segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Chuva - XXX

 

Estava perdido nestas conjecturas quando o Fernandes apareceu. Entrou, sentou-se ao volante e, visivelmente cansado, encostou-se para trás e fechou os olhos sem dizer uma palavra.

Deixei-me ficar em silêncio, não o queria incomodar, percebes?

Ao fim de um bocado ele abriu os olhos e voltou-se para mim.

“Que dia do caraças, pá.”

“Acredito.”

“Tu não fazes ideia do que se passa ali… Mas enfim… E tu? Estás bem?”

“Estou, não aconteceu nada de especial.”

“Pá, estou com uma fome…”

“Tenho aqui sandes, se quiseres.”

“Quero pois.”

Dei-lhe uma sandes de atum que ele comeu deliciado e de forma quase sôfrega. No meio das largas dentadas que dava lá arranjou espaço para me perguntar “olha lá, e a tua casa?”.

“Aparentemente não sofreu grandes estragos, mas o prédio que está ao lado está em risco de derrocada e eles fecharam a zona. Não creio que lá consiga entrar.”

“Mas estão lá as tuas coisas todas, não estão?”

“Pois…”

“Pá, temos de ver isso assim que abrirem estradas para a margem sul. Dizem que a ponte não foi muito afectada, embora precise de alguns trabalhos por causa do comboio, mas que o trânsito vai ser reaberto, embora condicionado, em breve.”

“Sim. Mas até lá tenho tudo dentro de casa. Só tenho a mochila com as sandes e a roupa que tenho no corpo.”

“Pois… Bem, vamos até minha casa, ver se ficou inteira. Preciso de descansar um bocado.”

“E se não ficou?”

“Olha, se não ficou, logo se vê. Alguma coisa se há-de arranjar. E olha lá, voltaste a pensar na história da entrevista?”

“Não. Mas agora que falas nisso, se calhar não é uma má ideia. Acho que tens razão.”

“Falamos com o Rafa depois. Hoje tenho mesmo de descansar.”

“Sim. Amanhã também é dia.”

A casa dele era uma vivenda em Sassoeiros. Quando chegamos parecia estar tudo relativamente bem. Foi quando entramos que percebemos que lá dentro nem por isso. Havia vidros partidos por todo o lado, estantes que tinham cedido despejando o seu conteúdo no chão e, praticamente tudo o que se podia partir com o impacto estava partido.

Sabes qual foi o comentário dele a isto tudo? “Quando a mulher das limpezas vir isto vai-se passar…”

Mas pelo menos tínhamos um teto acima das nossas cabeças. Havia electricidade e a arca congeladora tinha-se aguentado. Conseguimos comer uma magnifica refeição de micro-ondas que nos deixou mais reconfortados do que as sandes com que tínhamos enganado o estômago. Não havia era água, mas havia cerveja. Detesto cerveja. Aliás, detesto tudo o que tenha álcool. Não gosto dos efeitos. Parece que me faz perder o controle. Mas hoje não havia grandes opções. Era isto ou ficar com sede.

Ele lá se foi deitar. Eu encostei-me em cima da cama do quarto de hóspedes e fiquei a desenhar o meu novo personagem a noite toda.

Já de manhã levantei-me e deambulei um bocado pela casa. No escritório dei com um computador. Liguei-o. Tinha internet. Tentei ligar-me ao computador de minha casa. Consegui. Ele estava ligado. Isso queria dizer que havia electricidade no meu prédio. Comecei a descarregar tudo o que era importante para este, não fosse o diabo tecê-las…

Já passava do meio da manhã quando o Fernandes apareceu com um copo de leite na mão.

“Bom dia. Dormiste bem?”

“Sim, menos do que tu, mas sim.”

“Ainda bem.”

“Moras aqui sozinho?”

Ele respirou fundo, o que indiciou que esta conversa não era muito bem-vinda. Mas eu precisava que ele pensasse que me importo.

“Moro.”

“Então porquê uma casa deste tamanho?”

A vivenda tinha dois andares mais um sótão amplo e mais um pequeno terreno à volta onde estava uma garagem para dois carros.

“Porque quando a comprei não morava.”

“E o que é que aconteceu?”

“O costume. Um gajo mais bonito, mais jovem, mais presente e com mais papel.”

Apesar da maneira casual como ele dizia as coisas percebia que havia sido algo complicado para ele. O falar daquela maneira era só uma maneira de se defender de algo que o magoou. Sabes, acho que o Fernandes era um bom tipo. Um bocado duro no trato, mas bom tipo.

“Bom, mas temos coisas mais urgentes em que pensar. Sempre queres que eu fale com o Rafa?”

“Sim. Eu dou-lhe a entrevista.”

Ele puxou do telefone, falou com o Rafael, combinou horas e quase em seguida saímos de Sassoeiros em direcção a Lisboa.

“Vamos passar pelo hospital onde trabalho. Lá deve haver água e pelo menos, enquanto eu vejo como estão as coisas, podes tomar um duche. Temos que te arranjar umas roupas também. Afinal, vais aparecer na televisão…”

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