Sei que se calhar estavas à espera que te desse outros pormenores da história, ou que a tornasse maior, mas apenas te estou a contar a verdade dos factos que se passaram comigo. O resto, ao fim ao cabo, é conhecido e não vou estar a massacrar-te com coisas que já sabes.
O nosso tempo é limitado, por isso não convém alongar-me com pormenores que
apenas embelezariam os factos. E, aliás, tu já sabes o contexto...
Por isso não te surpreendas de passar assim pelos assuntos. É que ainda há
muito para contar.
Mas, continuando…
Logo a seguir a termos enviado as colaboradoras do “John Smith” para fora
do país, resolvemos ir buscar os livros a minha casa. O prédio do lado, o que
ameaçava derrocada, ia ser demolido e isso punha em perigo o meu prédio também.
Contactamos uma empresa de mudanças e eu comecei a ir para lá quando saia
do trabalho para encaixotar tudo.
Mas lembro-me da primeira vez que lá cheguei. As escadas para a porta do
prédio estavam verdadeiramente atulhadas de flores e velas. Ainda bem que
ninguém lá estava a morar neste momento. Mas agora tinha mais um factor.
Pessoas.
Eram poucas, é certo, mas estavam lá. Quando cheguei olharam-me com uma
reserva e um respeito profundo. Passei por elas e elas puseram os olhos no
chão, talvez como que dizendo-me que não eram dignas de me olharem.
Mas uma das pessoas, uma mulher africana, veio ter comigo, prostrou-se à
minha frente e começou a chorar convulsivamente enquanto dizia “Obrigado!”.
Mas a diferença é que eu agora sabia como lidar com as pessoas. Limitei-me
a sorrir e não disse absolutamente nada. Nem lhe perguntei o porquê.
Conforme aquela veio, outras aproximaram-se, chegaram-se a mim, sempre de
uma forma…
…humilde, sabes? Havia humildade nos olhares, havia uma esperança. Eu que
não tinha nenhuma, de alguma maneira incutia-lhes essa esperança.
Aproximavam-se, tentavam tocar-me, agradeciam. Curiosamente esperava que me
fizessem pedidos, que esperassem alguma coisa, mas não. Chegaram a mim sempre
de uma forma respeitosa, calma até. Quando dei por isso estava rodeado por uma
multidão em plena rua.
Subi os degraus das escadas do meu prédio e sentei-me no último, junto à
porta. A multidão sentou-se também a olhar para mim. Ficamos ali muito tempo,
em silêncio.
Quando o Fernandes chegou encontrou-me ali rodeado de toda aquela gente.
Passou pelo meio deles, em silêncio e quando chegou ao pé de mim apenas se
atreveu a murmurar.
“Que é que se passa aqui?”
“Estamos em paz…”
“Mas não achas isto despropositado?”
“Eu acho. Mas acho que eles não…”
Aproveitei a chegada para me levantar e entrar. Havia muita coisa para
embalar e tinha perdido ali imenso tempo, embora não o desse como perdido.
Acho que esse foi o dia em que deixei de ter medo de encarar todas as
hipóteses possíveis. Eu sou o que sou. Não tenho quaisquer ilusões em relação a
mim. Não crio ilusões em ninguém, a não ser escondendo-me para me proteger. Mas
os outros podem pensar o que quiserem em relação a mim. Inclusivamente tu. Eu
continuarei a ser o que sou independentemente do resto.
Entramos, arrumamos os livros em caixas e esperamos pela carrinha que os
iria levar. Quando finalmente chegou e começamos a sair com as caixas as
pessoas ainda ali estavam, calmas, a demonstrarem amabilidade umas com as
outras.
Sabes, acho que o mundo só andava mesmo à espera de um profeta, um messias,
ou seja lá o que for. Andava à espera que chegasse alguém que conseguisse dar
algum sentido às coisas, um sentido maior. Acho que as pessoas andavam
afastadas da religião e de Deus não por falta de fé, mas porque não viam
exemplo nos líderes religiosos, não viam que fosse feito tudo o que poderia
ser. Apenas viam uma máquina política, como tantas outras, a arrastar-se.
E se calhar olharam para mim e viram um potencial. Se calhar viram-no
porque não fui ostensivo, porque não me impus. Apenas algumas mensagens foram o
suficiente para que as pessoas acreditassem que há algo mais, algo maior. E
esse era, neste momento, o meu contacto com a humanidade, pois eu achava o
mesmo.
Pude ver quando partimos a multidão começar a dispersar. Vi a bola de neve
que descia a montanha a avolumar-se.
Foi por isso que não me surpreendi com a visita que recebi alguns dias
depois…
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