segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Chuva - XIX

“Bem, mas pelo que percebi, o que me queres dizer é que qualquer um, desde que tenha a chave, consegue o mesmo resultado.”

“Presumo que sim, mas não tenho a certeza.”

“Como assim?”

“Bem, o facto de as mensagens parecerem dirigidas a mim, especificamente, de se referirem a situações nas quais vou esbarrar, deixa-me a dúvida. Como é que seria se outra pessoa tivesse a chave? O que é que aconteceria? Será que as mensagens seriam para essa pessoa também?”

Ele reflectiu um pouco nas minhas interrogações. Realmente havia no meio de tudo algo de pessoal. As mensagens eram para mim.

“Bem, podes sempre experimentar…”

“Pois, mas por motivos óbvios, não quero.”

“Compreendo. Mas também é obvio que não querias ter tropeçado nisto à partida.”

“Não, não queria. Sempre vivi em quase reclusão, não lido bem com pessoas…”

O Fernandes olhou para mim. Eu sabia que a visão que ele tinha de mim agora, neste momento, era substancialmente diferente. Tinha-lhe dado provas concretas da existência de algo que, fosse o que fosse, existia de forma inequívoca, e tinha a capacidade de interferir de alguma maneira com as vidas das pessoas.

“Diz-me uma coisa, achas que o que aconteceu com as curas e com o desaparecimento do miúdo foram meras coincidências que foram aproveitadas por algo para se demonstrar, ou terão sido os factos causados por esse algo?”

Eis uma pergunta pertinente que eu ainda não me fizera. E com vastas implicações…

“Imagina por um momento…” continuou ele “…que o que aconteceu foi causado propositadamente. Sabes porque te pergunto isto?”

“Por causa das remissões?”

“Sim. Tenho vinte e cinco anos de carreira médica. Estou onde estou à vinte anos. Sabes quantas remissões espontâneas já tinha visto?” Acenei negativamente com a cabeça. “Zero! E de repente, numa semana, vejo duas, e ainda por cima anunciadas.”

Ficamos os dois em silêncio a remoer os possíveis significados destas conclusões. Seria possível que, além dos anúncios do que viria, esta mesma força, entidade, ou fosse o que fosse, estivesse a intervir activamente no decurso das coisas? Será que sempre lá esteve, ou esperou até agora, até haver alguém que ouvisse para se manifestar.

Ainda assim, para te ser franco, para mim, pessoalmente não fazia sentido ser eu o escolhido. Ao fim ao cabo, o escolhido devia ser alguém que se importasse, que quisesse fazer algo, sei lá, grandioso com a informação que era passada.

O obter esta informação deixava-me claramente em cheque, mais ainda agora, se a conclusão a que chagávamos estivesse correcta. O que é que eu iria fazer? Pior, o que é que queriam fazer de mim? Um vidente? Um profeta?

Por um momento permiti-me pensar nesta ultima hipótese. Pareceu-me plausível. Afinal, se hoje em dia aparecesse alguém a pregar e a falar como falavam os antigos profetas seria enclausurado, analisado, levava com uns electro-choques e, quando o cérebro já tivesse frito com as drogas e as terapias que lhe dessem, a voz de Deus acabaria por se calar. Caramba, o que é que tu dirias se um tipo qualquer te aparecesse à frente e se afirmasse ser Jesus descido dos céus? Rias-te e davas-lhe a morada do hospital psiquiátrico mais próximo, não?

Pois é. Nesta época de tecnologia, de progresso, de revolução, de comunicações instantâneas, deixou de haver lugar para Deus, para vozes que clamam no deserto. Ainda que meia dúzia fosse capaz de acreditar, seria apenas essa meia dúzia.

Mas Deus, a existir, saberia disto.

Seria eu um profeta? Uma ferramenta?

Mas para o ser não teria eu de acreditar em Deus?

Foi então que cheguei à conclusão que, de certa forma, acreditava, sim. Não no Deus apregoado pelas religiões e vendido nos templos por meia dúzia de moedas. Não num Deus bíblico cheio de emoções humanas, contraditório, um ser a quem a sua criação escapa ao controle, apesar de ser omnipotente. Não num ser capaz de favorecer um bando de pastores no deserto a ponto de dizimar um exercito de outro povo para favorecer aquele especificamente. Afinal, não eram também os membros desse exercito seus filhos?

Acreditava e acredito numa unidade, uma singularidade.

Mas não seria essa singularidade, a unidade entre tudo o que existe, demasiado grande para chegar a mim desta forma?

Ou seria eu demasiado pequeno para perceber?


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