Quatro horas, dois minutos e vinte e três segundos da manhã.
Uma súbita vertigem, um zunido grave e de repente o chão começou a tremer
violentamente. Estava sentado no chão mas creio que se estivesse de pé teria
caído.
A ponte oscilou perigosamente. Em poucos segundos a cidade de Lisboa foi-se
apagando, como que por sectores, até ficar apenas iluminada pela lua. Aqui e
ali surgia a luz de uma explosão quando uma conduta de gás rebentava.
Quatro horas, três minutos e quarenta e quatro segundos.
Após um minuto e vinte e um segundos a terra sossegou. Fiquei parado.
Fiquei à espera. Sabia do perigo de uma réplica. Mas ao fim de uns minutos
resolvi levantar-me e aproximar-me o suficiente da beira da falésia para poder
olhar para a cidade.
A estátua do Cristo Rei estava intacta. A ponte também. No tabuleiro quem
podia começava a sair dos carros e corria para a saída mais próxima. Alguns dos
carros no tabuleiro aceleravam para a saída. Tenho a certeza que houve pessoas
atropeladas no pânico.
Via toda a cidade iluminada por pequenos focos de incêndio. Não havia luz
eléctrica ao longo de toda a costa, quer na margem norte, quer na margem sul.
Rio estava com uma ondulação picada que galgava as margens.
O hospital de Almada, à minha esquerda, continuava iluminado, sem dúvida
graças a geradores de emergência. Comecei a ouvir sirenes na distância, talvez
de veículos de emergência que eram despachados.
Quatro horas, vinte e um minutos e nove segundos.
Nova vertigem, novo zunido e a terra treme novamente, com menos intensidade
e durante menos tempo. Arrependi-me de vir para perto da falésia e olho para a estátua.
Vejo claramente alguns edifícios a ruir em Lisboa. O rio sobe as margens e
invade a zona marginal.
Apesar da destruição não deixo de me maravilhar com a força que a natureza
tem, relegando-nos ao nosso lugar ridículo na história do mundo. Desta vez o
abalo teve menos de trinta segundos.
Ainda estava preocupado com o que podia vir a seguir. Olhei para a barra do
Tejo. Ao longe uma crista enorme reflectia o luar. O meu receio era fundado.
A onda embate contra a costa varrendo tudo à sua passagem e parece acelerar
ao entrar a e barra, como se ao começar a subir pelo rio aumentasse ainda mais
e acelerasse. Submerge tudo à sua passagem, envolve o padrão dos descobrimentos
e a torre de Belém, chega até aos Jerónimos, invade a zona ribeirinha da
cidade, faz ranger a ponte à sua passagem, arranca as amarras aos barcos na
doca de Santos e empurra-os para terra fazendo-os chocar contra os edifícios.
Cargueiros, Porta Contentores e até um barco de cruzeiro. A onda continua a
submergir tudo, subindo o rio, não deixando ver os pormenores da destruição.
Ao fim de algum tempo a onda começa a recuar para o mar e deixa atrás de si
um cenário dantesco e que só não o é mais porque os estragos não são plenamente
visíveis à noite.
E depois de tudo isto um silêncio ensurdecedor.
Havia pessoas a chegar a pé que ficavam perto de mim a olhar incrédulas
para o cenário que tem à sua frente.
Consegues imaginar o que foi estar ali e ver aquilo? Eu sei, deves ter
sabido de tudo nas notícias, e leste, e viste as reportagens, mas estar ali.
Imaginas?
As pessoas podiam ter ouvido. Mas ninguém ouviu.
Lembrei-me no Fernandes, por esta altura. Peguei no telemóvel. Sem rede
disponível.
Limitei-me a ficar ali, à espero do amanhecer, e a pensar. Se há algo que
queria atenção, era garantido que a tinha. Só era pena que fosse através de
mim.
E foi então que percebi que não passo de um mero peão que está encurralado
no fim de um jogo de xadrez sem vencedor.
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