Aquilo que não te consigo mesmo descrever é a cara do Fernandes quando
entrou na sala, uns cinco minutos depois, e deu com aquilo. Nem precisou de me
procurar, bastou olhar para onde todos os outros estavam a olhar.
A sala estava ainda mais cheia. À medida que as pessoas iam entrando, e
assim que sabiam o que se passava, juntavam-se aos outros. O silêncio
respeitoso só era interrompido quando alguém era chamado no altifalante ou se
alguém passava de repente. De resto, mais parecia a atitude que as pessoas têm
dentro de uma igreja. Mesmo que não sejam crentes, parece que quando se entra
há imediatamente uma tendência para baixar o tom de voz. Naquele momento aquela
sala do hospital parecia uma igreja em que eu era, estupidamente, o objecto de
adoração.
Também não te consigo descrever o alívio que senti ao ver o Fernandes
aparecer. O meu pretexto. Levantei-me de imediato e fui ter com ele. Assim que
cheguei ao pé dele abracei-o, para poder chegar com a minha boca perto do
ouvido dele e sussurrei “Tira-me daqui”. A minha repulsa pelo contacto foi
menor do que o pavor que estava a sentir de ter toda aquela gente em plena
contemplação.
“Anda mais eu.” Disse ele, e arrancou de volta para dentro dos corredores.
Segui-o.
Quando já estávamos sozinhos ele disparou “Que raio se estava a passar ali
atrás, pá?”
“Reconheceram-me.”
“E ficaram assim?”
“Foi…”
“Bem, pensando bem até nem é tão descabido como isso…”
“Mas é muito, mas mesmo muito desagradável para mim.”
“Pelo que estou a ver, acho que vais ter que te habituar…”
Nem respondi. Mas sim, ele tinha razão. Pelo menos durante algum tempo,
teria que me habituar. O que me reconfortou é que a memória das pessoas costuma
ser curta.
“Mas olha lá, como é que aqui chegaste? Já há transportes para Lisboa?
“Não. Apanhei boleia num helicóptero de reportagem.”
“O Rafa falou contigo, então…”
“Sim.”
“O que é que ele queria?”
“Que eu lhe desse uma entrevista.”
“E tu?”
“Disse-lhe que não.”
Havias de ver a gargalhada que ele deu.
“Se eu bem o conheço deve ter ficado fulo…”
“Para te ser franco não sei. Disse-lhe que não porque não tenho mesmo nada
para dizer…”
“Pois… Mas não sei se não fizeste mal. Sabes, vais ser chateado por meio
mundo, e, pelo menos, este gajo é sério em relação ao que faz. Se calhar mais
valia falares com ele e dares a entrevista do que seres chateado durante não
sei quanto tempo por uma data de gente. Mas isso vês depois. Dormiste alguma
coisa?”
“Não.” Claro que não lhe disse que raramente dormia.
“Toma.” Disse ele enquanto me passava as chaves do carro para a mão. “Saindo
pela porta por onde entraste viras à tua esquerda, sobes a escada e o carro
está mesmo ai por cima. Descansa lá um bocado que eu vou lá ter contigo depois,
quando isto estiver mais aliviado. Nessa altura falamos melhor.”
“Está bem. Fico lá à tua espera.”
Agarrei nas chaves e voltei à sala que tinha de novo mergulhado na
confusão. Ainda assim, conforme passei quase toda a gente me seguiu com o
olhar. Seguia as indicações e não foi difícil dar com o carro.
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