”
“Tenho, mas há aí uma incorrecção. As palavras não são minhas. Nunca o
foram.”
“Então são de quem?”
“Não sei.”
“Tem noção de que esta é uma pergunta que está nos espíritos de toda a
gente…”
“Tenho, mas a verdade é que não sei mesmo. Isso não implica que não faça as
minhas conjecturas acerca da proveniência, mas não passam disso mesmo, de
conjecturas.”
“E não quer partilhar essas conjecturas connosco?”
“Não. Não quero lançar lenha para uma fogueira que não quero que arda. As
conjecturas que qualquer um possa estar a fazer em casa, neste momento, são tão
validas como as minhas.”
“Há quem o ache um profeta…”
“Há quem me ache um charlatão com sorte.”
“E o que é que o Gabriel se acha?”
“Seguramente nenhuma das duas hipóteses anteriores.”
“Outra coisa, Gabriel, até agora não houve uma entrevista consigo de grande
porte em que falasse abertamente acerca de si. Porquê agora?”
“Sendo brutalmente honesto, porque há uma nova mensagem e eu quero que as
pessoas me vejam pelo que sou para que não haja quaisquer dúvidas.”
“E essa nova mensagem…?”
“É complicada. É de cariz obviamente religioso. Mas não tem um destinatário
nem um significado óbvios. Pode levar a uma miríade de interpretações, algumas
delas bastante radicais. E é precisamente dos radicalismos que me quero
afastar.”
“Confesso que quando li a mensagem, há pouco, me pareceu bastante ambígua. Que
acha que ela quer dizer?”
“Lá está, não sei. Apenas tenho conjecturas que vou guardar para mim.”
“Acha que podemos então revelar a mensagem ao mundo?”
“Claro. ‘Um Deus, uma lei, uma grei. Muitas leis, muitas greis, muitos
Deuses. Não há senão um. Unem-se pela proximidade. Não se devem separar pela
diferença. Um Deus único em cada um. Não matarás’. É esta a mensagem.”
“Não quer mesmo adiantar alguma das suas ideias acerca do que aqui está
escrito?”
“É complicado. Esta mensagem não é claramente para mim, é para ser
entendida por outros que não eu. Apenas quero dizer isto e deixar isto
presente: eu apenas sou a pessoa que entrega as mensagens. Portanto, não matem
o mensageiro.”
“Mas porque diz isso?”
“Até agora todas as mensagens são acerca de qualquer coisa que se vai
passar. E seja o que for, passa-se. Isto é, o facto de sabermos que se vai
passar não nos torna capazes de evitar as coisas. Apenas nos torna capazes de
conter os danos, minimizá-los. Ora, esta mensagem, em toda a sua ambiguidade
pode significar muitas coisas, algumas delas bem graves para as religiões
focadas. Vista de um certo prisma poderia estar a anunciar o começo do final
dos tempos.”
“E quais são as religiões focadas?”
“Bem, obviamente as religiões com base na lei de Moisés, no caso o
judaísmo, o cristianismo e o islamismo.”
“E porque é que a mensagem é tão perigosa?”
“Sabe Rita, todas elas são concordantes em relação aos últimos dias, mais
pormenor, menos pormenor. Ora, no final dos tempos, segundo o livro do apocalipse,
um líder religioso deveria emergir e unificar as religiões em adoração a um
falso messias. A primeira parte da mensagem parece apontar desde logo para um
apelo a essa unificação, portanto qualquer leitura apressada faria elevar os
radicalismos.”
“Mas isso tornaria o Gabriel nesse tal líder religioso…”
“Coisa que obviamente não sou nem faço tenções de ser.”
“Mas e a unificação das religiões?”
“É algo de ilógico. As religiões reflectem também a maneira de pensar dos
povos. Mesmo dentro dos cristãos, se vir bem, há diferentes visões do mundo. Os
Ortodoxos têm uma visão do mundo diferente da dos Católicos. Os Católicos
diferente da dos Luteranos. E se olhar bem para as zonas onde estas religiões
são dominantes, é possível ver que a própria cultura e maneira de pensar destes
povos é diferente. Ora, transpondo isto para religiões totalmente diferentes,
com diferentes crenças, mais aprofundada é essa diferença, ao ponto de ser um
choque civilizacional. Não há portanto qualquer lógica em tentar unificar tudo
isto. Há sim lógica em aceitar as diferenças e estabelecer pontes de
entendimento entre todas elas para esbater o choque de civilizações.”
“E acha isso possível?”
“Se houver vontade por parte dos líderes religiosos, acho.”
“E quais acha que seriam as consequências desse entendimento alargado?”
“Uma base para se poder estabelecer uma paz alargada.”
“É este o seu entendimento desta mensagem?”
“Não. Este é o meu entendimento do mundo. Quanto à mensagem, fica para a
quem se dirige.”
“Mas admite que esta mensagem, até por ser dúbia, pode ser encarada como
profética…”
“Sim, mas deixe-me deixar bem claro que não me considero um profeta, ou
sequer uma pessoa religiosa. Não tenho quaisquer filiações nesse sentido.”
“Claro que acredito em si, mas não é um contra censo?”
“Não, de todo. Estas mensagens não me são reveladas ao espírito. Não ouço
vozes. Não me aparecem em sonhos. Não tenho qualquer dom de vidência ou
adivinhação.”
“Então, como calcula, a pergunta a seguir é: Como é que chegam a si as
mensagens?”
Apeteceu-me responder-lhe que não o diria, mas naquele momento parei e não
o fiz. Dizer-lhe, bem como às pessoas que nos viam, seria também uma das
maneiras de despoletar a situação em relação a mim.
“Através da chuva.”
“Da chuva? Como assim.”
“Digamos que descobri as mensagens codificadas na chuva.”
Ela ficou estática a olhar para mim.
“Quer isso então dizer que se limita a descodificar uma mensagem.”
“Exacto.”
“Mas como?”
“Isso já não lhe vou dizer. Sabe, quem quiser dedicar-se e descobrir, que o
faça. Eu já dei cinquenta por cento do trabalho ao dizer que lá está. Haja
outros que percorram o caminho.”
“Mas se eu bem entendo descobriu uma chave que decifra um código na chuva.”
“Sim.”
“Qualquer outra pessoa com a chave teria acesso às mensagens?”
“Já tive alguma curiosidade em relação a isso, mas neste momento já não
tenho. Não sei. Como para comprovar isso teria de revelar o método e a chave e
não estou disposto a fazê-lo para já, fica por comprovar se aquilo que é valido
para mim também o é para outras pessoas.”
“Gabriel, alguma mensagem final a quem nos vê?”
“Sim. Reflictam com calma e sabedoria esta mensagem. Espero sinceramente
que ela seja o prenúncio de algo bom.”
A Rita fez os agradecimentos finais e saímos do ar. Ela cumprimentou-me e
agradeceu a entrevista. Eu agradeci-lhe.
Veio um funcionário qualquer para me levar ao carro que me levaria a casa.
Enquanto me dirigia para o carro peguei no telemóvel e liguei ao Fernandes.
“Estou, Gabriel? Tu é louco?”
“Não, mas se calhar não ando muito longe. Desliga já o meu computador da
internet, mas já mesmo.”
“Pá, e como é que se faz isso?”
“Basta desligares o cabo de rede da parte de trás. É aquele que parece um
cabo de telefone.”
“Há, já sei. Vou já fazer isso.”
“Ok. Já falamos, já estou a caminho.”
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