“Pá, não estava à espera que fosses tão mau.” Disse o Fernandes.
“Porquê?”
“Porque tens sido sempre bastante mais recatado.”
“É verdade. Não gosto desta exposição. Mas sabes. De alguma maneira tenho
sido empurrado para as situações, e acho que não é suposto manter-me à margem
dos acontecimentos.”
“Sabes, é interessante ir vendo a tua mudança de atitude. Pareces estar bem
mais à vontade, mais solto. Pareces diferente de quando te conheci.”
“E estou. Bastante diferente.”
“Pareces importar-te mais…”
Não respondi a esta observação. Na verdade, nem mais, nem menos.
Exactamente a mesma coisa. Mas estava naquele jogo e tinha de ir jogando
segundo regras que não tinham sido estabelecidas por mim.
Estávamos a caminho de Sassoeiros, na auto-estrada. Ficamos um pouquinho em
silêncio e eis que o Fernandes continua.
“Olha lá, tu por acaso tens carta de condução?”
“Tenho. Por acaso até tenho.”
“E já pensaste em comprar um carro?”
“Mas porquê?”
“Para poderes andar à vontade de um lado para o outro…”
“Estás farto de me servir de motorista?”
“Não é nada disso, pá. Deixa-te de tretas. É porque estás sempre dependente
de mim e assim ficavas mais à vontade.”
“Mas não vou comprar um carro. Em primeiro lugar detesto conduzir, e em
segundo não há dinheiro.”
“Não há dinheiro?!”
Por estes dias o dinheiro do cheque do laboratório estava comodamente
instalado numa conta em genebra. Dai o espanto do Fernandes.
“Não, não há. Aquele dinheiro não é meu.”
Ele ficou a olhar para mim. Calculo que tenha pensado o que é que eu queria
dizer com aquilo de o dinheiro não ser meu.
“E já que falamos no dinheiro, porque é que o dinheiro não está numa conta
tua?”
“Ora, Fernandes. Achas que eles me deram aquele dinheiro porquê?”
“Para te calar.”
“Claro. Mas para isso o dinheiro tem de ter um rasto que leve até mim.”
“Mas achas que por esta altura não chegam até ti através de mim?”
“Chegam, mas a ligação não é clara. Além disso vai dificultar o facto de
irem atrás do dinheiro quando ele sair da conta…”
“Mas como é que eles fariam isso? É uma conta de um dos mais prestigiados
bancos a nível mundial. De certeza que lhes é impossível…”
“Tu acreditas no pai natal, Fernandes? Tu não achas que estes gajos só não
têm acesso ao que não querem? Eles vão saber para que é que o dinheiro foi
utilizado, sim.”
“E, já agora, vais usá-lo para quê?”
“Depois vês…”
Claro que o percebia. Qualquer outra pessoa se teria sentido tentada pela
quantia em causa, pelo menos, quanto mais não fosse, para melhorar um bocadinho
a sua vida, a nível de conforto e mobilidade. Mas eu não sentia, de todo,
nenhuma necessidade neste momento, por isso ia usá-lo como te disse. Não
resistia a dar uma chapada de luva branca.
Entretanto chegamos a Sassoeiros. Saímos do carro e fomos imediatamente
chamados por um homem, na casa dos trinta, que estava ao portão. Eu não lhe
liguei, mas o Fernandes lá foi ver o que o homem pretendia.
Acabou por deixar o homem entrar e ele veio directamente ter comigo.
“Sr. Gabriel Guerra?”
“O próprio.”
“Sou assessor do Sr. Primeiro Ministro.”
Olhei para ele e não sei porquê apeteceu-me chateá-lo.
“Ainda bem para si, pelo que vejo.”
O tipo parecia o típico executivo, com um fato cinzento com riscas
verticais, o que sem dúvida lhe dava um aspecto de ser mais alto do que na
realidade era. Creio que era esse mesmo o objectivo pretendido. Alem disso,
usava uns óculos de massa que lhe davam um ar mais pesado e mais velho.
Basicamente queria parecer o que não era.
“O meu nome é Amílcar Sousa e estou aqui em nome do Sr. Primeiro-ministro
para o convidar para um almoço informal.”
“Pois bem, Sr. Amílcar, diga ao seu ilustríssimo patrão que as minhas horas
de almoço são bastante limitadas pelo que não poderia ter um almoço com ele,
pelo que tenho de declinar o convite. Só o tempo de deslocação faria com que eu
não tivesse sequer tempo para comer.”
“Bem, mas é um convite do Sr. Primeiro-ministro. Com certeza que arranjará
algum tempo…”
“Como lhe disse o meu tempo é tão limitado que aceitar seria uma
indelicadeza, pois teria de comer a correr e isso seria, no mínimo indelicado.”
O homem parecia baralhado com as minhas respostas. Sem saber como reagir.
Claro que ele esperava que eu o recebesse com um sorriso com abertura. Não
esperava que eu recusasse.
“Não creio que fosse considerado indelicado. Aliás, tenho a certeza que a
sua entidade patronal, caso fosse explicado o motivo, disponibilizaria tempo
para o efeito.”
“É provável, mas sabe, eu trabalho num arquivo que está caótico desde o
terramoto e ainda ando a reorganizá-lo. Embora a minha entidade patronal
disponibilizasse o tempo, eu apenas iria adiar ainda mais a minha tarefa, o que
me causaria transtorno pessoal. Como tal, mantenho a minha resposta. Diga-lhe
que estou indisponível. Além disso também considero descortês ser convidado por
entreposta pessoa. Se ele sabe onde estou também me pode convidar directamente,
pessoalmente ou não.”
O homem continuou parado, tentando arranjar argumentos para me convencer.
Eu estiquei-lhe a mão, para o cumprimentar, como gesto inequívoco de que a
nossa conversa estava terminada.
“Tenha uma boa tarde.” E virei-lhe as costas entrando em casa.
O Fernandes passou por ele, cumprimentou-o também e disse “Sabe, ele às
vezes é muito temperamental…” com um sorriso de gozo e seguiu-me, fechando a
porta.
Já dentro de casa virou-se para mim.
“Olha lá, então tu recusas um convite destes?”
“Claro.”
“Pá, deu-me gozo ver a cara do tipo, mas diz-me lá, porquê?”
“Nunca ouviste dizer que o fruto proibido é o mais apetecido? Não vou
demorar a almoçar com ele, descansa. Mas neste momento ele tem mais interesse
em mim que eu nele. Aliás, muito mais. O meu interesse em falar com ele não é
nenhum.”
“Então porque é que vais falar com ele?”
“Porque tudo isto tem sido uma escalada, sabes. Como se eu estivesse a ser
empurrado numa direcção, e nada tem acontecido por acaso. Este convite e este
almoço vão servir para alguma coisa.”
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