sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Chuva - XVIII

 

Às cinco da tarde o Fernandes entrou na minha sala.

Voltou-se para mim num tom quase divertido. “Então, vamos?”

“Vamos.”

“Estavas com medo de atravessar aqueles gajos que estão lá fora?”

Medo? Não. Apenas tinha noção de que não queria lidar com eles.

“Sim. Como é que eles me terão descoberto?”

Era óbvio como me tinham descoberto.

“Basta que alguém te tenha visto e passasse a informação. E quando um sabe…”

Pois, quando um sabe os outros também sabem.

Não saímos pela porta da frente. O Fernandes tinha estacionado o carro na cave do edifício. Fomos de elevador até à cave, entramos no carro e arrancamos, passando mesmo ao lado deles.

Já depois de estarmos metidos no meio do trânsito ele voltou-se para mim.

“Vê esse saco que está ai aos teus pés.”

Abri o saco. Lá dentro uma caixa de telemóvel.

“Isso é para ti. O número não está registado, é um cartão pré-pago, e os únicos que sabem que esse número existe são a operadora e eu.”

Detesto estas geringonças. Diz-me lá que utilidade é que achas que um gajo como eu, que não quer falar com ninguém, dá a um telemóvel? O simples facto de o ter implica andar com ele, tê-lo ligado e estar constantemente na iminência de ser contactado. E quando não se quer ser contactado, para que é que serve?

“Não gosto de telemóveis…” disse-lhe eu.

“Sim, eu já percebi. Mas garanto-te que não te vou incomodar. Não te vou sequer ligar. Mas caso tenhas um problema, seja onde for, tens hipótese de me contactar. O meu numero é a tecla “2” da marcação rápida. Carregas na tecla por três segundos e ligas automaticamente para mim.”

Ocorreu-me então que, embora já tivéssemos passado algum tempo juntos e esse tempo fosse suficiente para perceber o carácter dele, a verdade é que ainda não o conhecia, não sabia o que o fazia andar, não conhecia os motivos dele.

“Mas porquê?”

“Porquê o quê?”

“Esta vontade de me ajudar, o telemóvel…”

Ele ficou um bocado a olhar para a estrada, pensativo. Não é que tivesse de pensar nos porquês. Ele sabia-os. Pensava era como dizer o que tinha para dizer…

Quando se decidiu lá deu uma resposta.

“Sabes, tu intrigas-me. Tenho a certeza absoluta que és algo mais do que aparentas.”

Como calculas, uma afirmação destas deu-me imediatamente que pensar. O simples facto de ele dizer isto fez-me perceber que teria de abrir um pouco mais o jogo com ele. Afinal, só se consegue manter uma mentira quando ela está próxima o suficiente da verdade para poder ser confundida com ela. Ele continuou.

“Começaste por acertar em algo que vai contra as probabilidades sequer de acontecer, quanto mais de ser previsto. E depois foste descobrir aquele puto num sítio improvável. Por outro lado, a tua atitude dá a entender que, não só não dás valor às mensagens, como, de certa forma, te irrita até o facto de as teres. Tenho razão?”

“Tens.”

Ele acenou com a cabeça. Neste ponto ele tinha-me percebido perfeitamente.

“Sabes, sou um gajo formado numa área de ciências. Para mim há sempre causa e efeito. Mas liguei-me à medicina precisamente porque as causas nem sempre são aparentes e acho que no fundo sempre procurei qualquer coisa que nem sequer consigo definir, uma causa maior. Acho que a minha curiosidade em relação a ti se prende com essa procura. Quando me apercebi que de alguma forma as mensagens para ti eram uma contrariedade vi que podias ser algo de genuíno. E se assim for, és algo de único.”

Enquanto a conversa decorria eu ia-me perdendo em conjecturas e a distância entre Lisboa e Almada foi vencida. Ele parou o carro à porta de minha casa e esperou que eu saísse do carro. Eu olhei para ele e para o telemóvel.

“Não queres entrar?”

Ele olhou para mim, desligou o motor do carro e saiu junto comigo.

Ainda me lembro da cara dele quando entrou em minha casa. Acho que ele esperava tudo menos o que encontrou. A minha casa estava forrada a estantes onde estavam livros e revistas organizados e catalogados por tema. Estava de tal forma que mal se viam as paredes da casa. O resto era, de alguma forma, espartano. Havia uma mesa na cozinha com uma única cadeira, um sofá na sala e uma mesa de café, onde se empilhavam os livros e revistas que estava a ler no momento, uma secretária com o computador a um canto da sala. No quarto uma cama, uma mesa-de-cabeceira e um candeeiro.

“Já leste isto tudo?”

“Sim.”

Ele passava os olhos pelas prateleiras e ia vendo os títulos cuidadosamente. Eu interrompi-o.

“Desculpa não ter nada para te oferecer, mas não bebo. Queres um copo de água?”

“Pode ser.” Disse ele distraidamente.

Quando voltei com a água convidei-o a sentar-se no sofá enquanto eu me sentei na cadeira da secretária. Ele olhava para mim de uma forma estranha. Acho que se tinha apercebido de que eu era bastante diferente daquilo que ele julgava. Agora a cartada era minha. O que lhe desse aqui definir-me-ia aos seu olhos daqui para a frente.

“Perguntaste-me quando nos conhecemos como é que as mensagens chegavam.”. Ele olhou para mim como se se preparasse para tudo. “Não te vou dizer tudo. Não quero fazê-lo e acho sinceramente que nem devo. Mas vou-te dizer na generalidade.”

Ele acenou afirmativamente com a cabeça, expectante. Eu dei um toque no rato do computador e o monitor iluminou-se mostrando uma pauta altamente complexa.

“O que está aqui nesta pauta é a representação rítmica da chuva quando cai.”

Ele levantou-se e aproximou-se do monitor para ver melhor. Ao fim de um bocado a observar aqueles rabiscos todos olhou para mim com um ar inquiridor. Eu continuei.

“Queria mostrar-te isto para saberes que não ando a ouvir vozes, não me aparece um velho de barbas brancas em sonhos, não ando a esventrar animais ou a ler cartas. Não sou um vidente nem um místico. Aliás, o próprio misticismo para mim não passa de uma realidade incompreendida. Mas o misticismo verdadeiro, não o ‘charlatanismo’ a que tanta gente se agarra. Não sou religioso nem professo nada.”

Ele assentiu. Acho que estava tão estupefacto a olhar para mim que nem quis perguntar nada. Sabia que eu ainda tinha mais a dizer.

“Aqui há uns tempos apercebi-me de que parecia haver um padrão na forma como a chuva cai. Basicamente as mensagens aparecem a partir desses padrões. Arranjei uma chave matemática para os decifrar e as mensagens aparecem assim codificadas no meio.”

“Queres dizer que as mensagens aparecem por via matemática?”

“Sim. Não há nada de místico nisso.”

“Não há? Desculpa lá, mas isso levanta ainda mais perguntas do que aquelas que responde…”

“Eu sei. Quando digo que não há refiro-me somente ao facto de que a maneira como as produzo ser através de um método absolutamente cientifico e que poderia ser duplicado por qualquer outra pessoa.”

“Sim, essa parte eu percebi. Mas o resto das implicações…”

“É precisamente por isso que me sinto obrigado a passar as mensagens. Não faço a mínima ideia de onde elas vêem e nem sequer consigo imaginar quem teria o poder de as codificar. Mas o pior de tudo é que parecem vir dirigidas a mim, directamente.”

Ele olhou longamente para mim.

“Não serão as tuas próprias expectativas a criar as mensagens? Não estarás a produzir padrões onde eles não existem?”

A pergunta era absolutamente legítima.

“Garanto-te que não apresento qualquer traço de esquizofrenia. Se chovesse agora podia demonstrar-te o processo e ias ver que não tem nada de intervenção da minha parte. Chega aqui.”

Levei-o ao quintal das traseiras e mostrei-lhe a engenhoca que tinha feito.

“O que é isto?” perguntou ele depois de passar um bocado a tentar perceber o que era. “Parece um painel solar…”

“Na realidade isto está ligado directamente ao computador. É um sensor de chuva. Dava uma trabalheira incrível passar os padrões à mão para uma pauta, por isso construi isto. Se começar a chover isto, não só arranca automaticamente a gravação no computador, como também serve de ‘trigger’ para gravar directamente os padrões. É mais fiável que o meu ouvido.”

“Mas porquê para uma pauta?”

“Porque numa pauta musical tudo são relações matemáticas. A partir dessas relações passo tudo através de uma chave de desencriptação e tenho a mensagem.”

Ele olhou para mim convencido, e ao mesmo tempo com uma admiração estranha nos olhos.

“Ainda assim, e uma vez que quase te excluíste do processo, resta saber quem manda estas mensagens…”

“Mais do que isso, do meu ponto de vista, resta saber o porquê. E sobretudo, porquê eu…”

“Essa última pergunta é fácil de responder.” Fiquei a olhar para ele à espera dessa mesma resposta. Ele fez uns segundos de ‘suspense’ e acabou por dizer. “Foi a ti porque eras o único que estava atento.”


 

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