sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Chuva - XXVIII

  

Aquilo que não te consigo mesmo descrever é a cara do Fernandes quando entrou na sala, uns cinco minutos depois, e deu com aquilo. Nem precisou de me procurar, bastou olhar para onde todos os outros estavam a olhar.

A sala estava ainda mais cheia. À medida que as pessoas iam entrando, e assim que sabiam o que se passava, juntavam-se aos outros. O silêncio respeitoso só era interrompido quando alguém era chamado no altifalante ou se alguém passava de repente. De resto, mais parecia a atitude que as pessoas têm dentro de uma igreja. Mesmo que não sejam crentes, parece que quando se entra há imediatamente uma tendência para baixar o tom de voz. Naquele momento aquela sala do hospital parecia uma igreja em que eu era, estupidamente, o objecto de adoração.

Também não te consigo descrever o alívio que senti ao ver o Fernandes aparecer. O meu pretexto. Levantei-me de imediato e fui ter com ele. Assim que cheguei ao pé dele abracei-o, para poder chegar com a minha boca perto do ouvido dele e sussurrei “Tira-me daqui”. A minha repulsa pelo contacto foi menor do que o pavor que estava a sentir de ter toda aquela gente em plena contemplação.

“Anda mais eu.” Disse ele, e arrancou de volta para dentro dos corredores. Segui-o.

Quando já estávamos sozinhos ele disparou “Que raio se estava a passar ali atrás, pá?”

“Reconheceram-me.”

“E ficaram assim?”

“Foi…”

“Bem, pensando bem até nem é tão descabido como isso…”

“Mas é muito, mas mesmo muito desagradável para mim.”

“Pelo que estou a ver, acho que vais ter que te habituar…”

Nem respondi. Mas sim, ele tinha razão. Pelo menos durante algum tempo, teria que me habituar. O que me reconfortou é que a memória das pessoas costuma ser curta.

“Mas olha lá, como é que aqui chegaste? Já há transportes para Lisboa?

“Não. Apanhei boleia num helicóptero de reportagem.”

“O Rafa falou contigo, então…”

“Sim.”

“O que é que ele queria?”

“Que eu lhe desse uma entrevista.”

“E tu?”

“Disse-lhe que não.”

Havias de ver a gargalhada que ele deu.

“Se eu bem o conheço deve ter ficado fulo…”

“Para te ser franco não sei. Disse-lhe que não porque não tenho mesmo nada para dizer…”

“Pois… Mas não sei se não fizeste mal. Sabes, vais ser chateado por meio mundo, e, pelo menos, este gajo é sério em relação ao que faz. Se calhar mais valia falares com ele e dares a entrevista do que seres chateado durante não sei quanto tempo por uma data de gente. Mas isso vês depois. Dormiste alguma coisa?”

“Não.” Claro que não lhe disse que raramente dormia.

“Toma.” Disse ele enquanto me passava as chaves do carro para a mão. “Saindo pela porta por onde entraste viras à tua esquerda, sobes a escada e o carro está mesmo ai por cima. Descansa lá um bocado que eu vou lá ter contigo depois, quando isto estiver mais aliviado. Nessa altura falamos melhor.”

“Está bem. Fico lá à tua espera.”

Agarrei nas chaves e voltei à sala que tinha de novo mergulhado na confusão. Ainda assim, conforme passei quase toda a gente me seguiu com o olhar. Seguia as indicações e não foi difícil dar com o carro.

Só depois de me sentar me apercebi de o quanto estava cansado. Adormeci.

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