Podes não acreditar, mas foi a primeira vez que senti o quanto podia ser temido.
A dúvida que eu deixara no ar contagiava toda a gente. Aliás, as minhas
atitudes, como o apresentar-me ao trabalho, não deixavam de confundir quem
olhasse para mim e procurasse algo.
Foi por pressentir isto que tomei a atitude que tomei.
Pouco depois de o homem sair, telefonei para o Fernandes.
“Pá, hoje não me venhas buscar.”
“Mas porquê? Tens outra boleia?”
“Não, tive um convite…”
“De quem?”
“Não sei, mas pelo mensageiro cheira-me que tem a ver com esta ultima
mensagem…”
A voz do Fernandes passou de imediato para um tom preocupado.
“Pá, mas não queres que vá contigo?”
“Não, não te preocupes. Também não te quero meter nisto. Quando chegar a
casa, mais logo, falamos.”
Coitado do Fernandes. Sabia que ele ia ficar à minha espera como um pai
espera a filha adolescente na sua primeira saída à noite. Ele sabia que eu ia
mergulhar numa piscina cheia de tubarões. Eu também.
Às cinco da tarde o segurança liga-me.
“Sr. Gabriel, tenho aqui uma pessoa para falar consigo…”
“Mande entrar.”
Um homem entrou, com farda de motorista.
“Sr. Gabriel?”
“O próprio.”
“Estou aqui para o acompanhar.”
Levantei-me, arrumei as minhas tralhas e acompanhei-o.
Ele abriu-me a porta de trás do carro, com toda a cerimónia, e esperou que
eu estivesse bem instalado antes de a fechar e dar a volta ao carro para entrar
ele próprio. Depois arrancamos deslizando com suavidade e entramos no bulício
do trânsito que só não era maior porque partes da cidade ainda estavam
fechadas.
Saímos da cidade em direcção a Sintra. Fui vendo a paisagem. Durante a
viagem não houve uma única troca de palavras com o motorista. Ele limitou-se a
conduzir-me e eu a ser conduzido.
Paramos à porta de um restaurante em Sintra. Ele saiu e veio abrir-me a
porta. Eu sai do carro e entrei no restaurante.
À entrada o chefe de sala conduziu-me para o interior onde todas as mesas
estavam postas, mas que estava deserto.
“qual é a mesa?” perguntei.
“A que quiser.” Disse o homem com um sorriso.
Escolhi uma mesa junto a uma janela. Como todas as outras estava posta para
quatro pessoas. Sentei-me. De imediato o chefe de sala trouxe um menu e
afastou-se.
Duas mulheres aparentando vinte e poucos anos, vestidas de forma sensual
entraram no restaurante. Não lhes liguei, pelo menos enquanto pude.
Atravessaram a sala com um andar firme, e sentaram-se na minha mesa uma de cada
lado.
Esteticamente falando eram mulheres belas. Olhei-as quando se sentaram.
Como podes calcular podiam ser Vénus e Afrodite. Para mim era igual. Felizmente
para mim elas sentaram-se e olharam-me mas mantiveram-se em silêncio. Eu
também.
Fiz a minha escolha, pousei o menu e aguardei. Elas olhavam para mim com
sorrisos provocadores. Eu começava a ficar entediado.
Ao fim de bastante tempo, nem te sei precisar quanto, entram dois homens na
sala. Vem para a mesa. Um deles, que marcava presença pela própria postura que
tinha, senta-se à minha frente. O outro coloca-se do meu lado direito. O homem
que está à minha frente olha longamente para mim. E eu para ele. Decide-se
falar finalmente.
“Mr. Gabriel, my name is John Smith.”
O que estava ao meu lado apressou-se a traduzir.
“Sr. Gabriel, o meu nome é John Smith.”
O nome, só por si dizia tudo. John Smith é qualquer um, qualquer pessoa. O
que quer dizer que este homem não era ninguém em concreto. Ou não queria que eu
o achasse alguém. Olhei para o homem que tinha à minha frente e respondi-lhe em
inglês.
“Pode dispensar o tradutor. Não temos necessidade dele.”
O homem assentiu. Fez um gesto e o outro retirou-se de imediato.
“Sr. Gabriel, presumo que tenha uma ideia do porquê deste convite.”
“Não lhe chamaria propriamente um convite. Sim, tenho uma ideia.”
“Espero que as minhas duas colaboradoras lhe tenham feito companhia
enquanto eu não cheguei…”
“Não estive sozinho.”
“Muito bem. Já escolheu?”
“Já. “
“Jantemos então. Podemos falar melhor de estômago reconfortado.”
Jantamos em silêncio. Os olhares das mulheres continuavam provocantes.
Creio que outro qualquer lhes chamaria de sedutores. Mas não eu. Não me
seduziam. Dominava constantemente a repulsa que sentia da sua proximidade. Evitava
o mais possível o toque.
O meu olhar cruzava-se constantemente com o do John. Revi-me, sabes?
Completamente. Ele era tão vazio de emoções como eu, tão avesso às pessoas como
eu. Desprezava-as de igual modo, mesmo as nossas companhias femininas. Mas as
motivações dele eram diferentes das minhas. Eu apenas me queria afastar. Ele
descobrira que era fácil fazer o que outros não fariam.
O jantar acabou. Ele ficou a olhar para mim longamente, avaliando-me.
Tentando perceber-me. Queria saber por onde começar, como ganhar vantagem sobre
mim. Não se reviu em mim.
“Sr. Gabriel, vou directo ao assunto. As pessoas que represento não estão
muito felizes consigo.”
“Não?”
“Não. Sabe, as suas afirmações causaram desconforto. Colocou-os num beco
sem saída. Sabe, não são pessoas habituadas a estar encurraladas…”
“Compreendo.”
“Por outro lado perceberam que qualquer acção contra si, depois de revelada
a informação, seria quase uma admissão de que ela é verdadeira…”
“Sim, creio que seria uma assunção normal.”
“Mas aquilo que os deixa mesmo curiosos é como é que essa mesma informação
lhe chegou às mãos…”
“Mas para saber isso não precisava de ter vindo. Está escrito em todos os
jornais. Foi-me revelada.”
“Claro que foi. A questão é saber, por quem. Sabe, eles têm alguma dificuldade
em lidar com misticismos.”
“Eu compreendo-os. Eu também, para ser franco.”
“Percebe então a insistência na pergunta.”
Olhei-o longamente, nos olhos. Sem qualquer hesitação perguntei-lhe,
“Acredita em Deus, John?”
“O senhor é um homem de fé…”
“Depende da definição pessoal de cada um. Mas refaço a pergunta. Qual é o
seu Deus, John?
“O meu Deus?”
“Sim, aquilo perante o que se curva. São as pessoas a quem representa? É ao
deus dessas pessoas? É a Deus, num sentido mais bíblico?”
“Nesse sentido, eu sou o meu Deus.”
Sorri.
“Sabe, John, a verdade é que eu não sei sequer se Deus existe. E nesse
sentido também eu sou o meu Deus. Mas tenho provas, não empíricas, mas em forma
de dados, de que há algo. John, estas suas colaboradoras, com certeza, não
sabem quem você é. São só o melhor que o dinheiro pode comprar. Mas diga-me,
disse-lhes quem eu sou?”
“Não… normalmente não se passa informação acerca destas reuniões a
colaboradoras.”
“Então porque não experimenta dizer-lhes quem eu sou. Não precisa de dizer
porque é que estou aqui. Só quem eu sou.”
Ele pensou um pouco. Tentava ver o que aconteceria se lhes dissesse.
“Percebo o que me quer dizer. Creio que não temos a necessidade de o
fazer.”
“John, eu não lhe vou dizer que Deus existe ou deixa de existir, não o
quero convencer de nada nem converter. Não lhe vou pregar o arrependimento. Não
vou fazer nada disso, até porque se o fizesse estaria a ir contra mim próprio.
Quero é que perceba que estas mensagens não são da minha responsabilidade e eu
sou apenas o mensageiro. Se não fosse eu seria outro qualquer. Aliás, uma das
coisas que me intriga é o facto de ser eu. Quanto à proveniência, só lhe posso
dizer honestamente que não sei.”
“Sr. Gabriel, por aquilo que me diz, deveríamos pura e simplesmente
ignorá-lo. Mas o seu caso é algo particular. Houve uma escalada nas mensagens
que foi passando até chegarmos a este ponto. Nesta altura é muito difícil não
lhe atribuir credibilidade. Afinal quantas pessoas até hoje é que previram um
terramoto ao minuto?”
A menção ao terramoto fez com que as duas mulheres olhassem de repente para
mim, apercebendo-se de quem eu era. A expressão no olhar delas mudou. O John
reparou nisso e sorriu. Depois continuou.
“a sua mensagem causou estragos irreparáveis. Sabe, este tipo de informação
só tem valor quando se mantém escondida.”
“Sim, eu sei. Creio que neste momento o principal problema é como revelar a
informação sem perder a face.”
“Exacto. Como calcula, não será fácil…”
“Diga-me, Sr. John, o que é que aconteceu ao investigador que fez a descoberta?”
Ele olhou para mim e disse com um sorriso irónico “Infelizmente teve um
acidente fatal logo a seguir…”
“Foi uma pena, não foi?” perguntei eu.
“Sim, foi uma verdadeira tragédia…”
“Então, tem ai a maneira. Despedem o responsável pelo laboratório em questão
por sonegar informação. Creio que não terão grandes dificuldades em persuadi-lo
a ficar calado e quieto no seu canto, anunciam a descoberta dizendo que ainda
está na fase final de testes e salvam a cara.”
“Ainda assim perderão muito dinheiro…”
“Verdade, mas podem ganhar em reputação. Sei que países como o Brasil não
hesitariam em quebrar a patente. Por isso façam as coisas de maneira a que não
valha a pena quebrá-la. Libertem o medicamento a um preço justo. Creio que
muitos governos, por razões humanitárias, não perderão tempo a enviar o
medicamento para África. E aquilo que perdem em dinheiro, ganham em
publicidade, credibilidade e reputação.”
Ele ficou parado a pensar.
“Creio que é a única alternativa que lhes resta, sim. Mas, como deve
perceber já tínhamos chegado a mais ou menos essa conclusão. Mas tinha de
tentar percebê-lo.”
“Claro. Calculava que sim.”
“E isso leva-me à segunda parte da razão da minha visita. As pessoas que
represento estão interessadas em que novas revelações não venham a publico
desta maneira tão abrupta. Compreende que em termos de políticas de gestão este
tipo de revelações sem qualquer preparação tem o potencial de se tornar
embaraçoso…”
“Compreendo perfeitamente.”
“Como tal gostariam de garantir que tal não volta a acontecer. A maneira
mais simples de obter essa garantia está neste momento fora de questão…”
Ele referia-se à minha eliminação, pura e simples. Continuou.
“…pelo que querem saber se, apesar de querer dar a Deus o que é de Deus não
estará interessado também em dar a César o que é de César…”
Fez deslizar pela mesa um envelope fechado. Abri-o. Continha um cheque. Vi
a quantia. Nem te vou dizer o absurdo que era. Não tem assim tanta importância.
Pousei-o de novo na mesa.
“Sabe, John, não devo vassalagem a César, e não sei se Deus existe. Logo, não
tenho qualquer utilidade para o conteúdo do envelope.”
“Você é um homem intrigante, Gabriel. Muito intrigante. Estamos aqui numa
mesa com aquilo que de melhor o dinheiro pode comprar, e no entanto não vejo
qualquer indício de luxúria nos seus olhos. Não conheço muitos homens que se
mantivessem impávidos ao lado destas minhas colaboradoras…”
“À excepção de si próprio.”
Ele riu.
“No entanto não me parece que lhe agradasse ter aqui colaboradores em vez
delas, não é?”
“Para lhe ser franco, era-me tão indiferente uma coisa como a outra.”
“E agora acaba de me dizer que não tem utilidade para o conteúdo do
envelope…”
“É verdade, não tenho.”
Ele percebeu finalmente que éramos iguais. E conforme o percebeu soube que
não havia grande coisa a fazer em relação a mim. Deu uma gargalhada.
“Se calhar você não me é assim tão estranho.”
“Se calhar não sou.” Disse eu com um sorriso. A nossa conversa tinha
chegado ao fim. Levantei-me.
“Presumo que o motorista me vá pôr a casa.”
“Claro. Não o íamos deixar aqui sem transporte. Guarde o envelope de
qualquer maneira. Pode ser que descubra algum bom uso.”
Encolhi os ombros, agarrei no envelope e guardei-o no bolso de trás das
calças.
“Até uma próxima, Sr. Gabriel.” Disse ele despedindo-se de mim.
Eu olhei-o uma última vez.
“John, gostava de ver as suas colaboradoras em minha casa amanhã, se não se
importa.”
“Gabriel, a ceder às tentações da carne?” olhou um pouco para mim e depois
sorriu “não, não é isso, pois não? É apenas um gesto nobre da sua parte. Cuidado
Gabriel. De gesto nobre em gesto nobre pode vir a ser encarado como… Humano!”
Ri-me.
“Creio que não corro esse risco, pelo menos para já.”
“Farei como pede. Amanhã estarão lá.”
Virei as costas, sai do restaurante, entrei no carro que estava já à minha
espera e arrancamos em direcção a Sassoeiros.
Elas não o sabiam, mas tinha-lhes salvo a vida.
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