Às cinco da tarde o Fernandes entrou na minha sala.
Voltou-se para mim num tom quase divertido. “Então, vamos?”
“Vamos.”
“Estavas com medo de atravessar aqueles gajos que estão lá fora?”
Medo? Não. Apenas tinha noção de que não queria lidar com eles.
“Sim. Como é que eles me terão descoberto?”
Era óbvio como me tinham descoberto.
“Basta que alguém te tenha visto e passasse a informação. E quando um
sabe…”
Pois, quando um sabe os outros também sabem.
Não saímos pela porta da frente. O Fernandes tinha estacionado o carro na
cave do edifício. Fomos de elevador até à cave, entramos no carro e arrancamos,
passando mesmo ao lado deles.
Já depois de estarmos metidos no meio do trânsito ele voltou-se para mim.
“Vê esse saco que está ai aos teus pés.”
Abri o saco. Lá dentro uma caixa de telemóvel.
“Isso é para ti. O número não está registado, é um cartão pré-pago, e os
únicos que sabem que esse número existe são a operadora e eu.”
Detesto estas geringonças. Diz-me lá que utilidade é que achas que um gajo
como eu, que não quer falar com ninguém, dá a um telemóvel? O simples facto de
o ter implica andar com ele, tê-lo ligado e estar constantemente na iminência
de ser contactado. E quando não se quer ser contactado, para que é que serve?
“Não gosto de telemóveis…” disse-lhe eu.
“Sim, eu já percebi. Mas garanto-te que não te vou incomodar. Não te vou
sequer ligar. Mas caso tenhas um problema, seja onde for, tens hipótese de me
contactar. O meu numero é a tecla “2” da marcação rápida. Carregas na tecla por
três segundos e ligas automaticamente para mim.”
Ocorreu-me então que, embora já tivéssemos passado algum tempo juntos e
esse tempo fosse suficiente para perceber o carácter dele, a verdade é que
ainda não o conhecia, não sabia o que o fazia andar, não conhecia os motivos
dele.
“Mas porquê?”
“Porquê o quê?”
“Esta vontade de me ajudar, o telemóvel…”
Ele ficou um bocado a olhar para a estrada, pensativo. Não é que tivesse de
pensar nos porquês. Ele sabia-os. Pensava era como dizer o que tinha para dizer…
Quando se decidiu lá deu uma resposta.
“Sabes, tu intrigas-me. Tenho a certeza absoluta que és algo mais do que
aparentas.”
Como calculas, uma afirmação destas deu-me imediatamente que pensar. O
simples facto de ele dizer isto fez-me perceber que teria de abrir um pouco
mais o jogo com ele. Afinal, só se consegue manter uma mentira quando ela está
próxima o suficiente da verdade para poder ser confundida com ela. Ele
continuou.
“Começaste por acertar em algo que vai contra as probabilidades sequer de
acontecer, quanto mais de ser previsto. E depois foste descobrir aquele puto
num sítio improvável. Por outro lado, a tua atitude dá a entender que, não só não
dás valor às mensagens, como, de certa forma, te irrita até o facto de as
teres. Tenho razão?”
“Tens.”
Ele acenou com a cabeça. Neste ponto ele tinha-me percebido perfeitamente.
“Sabes, sou um gajo formado numa área de ciências. Para mim há sempre causa
e efeito. Mas liguei-me à medicina precisamente porque as causas nem sempre são
aparentes e acho que no fundo sempre procurei qualquer coisa que nem sequer
consigo definir, uma causa maior. Acho que a minha curiosidade em relação a ti
se prende com essa procura. Quando me apercebi que de alguma forma as mensagens
para ti eram uma contrariedade vi que podias ser algo de genuíno. E se assim
for, és algo de único.”
Enquanto a conversa decorria eu ia-me perdendo em conjecturas e a distância
entre Lisboa e Almada foi vencida. Ele parou o carro à porta de minha casa e
esperou que eu saísse do carro. Eu olhei para ele e para o telemóvel.
“Não queres entrar?”
Ele olhou para mim, desligou o motor do carro e saiu junto comigo.
Ainda me lembro da cara dele quando entrou em minha casa. Acho que ele
esperava tudo menos o que encontrou. A minha casa estava forrada a estantes
onde estavam livros e revistas organizados e catalogados por tema. Estava de
tal forma que mal se viam as paredes da casa. O resto era, de alguma forma,
espartano. Havia uma mesa na cozinha com uma única cadeira, um sofá na sala e
uma mesa de café, onde se empilhavam os livros e revistas que estava a ler no
momento, uma secretária com o computador a um canto da sala. No quarto uma
cama, uma mesa-de-cabeceira e um candeeiro.
“Já leste isto tudo?”
“Sim.”
Ele passava os olhos pelas prateleiras e ia vendo os títulos
cuidadosamente. Eu interrompi-o.
“Desculpa não ter nada para te oferecer, mas não bebo. Queres um copo de
água?”
“Pode ser.” Disse ele distraidamente.
Quando voltei com a água convidei-o a sentar-se no sofá enquanto eu me
sentei na cadeira da secretária. Ele olhava para mim de uma forma estranha.
Acho que se tinha apercebido de que eu era bastante diferente daquilo que ele
julgava. Agora a cartada era minha. O que lhe desse aqui definir-me-ia aos seu
olhos daqui para a frente.
“Perguntaste-me quando nos conhecemos como é que as mensagens chegavam.”.
Ele olhou para mim como se se preparasse para tudo. “Não te vou dizer tudo. Não
quero fazê-lo e acho sinceramente que nem devo. Mas vou-te dizer na
generalidade.”
Ele acenou afirmativamente com a cabeça, expectante. Eu dei um toque no
rato do computador e o monitor iluminou-se mostrando uma pauta altamente
complexa.
“O que está aqui nesta pauta é a representação rítmica da chuva quando
cai.”
Ele levantou-se e aproximou-se do monitor para ver melhor. Ao fim de um
bocado a observar aqueles rabiscos todos olhou para mim com um ar inquiridor.
Eu continuei.
“Queria mostrar-te isto para saberes que não ando a ouvir vozes, não me
aparece um velho de barbas brancas em sonhos, não ando a esventrar animais ou a
ler cartas. Não sou um vidente nem um místico. Aliás, o próprio misticismo para
mim não passa de uma realidade incompreendida. Mas o misticismo verdadeiro, não
o ‘charlatanismo’ a que tanta gente se agarra. Não sou religioso nem professo
nada.”
Ele assentiu. Acho que estava tão estupefacto a olhar para mim que nem quis
perguntar nada. Sabia que eu ainda tinha mais a dizer.
“Aqui há uns tempos apercebi-me de que parecia haver um padrão na forma
como a chuva cai. Basicamente as mensagens aparecem a partir desses padrões.
Arranjei uma chave matemática para os decifrar e as mensagens aparecem assim
codificadas no meio.”
“Queres dizer que as mensagens aparecem por via matemática?”
“Sim. Não há nada de místico nisso.”
“Não há? Desculpa lá, mas isso levanta ainda mais perguntas do que aquelas
que responde…”
“Eu sei. Quando digo que não há refiro-me somente ao facto de que a maneira
como as produzo ser através de um método absolutamente cientifico e que poderia
ser duplicado por qualquer outra pessoa.”
“Sim, essa parte eu percebi. Mas o resto das implicações…”
“É precisamente por isso que me sinto obrigado a passar as mensagens. Não
faço a mínima ideia de onde elas vêem e nem sequer consigo imaginar quem teria
o poder de as codificar. Mas o pior de tudo é que parecem vir dirigidas a mim,
directamente.”
Ele olhou longamente para mim.
“Não serão as tuas próprias expectativas a criar as mensagens? Não estarás
a produzir padrões onde eles não existem?”
A pergunta era absolutamente legítima.
“Garanto-te que não apresento qualquer traço de esquizofrenia. Se chovesse
agora podia demonstrar-te o processo e ias ver que não tem nada de intervenção
da minha parte. Chega aqui.”
Levei-o ao quintal das traseiras e mostrei-lhe a engenhoca que tinha feito.
“O que é isto?” perguntou ele depois de passar um bocado a tentar perceber
o que era. “Parece um painel solar…”
“Na realidade isto está ligado directamente ao computador. É um sensor de
chuva. Dava uma trabalheira incrível passar os padrões à mão para uma pauta,
por isso construi isto. Se começar a chover isto, não só arranca
automaticamente a gravação no computador, como também serve de ‘trigger’ para
gravar directamente os padrões. É mais fiável que o meu ouvido.”
“Mas porquê para uma pauta?”
“Porque numa pauta musical tudo são relações matemáticas. A partir dessas
relações passo tudo através de uma chave de desencriptação e tenho a mensagem.”
Ele olhou para mim convencido, e ao mesmo tempo com uma admiração estranha
nos olhos.
“Ainda assim, e uma vez que quase te excluíste do processo, resta saber
quem manda estas mensagens…”
“Mais do que isso, do meu ponto de vista, resta saber o porquê. E
sobretudo, porquê eu…”
“Essa última pergunta é fácil de responder.” Fiquei a olhar para ele à
espera dessa mesma resposta. Ele fez uns segundos de ‘suspense’ e acabou por
dizer. “Foi a ti porque eras o único que estava atento.”
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